Como posso esquecer.

Torre de Trabalho – Alta Noite

O som dos passos de Tharion ecoava pelo mármore escuro da torre.

A noite estava alta, e o palácio dormia sob névoa.

Ele empurrou a porta pesada do escritório, acendeu uma lamparina com um estalar de dedos e caminhou direto até uma estante.

Ali, atrás de volumes antigos sobre estratégia e tratados de guerra, retirou uma pequena caixa de madeira entalhada. Abriu-a.

Um maço de cartas.

Todas seladas. Todas endereçadas a Kátyra dos Ursos.

A letra de Dimitry. O perfume discreto de Cora.

Uma delas tinha um desenho feito por Moira — flor de romã bordada em dourado.

Tharion respirou fundo. Passou os dedos sobre os envelopes.

Ele as tinha escondido. Todas.

As colocou dentro de uma gaveta secreta atrás da tapeçaria de mapas. Trancou. Virou a chave.

Virou-se então para o servo que aguardava na porta.

— Alguém o viu entrar aqui?

— Ninguém, senhor.

— E a rainha? Como… tem se comportado?

O servo hesitou.

— Não fala muito. Come pouco. Dorme menos ainda, pelo que dizem as criadas.

Só sorri de verdade quando está com os filhos. Principalmente com a pequena Lyora.

Tharion assentiu com um leve franzir de sobrancelhas.

Seu punho se fechou, tenso. Mas ele não disse nada.

Saiu da torre com a respiração presa na garganta.

Quarto de Kátyra – Um pouco depois

Ela estava sentada na poltrona perto da janela, envolta num xale branco. Os cabelos soltos, prateados, tocavam o chão como rios de luz.

O som da porta se abrindo não a surpreendeu.

Tharion entrou. Com o rosto cansado, porém inexpressivo.

— Está bem? — perguntou ele, a voz seca.

Kátyra demorou a responder.

Não o olhou.

— Gostaria de ir ao Norte. Ver minha mãe. Sentir o vento de casa.

Ele não respondeu de imediato. Apenas observou a barriga dela — ainda pequena, mas já visível sob o tecido.

— Não é um bom momento — disse ele por fim. — É arriscado. O bebê…

Ela fechou os olhos. O silêncio entre eles era como gelo entre duas paredes.

Ele permaneceu ali por mais alguns segundos.

Depois deu meia-volta. Saiu sem tocá-la.

A porta se fechou com um clique quase inaudível.

Kátyra ficou ali, imóvel, olhando o céu do Sul.

As estrelas pareciam mais distantes do que nunca.

Céu do Sul – Alta Noite

O grifo cortava o céu como uma sombra entre nuvens.

Tharion não deixou rastros.

Vestia-se como um mercador qualquer — capuz baixo, roupa comum.

As patas da criatura pousaram sem som nos arredores de uma estalagem esquecida entre vinhedos e pedreiras.

A entrada lateral se abriu para ele.

Ninguém o anunciou. Ninguém ousou cruzar seu olhar.

Taberna Clandestina

O cheiro era de vinho adocicado, flores secas e verniz velho.

No andar de cima, a porta do quarto já estava entreaberta.

Ela estava lá.

A mulher de cabelos escuros, pele morna, olhos sempre abaixados.

Não dizia seu nome. Nunca perguntava o dele.

Ele não beijava.

Ela não sorria.

Não havia desejo — apenas um ritual. Um tipo de anestesia.

Um antídoto para não pensar em outra.

Tharion saiu como sempre: em silêncio, com o capuz puxado, o rosto impassível.

O grifo o esperava.

A noite seguia.

---

Palácio do Sul – Madrugada

No quarto da rainha, as velas já haviam se apagado.

Kátyra sentava-se no chão, entre almofadas e véus, os cabelos prateados caídos como rios feridos.

Tinha um lenço nas mãos, úmido.

As lágrimas não eram novas.

Apenas voltavam, como marés.

Ela segurava um bordado antigo — um presente da avó Moira, ainda no Norte.

As iniciais bordadas em ouro.

“K.U.”

Lembrava-se da risada de Cora ao chamá-la de "menina teimosa" e dos olhos orgulhosos de Dimitry no nascimento de Titos.

Agora… silêncio.

Nada chegava do Norte.

Nem cartas. Nem respostas.

Nem amor.

Kátyra dos Ursos — rainha do Sul, mulher mais bela das cinco casas — sentia-se vazia.

Como uma relíquia de mármore… rachada por dentro.

E na solidão da madrugada, em voz quase inaudível, ela sussurrou para o escuro:

— Pai… eu não aguento mais.

Jardins do Sul – Madrugada

A névoa ainda tocava o chão quando Kátyra saiu em silêncio pelos corredores dourados.

Nenhum criado ousou segui-la.

Os guardas se afastaram como sombras obedientes.

Ela usava um manto leve, cor de musgo, e os cabelos prateados estavam soltos sobre os ombros.

O jardim parecia encantado sob a lua pálida.

As flores do Sul — vivas graças às infusões que ela mesma preparava — se curvavam discretamente quando ela passava.

Na beira da fonte, Kátyra parou.

Alisou o ventre.

E começou a cantar.

A melodia era baixa, antiga.

Grega.

Uma canção que sua mãe, Cora, entoava nas noites frias do Norte.

Uma prece para acalmar o coração das crianças e proteger os sonhos dos que ainda estavam por nascer.

> "Nýmphi tou anémou, nýmphi tou fos..."

(Ninfa do vento, ninfa da luz…)

O bebê se mexeu.

Forte.

Saltou como se dançasse dentro dela.

Kátyra sorriu pela primeira vez em dias.

Mas seus olhos estavam molhados.

Ela cantava para ninguém.

Ou talvez para os deuses que já não respondiam mais.

Torre de Vigília – O Retorno

Tharion pousou o grifo na varanda da torre.

Sujo de poeira, com o peito nu e o capuz ainda abaixado.

O hálito amargo da noite anterior ainda em sua boca.

Mas parou.

Congelou ao ver a silhueta dela ao longe, entre as flores da madrugada.

O cabelo prateado refletia a luz da lua como fogo frio.

Ela estava sozinha. Cantava.

E sorria.

Aquilo partiu alguma coisa nele.

Ele quis ir até ela.

Quis tocar aquele ventre.

Quis se ajoelhar e pedir perdão por tudo — pela dor, pelo silêncio, pela fraqueza.

Mas tudo o que viu, na sua mente, foi o momento da guerra.

Erizy em chamas.

Kátyra voando com Lyzar sangrando.

E a raiva que o cegou.

Aquela cena havia lhe roubado a alma.

Tharion se encostou na parede de pedra e cerrou os punhos.

Queria amá-la.

Ainda a amava.

Mas já não sabia como atravessar o abismo que os separava.

E assim, a noite o engoliu mais uma vez.

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!