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O Herdeiro do Sul. Livro II

Pesadelo ancestral.

Milhares de anos atrás...

— O Coração de Lyzar

Ainda havia ouro nas torres.

Ainda havia música nas cortes.

Mas sob os véus de beleza, o mundo já apodrecia.

Dizem que o Antigo Reino era o mais belo entre os reinos.

Dizem que seus jardins flutuavam sobre lagos puros e que suas muralhas brilhavam ao amanhecer como as escamas de um dragão alado.

Mas o que não dizem — o que todos esqueceram — é que aquele povo, por trás da glória e da arte, era cruel.

O povo de Aerundriel vendia crianças em troca de encantamentos.

Corrompia magos. Punia os justos. E fazia sacrifícios em nome de deuses mortos, enquanto erguia taças com mãos pintadas de sangue.

E mesmo assim, havia uma centelha.

Aerundriel, o rei, era diferente.

Firme, porém justo. Filho de uma linhagem antiga, mas com o coração voltado para o novo. Tentava purificar os salões, desmontar os conselhos corruptos, proteger os fracos. Era amado. E por isso mesmo… odiado.

Ao seu lado, havia duas luzes.

Eliara, sua rainha — uma dama do Véu Flamejante, uma sacerdotisa que havia feito votos eternos para jamais conhecer o toque de um homem. E ainda assim, por ele, quebrou o sagrado e se tornou mãe.

E Lyzar, a invencível — baixa, magra, de feições suaves e olhos como o aço recém-temperado.

Diziam que ela jamais sangrou em combate.

Diziam que era uma mulher sem idade, sem origem, sem sombra.

Mas todos sabiam que onde o rei ia, ela estava.

Eliara a chamava de irmã.

Aerundriel a chamava de lâmina.

As crianças a chamavam de “aquela que caminha no som do trovão”.

Ninguém sabia de onde viera. Mas todos sabiam que ela sempre esteve lá.

Numa noite sem lua, enquanto os magos antigos mediam os astros em silêncio e as flores dos Jardins de Alcarol murchavam sem explicação, um homem atravessou as portas do palácio.

Caleum.

O grande Houler.

Irmão da própria Lyzar.

Servo dos ciclos e arauto do fim.

Veio sozinho.

Coberto por mantos brancos, os olhos de fogo sereno e a voz que fazia os espelhos trincarem.

O rei o recebeu nas câmaras altas.

— Diga-me a verdade, Caleum. — Aerundriel disse, a mão firme sobre a de Eliara. — É o nosso fim?

— O fim de todos. — respondeu o Houler. — O mundo queimará. O céu se abrirá. E apenas um sobreviverá à extinção das eras.

— Nosso filho? — sussurrou Eliara, tocando o ventre já redondo.

Caleum assentiu.

— Entre os cadáveres do mundo antigo, apenas ele florescerá. Entre ruínas e brasas, ele governará o novo ciclo.

Aerundriel cerrou os punhos. Seus olhos, até então plácidos, se encheram de fogo.

— E a rainha? Ela precisa morrer?

Caleum hesitou.

— A ruína não escolhe. A vida de Eliara seria o preço justo para conter as chamas. Mas já é tarde. A profecia está selada.

— E ele… — disse o rei, a voz embargada — …ficará só?

Caleum pousou os olhos sobre Lyzar, que até então guardava silêncio ao lado do trono, a mão no punho da espada.

— Lyzar é uma Saber. É irmã de minha carne e alma. Serve tua linhagem há mais do que os homens podem contar.

— Eu não posso — nem quero — matá-la.

— Então, ele terá alguém. — sussurrou Eliara, com lágrimas silenciosas.

Caleum se virou para os três, como quem entrega uma sentença.

— Assim que o menino respirar pela primeira vez… este mundo será incendiado.

— Como castigo pela corrupção, essa terra será entregue aos Seuls, filhos da carne insaciável.

— Eles herdarão as ruínas até o retorno do herdeiro.

— E quando Ele erguer sua espada, os Seuls cairão como poeira ao vento.

— E um novo mundo nascerá… com fogo nas veias.

Na torre mais alta, Eliara chorava em silêncio.

Lyzar se aproximou e pousou a mão em seu ventre.

— Eu o protegerei — disse ela. — Nem o tempo, nem a morte me afastarão dele.

Eliara sorriu.

— Que ele tenha teu coração, Lyzar.

E ao longe, pela primeira vez em mil anos, um grifo negro cruzou os céus em chamas.

As muralhas tremiam.

Chamas dançavam nos campos.

E, nas profundezas da cidade, a revolta crescia como veneno nas raízes do trono.

Não eram apenas os Seuls que se aproximavam.

Dentro do próprio palácio, uma facção de traidores já havia se formado — magos caídos, nobres que desejavam a coroa, generais que vendiam sua espada por glória ou ouro. O rei Aerundriel lutava em dois mundos ao mesmo tempo: o externo, onde os céus se rasgavam em fogo… e o interno, onde a lealdade se tornava cinza.

Mesmo assim, naquela noite, ele subiu os degraus da Torre de Safira e foi até os aposentos da rainha.

Ela sentia as dores.

A vida empurrava-se para nascer.

E ele sabia — era a última vez que a veria.

Ajoelhou-se diante de Eliara. Beijou-lhe a testa úmida. Tocou com reverência a curva de seu ventre.

— Ele chegará ao mundo cercado de caos… — disse Aerundriel, com a voz baixa. — …mas não ficará sem direção.

De dentro de seu manto dourado, retirou um pequeno objeto de cristal translúcido, forjado em forma de chave.

— Isto é tua herança, meu amor. E a dele.

