Tudo que não foi dito.

Seis meses haviam se passado desde a batalha do Norte, mas o sangue ainda não cessara por completo.

Naquela manhã escaldante, Tharion cortava o deserto com a lâmina em punho e a sombra das antigas muralhas ao fundo.

O ataque aos traficantes de escravos havia sido breve — brutal e sem poesia.

Orren ria enquanto limpava a espada com a túnica de um dos caídos. Lyzar permanecia firme, o braço ferido coberto por uma tira improvisada de couro tingido de sangue seco.

Tharion notou.

Notava tudo que dizia respeito a ela — a mulher que o criara com silêncio e aço, nunca com carícias.

E nunca o chamara por títulos.

No caminho de volta, montados sob o calor do meio-dia, ele disse:

— Isso vai infeccionar.

Ela arqueou a sobrancelha, mordendo um figo seco entre os dentes.

— É só um arranhão. Já levei bem pior de você.

Ele franziu o cenho, meio culpado, meio grato pela resposta firme.

Quis dizer algo — talvez obrigado, talvez perdão. Mas o silêncio venceu.

O corte no ombro dela queimava menos do que o dele. Aquele que ele deixara naquela manhã na torre.

Na explosão.

Na despedida sem palavras.

O portão de pedra branca do Palácio do Sul se abriu como um teatro.

Flores azuis pendiam das colunas como véus.

O perfume doce da resina queimada nos altares se misturava ao cheiro de areia quente e couro molhado de suor.

O palácio era uma oferenda aos deuses e à rainha do Norte que agora habitava o Sul.

Mael o esperava com a postura imaculada e a Túnica sem uma vincos .

Titos correu até o cavalo sorrindo, gritando por “Tharion!”, como só ele sabia fazer.

Lyora, com os cachos soltos e uma boneca de olhos bordados, abriu os braços assim que o viu.

Mas o que o fez parar — o que o silenciou como uma lâmina no meio do peito — foi ela.

Kátyra.

Ela descia os degraus do terraço com a delicadeza de uma sacerdotisa, envolta em um vestido translúcido tingido com essências do Sul.

A pele, antes pálida do Norte, agora tinha o brilho saudável das infusões de seiva.

Os cabelos prateados estavam mais cheios, mais longos — caíam pelas costas como uma cascata viva de luz.

E mesmo grávida de seis luas, o ventre à mostra sob o tecido fino, ela não parecia vulnerável.

Parecia uma rainha de fogo sob a máscara da paz.

Ele desceu do cavalo, sujo de areia e sangue seco, e por um instante teve a certeza de que havia cruzado uma muralha invisível.

A muralha que existia entre quem ele era…

e quem ela agora precisava que ele não fosse.

Tharion entrou na torre de pedra escura e retirou a armadura em silêncio. O sangue nas correias estava seco, quase negro. Jogou-a sobre o banco, deixou que o suor escorresse das têmporas e mergulhou as mãos na bacia de água fria. O reflexo distorcido piscou de volta.

— Senhor Tharion — disse um criado, curvando-se levemente. — As cartas e as aves chegaram.

Ele ergueu os olhos.

— Onde estão?

— Na sua torre de trabalho, senhor, como sempre.

Tharion assentiu com um gesto curto.

— Ótimo. Deixe lá.

O servo hesitou por meio segundo, mas nada disse. Fez uma reverência e saiu, sumindo pelos corredores de pedra.

Ele secou o rosto com um pano grosso, sentindo o cheiro de poeira, areia e sal. A água não levava embora o incômodo. Não aquele.

Cartas.

As dela para o Norte.

As de Dimitry e Cora.

Ele não lia todas. Mas também não entregava todas.

Às vezes… demorava dias. Às vezes esquecia de responder.

Às vezes apenas sentia que o mundo real era perigoso demais para ela.

Kátyra parecia mais bela a cada dia sob o sol do Sul. Os olhos mais marcados. A pele mais viva. Os cabelos prateados cheios como prata líquida. As fórmulas e infusões daquelas sacerdotisas malucas pareciam funcionar.

Mas ela também parecia mais distante.

Mais sozinha.

Mais... contida.

Tharion vestiu o traje do jantar, apertou o cinto de couro e ajeitou a fivela. O reflexo dele agora parecia outra pessoa — não o homem que caminhou pelas Terras Baixas, não o rapaz que ouviu o coração de Kátyra pela primeira vez.

Mas o "Senhor do Sul".

Frio. Comedido.

E cada vez mais perto de quebrar.

O salão de mármore branco estava iluminado por velas suspensas e brisas perfumadas com jasmim e mirra. Servos caminhavam em silêncio, com taças de vinho de romã e bandejas cobertas por sedas.

Kátyra chegou por último.

Os olhos de todos se voltaram.

Seu vestido dourado realçava o ventre de seis luas. Os cabelos prateados estavam presos por grampos de cristal e óleos finos, como os das rainhas antigas dos desertos. A beleza dela era impossível de ignorar — mas havia algo solitário nos ombros erguidos e no sorriso polido.

Elyra foi a primeira a falar.

— Chegou nossa deusa do Norte — disse ela, com um sorriso que parecia uma navalha envolta em seda. — Como está o pequeno príncipe hoje? Ainda chutando como um general?

Kátyra manteve o sorriso calmo.

