Salão das Águas – Café da Manhã
A luz suave da manhã atravessava os vitrais, espalhando cores pelas longas tapeçarias do Salão das Águas.
A mesa estava posta com frutas do Sul, pães perfumados e iguarias das casas nobres.
Mas o ar era espesso.
Gelado, apesar do sol.
Tharion estava à cabeceira. Postura rígida. Olhar vago.
Kátyra sentava-se à esquerda, entre Titos e Lyora. Sorria apenas para eles.
Mael, quieto, fitava o prato como se tudo fosse uma obrigação.
Elyra, do outro lado, fazia pequenos ruídos de prazer fingido ao provar um doce raro.
— Ah, querida, vejo que voltou a se alimentar — comentou Elyra, com aquele tom doce que escondia lâminas. — Talvez agora o bebê tenha uma chance de nascer com alguma força.
Kátyra ergueu os olhos. Sorriu. Frio.
— Se nascer com metade da força que o Titos tem ao encarar cobras, já será o bastante.
Elyra piscou.
— Não se ofenda, minha rainha. Só me preocupo com o bem da criança. O que não parece ser a sua prioridade, visto que passa as noites vagando pelos jardins como uma alma penada...
— Melhor vagar entre flores do que entre gritos em uma torre onde o coração apodrece — disse Kátyra, ainda com um tom sereno, mas cortante.
A mesa ficou em silêncio.
Titos arregalou os olhos, entre o espanto e o orgulho.
Mael, desconfortável, olhou para o pai.
Tharion ainda estava em silêncio. Só cortava o pão.
— Sua língua está mais afiada do que sua função como rainha, pelo visto — retrucou Elyra, com veneno.
— E a sua mais suja que a cama onde você deitou seu orgulho, quando entregou meu marido a um silêncio que nem os céus reconhecem!
O golpe acertou.
Elyra se levantou num salto, o rosto rubro.
— Sua ingrata! Insolente! Você não passa de uma guardiã caída que se esqueceu do lugar que ocupa nesta casa!
Kátyra se levantou com um movimento firme.
Bateu com os punhos sobre a mesa.
— Chega! — sua voz ecoou como um trovão. — Se meu lugar é ser humilhada por você todos os dias, talvez esteja na hora de quebrar essa rotina!
Tharion finalmente gritou:
— Silêncio! Já chega, Kátyra!
Ela virou o rosto para ele. Os olhos marejados. Cheios de fogo e desespero.
— Você não vê, Tharion? Não vê o que ela faz? O que diz? Ou apenas não se importa?
Ele não respondeu. Só a olhou por um instante. Frio. Exausto.
— Retire-se agora.
A dor rasgou o peito dela, mas ela manteve a coluna ereta.
Olhou para Titos, que apertava sua mão.
Beijou a testa da filha mais nova. E saiu em silêncio.
Elyra, satisfeita, tomou mais um gole de vinho com ar vitorioso.
Mas Tharion não lhe lançou nenhum olhar.
Levantou-se abruptamente.
— Tenho assuntos a tratar.
E saiu como uma sombra alta e dura.
Corredores do Palácio
Um servo apressado o interceptou no caminho.
— Senhor... a Sala do Trono o aguarda. Há um mensageiro do Norte de Alharim. É urgente.
Tharion fechou os olhos por um segundo.
— Que tipo de urgência?
— Ele veio em nome do lorde da fronteira... e da sarcedotisa Uma .
O coração de Tharion deu um salto involuntário.
Mas ele manteve o rosto fechado como sempre.
— Que esperem. Estarei lá em instantes.
O servo assentiu e se afastou.
Tharion ficou parado por um segundo no corredor.
Ouvia apenas o som da própria respiração.
E o eco, quase esquecido, de uma música distante — uma canção de ninar... em grego.
Sala do Trono – Minutos Depois
O ambiente era amplo, de colunas negras e tapeçarias em azul escuro, como a noite sem lua.
Tharion entrou com passos pesados.
No centro, ajoelhado sobre um joelho, o mensageiro trazia as marcas da fuligem na pele e o horror nos olhos.
— Fale — disse o rei, direto.
— Majestade… uma vila ao sul de Eridor. Queimada até a raiz. Não sobrou nada. Nem corpos, nem ossos. Somente cinzas e um cheiro de… morte. As árvores… parece que foram mastigadas. E o fogo... ele não se apaga. Nem com chuva.
Tharion franziu o cenho.
— Alguém viu algo?
— Só um velho, que passou pelas redondezas na noite anterior. Ele falou de uma sombra com chifres. Disse que o céu gemeu.
O silêncio caiu pesado sobre a sala.
Lyzar, encostado à sombra de uma das colunas, ergueu os olhos.
— Parece… familiar.
Tharion se voltou para seus capitães.
— Quero uma companhia de elite partindo agora. Lyzar, vai com eles. Quero relatório ao anoitecer.
— Sim, senhor — respondeu o filho de alma, mas não se moveu.
Tharion fez menção de sair. Mas Lyzar falou:
— Vai falar com ela.
Tharion parou. Virou apenas o rosto, sem encará-la por completo.
— Fique fora disso.
— Não é comigo que você tem que dormir. Nem com quem você precisa fazer as pazes. É ela que vai carregar esse reino quando você não estiver.
Tharion se virou de novo, olhos estreitos.
— Ela precisa ficar fora disso.
— Você precisa parar de fugir.
Um silêncio tenso.
Tharion respirou fundo, os olhos queimando com emoções que ele já não sabia nomear.
E então, como quem aceita um castigo, virou-se e caminhou em direção aos aposentos da rainha.
Câmaras de Kátyra – Pouco Depois
A porta se abriu devagar.
Kátyra estava sentada à beira da janela, o olhar perdido no jardim seco. Os dedos alisavam suavemente a curva do ventre.
Ela não se virou.
— Se veio me expulsar do meu próprio quarto, economize as palavras.
Tharion parou na porta. Os ombros pesados, as mãos cerradas.
— Houve um ataque. Uma vila ao sul. Tudo destruído.
Kátyra virou o rosto.
— Por que me conta isso, se quer que eu fique fora?
Silêncio.
— Você se tornou um estranho, Tharion. Um homem que não ouve, que não toca, que não fala com a mulher que diz amar. Onde está o pai dos meus filhos? O guerreiro que sangrou por mim?
Ele não respondeu.
Ela se levantou, com dignidade, mesmo com os olhos marejados.
— Eu não o reconheço mais.
Tharion abaixou a cabeça, como se as palavras pesassem toneladas.
— Não vim para brigar — disse por fim, voz baixa.
— Então por que está sempre em guerra comigo?
Ela se aproximou devagar.
— Me diga… o que é que eu fiz que foi tão imperdoável assim?
Tharion a olhou, por fim. Os olhos avermelhados. As palavras presas.
Mas o que saiu foi frio:
— É melhor você descansar. Por causa da criança.
Kátyra riu. Um som curto, amargo.
— Sempre a criança. Sempre uma desculpa.
Ele virou-se, pronto para sair.
— Tharion… — ela chamou, firme. — Um dia, quando eu partir, você vai entender que o que destrói um império não são os inimigos. É o silêncio entre seus reis.
Ele parou. Mas não disse nada.
Apenas saiu.
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Atualizado até capítulo 41
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