— Está sim. E com o mesmo apetite de sempre. Herdou isso do pai.

Mael riu. Titos franziu a testa, protetor como um soldado. Lyora batia palmas distraída, encantada com o brilho dos talheres.

Tharion apenas observava.

Elyra tomou a taça de vinho e virou-se para o menino mais velho, sentando-o ao seu lado com afeto.

— Mael, venha cá, meu querido. Este lugar é seu, como o verdadeiro herdeiro do seu pai.

Kátyra piscou devagar. Não respondeu.

Titos apertou a mão da mãe por baixo da mesa.

— Eu sou o herdeiro — murmurou, quase como se fosse para si mesmo.

A voz de Elyra manteve o tom gentil.

— Claro, meu bem. Você é o filho da rainha. E Mael é o coração do Sul, não é?

Tharion abriu a boca para falar, mas foi interrompido por um servo que se curvou ao seu lado.

— Há mais cartas , senhor. Já estão em sua torre de trabalho.

— Ótimo — respondeu ele, quase sem pensar. — Deixe lá.

Kátyra desviou os olhos. O gesto fora sutil. Mas suficiente.

O jantar seguiu como um espetáculo de sorrisos bem ensaiados e venenos silenciosos. E enquanto os copos se enchiam e as crianças riam de doces coloridos, ninguém percebia que a muralha entre o casal real estava crescendo — e já se enraizava nas paredes do palácio.

A música de cordas era suave, e os talheres de prata tilintavam em harmonia. Tudo parecia ensaiado. Perfeito.

Mael falava alto sobre cavalos e treinos com espadas. Sentado ao lado de Elyra, ele se portava como um pequeno príncipe. Todos riam.

Até que ele comentou, com a inocência cruel das crianças:

— Vovó Elyra disse que um dia eu vou ser rei, porque sou o que mais parece com o pai.

O silêncio caiu como um manto pesado.

Titos baixou o garfo.

Lyora parou de balançar os pezinhos.

Kátyra manteve o sorriso, mas os dedos sob a mesa apertaram o tecido do vestido.

— É mesmo? — ela disse, a voz doce. — E o que mais a vovó te contou?

Elyra sorriu, sem culpa.

— As crianças ouvem e repetem tudo, minha querida. Mael apenas sonha alto. Como qualquer menino saudável.

Tharion limpou os lábios com o guardanapo. Não olhou para ninguém.

— Está tarde para sonhos — murmurou. — Amanhã ele treina ao amanhecer.

Mael pareceu decepcionado, mas assentiu. Elyra apenas sorriu e acariciou o queixo do menino.

Kátyra inclinou-se levemente para servir Titos, e o sussurro escapou como quem fala consigo mesma:

— Então é por isso que as cartas nunca chegam…

Tharion ergueu os olhos para ela. Um lampejo.

— O que disse?

Ela ergueu o rosto e sorriu com ternura impecável.

— Nada, amor. Estava pensando em como é bom termos todos reunidos. Uma bênção.

Não é mesmo, minha senhora? — olhou direto para Elyra, como quem serve veneno num cálice de ouro.

A Bardaxa não respondeu. Apenas inclinou a cabeça, com aquele mesmo sorriso — o de quem observa um império desmoronar em silêncio.

Titos será o brilho inesperado: pequeno no corpo, gigante no sangue dos Ursos.

A conversa à mesa seguia entre risos e relatos sobre cavalos, colheitas e vinhos do sul.

Tharion não dizia uma palavra para Kátyra. Nem um olhar. Como se ela fosse parte da tapeçaria.

Lyzar, ao seu lado, tentou quebrar o gelo com uma voz suave.

— Vi que os servos trouxeram novas caixas de especiarias. Aquela mistura de folhas lilases que você gosta... — Ela sorriu. — A que alivia o peito.

Kátyra assentiu com um meio sorriso, olhando a taça sem beber.

— Obrigada, Lyzar. As infusões daqui têm me feito bem… embora ainda me doa não saber por que meu pai e minha mãe pararam de responder minhas cartas.

O silêncio que se seguiu foi quebrado por Elyra, com um sorrisinho venenoso.

— Talvez estejam ocupados demais salvando o reino para responder caprichos sentimentais. Ou… — ela tomou um gole de vinho — talvez saibam mais do que dizem.

Mael riu, sem entender a malícia.

Titos parou de mastigar. Seus olhos escuros se fixaram em Elyra.

— Minha mãe não envia caprichos — disse ele, com a voz limpa, firme, sem vacilar. — E se minha avó ou meu avô deixaram de responder, com certeza não foi por escolha deles.

Todos silenciaram.

Até o vinho pareceu mais espesso na taça.

Elyra ergueu as sobrancelhas, surpresa. Mael o olhou, confuso.

Tharion não disse nada. Continuou cortando o pão com calma.

Kátyra pousou o guardanapo no colo.

Seus olhos estavam secos. Mas a alma, trincada como vidro.

— Com licença — disse ela, com dignidade intacta. — Tive um dia longo.

Levantou-se com a mesma elegância com que entrara.

Ninguém ousou detê-la.

Titos a observou sair, com os olhos de Dimitry.

Elyra, por fim, apenas murmurou:

— As joias brilham mais quando estão sozinhas no escuro.

Mas ninguém riu dessa vez.

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