— A Chave da Biblioteca de Cristal.

Eliara a pegou, maravilhada.

— A Biblioteca… é real?

Aerundriel assentiu.

— Mais do que real. É o último refúgio do conhecimento verdadeiro.

— No coração dela habita o Erudito, o guardião do Verbo, o Mestre das Palavras.

— Ele lembra o que o mundo esqueceu.

— Ele servirá Tharion. Quando o tempo certo chegar… ele despertará.

Ela levou a chave ao peito, como se já sentisse a presença do filho ali.

O rei se inclinou e beijou a barriga da esposa, com lágrimas nos olhos.

— Meu filho… que teu coração seja firme.

— Que tua chama seja limpa.

— Que tu me encontres… um dia… no silêncio entre os mundos.

Ergueu-se.

Lyzar estava ali, à sombra da janela.

Ele se virou para ela. Pela primeira vez em séculos, havia algo quebrado em seu olhar.

— Cuida deles, irmã.

— Eles são o futuro.

Ela quis ir com ele. Sempre foi sua sombra, sua espada, sua promessa de vitória.

Mas ele balançou a cabeça.

— Não desta vez.

— Esta batalha é apenas minha.

Com um suspiro, o rei caminhou até a sacada. O céu já ardia em vermelho. Tambores ecoavam da cidade baixa.

Então, ergueu suas asas douradas, tão vastas quanto o crepúsculo.

Olhou uma última vez para Lyzar e para Eliara…

…e voou.

---

Horas depois…

O choro de um recém-nascido ecoou pelos salões de mármore.

Eliara sorria com os olhos pesados, o corpo exausto, mas cheio de paz.

— Tharion… — sussurrou. — Nome de trovão. Nome de rei.

Mas logo depois, o som de passos acelerados.

O sussurro cortante dos servos.

O silêncio dos guardas.

Alguém entrou no quarto com o olhar caído.

— O rei… está morto.

Eliara fechou os olhos, deixando uma lágrima escapar.

Mas não chorou.

Ela apenas segurou o filho com mais força.

— Ele nasceu. Isso basta.

E então, o mundo pareceu parar.

Um vento frio atravessou as janelas.

As tochas se apagaram.

Caleum apareceu. Silencioso como um presságio.

— Ele não pode ficar. — disse, com a voz firme.

Lyzar se aproximou, retirando o menino dos braços da rainha com reverência e dor.

— Cuidem dele — sussurrou Eliara. — Cuidem… até que ele retorne.

Caleum tocou a testa da rainha com um gesto ancestral.

— Você será lembrada entre as eternas.

E, sem mais palavras, desapareceram entre véus de luz e poeira.

No coração do mundo antigo, a Biblioteca de Cristal se abriu pela primeira vez em mil anos.

Entre colunas feitas de luz sólida, o Erudito ergueu os olhos de seu tomo eterno.

— Ele chegou. — disse.

— Aquele que carrega o fogo e a memória.

Lyzar entrou, com o bebê nos braços.

— E você cuidará dele?

O Erudito sorriu.

— Até o fim dos tempos… e além.

O mundo antigo ardia.

Torres de cristal ruíam sob um céu incendiado.

Asas douradas caíam entre as nuvens.

E um menino chorava no colo da eternidade.

Tharion observava tudo — como se estivesse lá, e ao mesmo tempo fora.

Sentia o calor, o cheiro do sangue e da cinza.

Sentia o choro de uma mulher de cabelos flamejantes ecoando pela cúpula do templo.

E sentia Lyzar… firme, incansável, segurando-o nos braços.

Então a voz.

A voz que sempre o chamava nos sonhos.

"O fogo esquecerá o que o sangue lembra.

Mas a memória há de arder contigo.

Até que o mundo esteja limpo."

Ele quis gritar.

Quis correr.

Quis impedir tudo.

Mas o tempo explodiu em chamas.

Dias atuais...

Tharion acordou.

Suado. Arfando. Os olhos arregalados.

As cicatrizes no peito ainda doíam, embora a pele estivesse curada.

Fora apenas um sonho, disse a si mesmo.

Mas sabia — não era.

Se passaram seis meses desde a queda de Erizy.

Seis meses desde a última investida dos Darxas no Norte.

Seis meses desde que ele mesmo quase se perdeu.

Olhou ao redor. O céu era cinzento, coberto de nuvens baixas.

Estavam acampados numa clareira da Cordilheira Sul, perto das margens do Rio Velado. Tendas improvisadas, sentinelas silenciosas, guerreiros ainda feridos. Era uma trégua temporária — e Tharion sabia disso.

Levantou-se, o corpo pesado, as botas cobertas de lama seca.

Ao virar-se, viu Lyzar, sentada em silêncio ao lado de uma fogueira apagada.

O braço dela ainda estava enfaixado.

O corte… fora dele.

Num momento de fúria, de escuridão, quando Erizy, mesmo agonizante, o provocou com palavras torpes:

> “Depois que eu te matar, Tharion, vou usar o corpo dela como troféu.

Kátyra gritará teu nome até sangrar."

O grito que saiu de Tharion naquela hora não era humano.

Ele não lembrava o golpe que desferiu.

Só lembrava de Lyzar e Kátyra no chão.

E do olhar de medo.

Não de Erizy — mas delas.

Tharion fechou os olhos.

Sentia o gosto amargo da vergonha.

Caminhou até o centro do acampamento.

Chamou os capitães, os vigias, os batedores.

— Basta de descanso — disse, a voz mais rouca do que pretendia.

— Recolham as tendas. Queimem o que não puderem carregar.

— Partiremos ao nascer do sol.

— Para onde, senhor? — perguntou um dos homens.

Tharion olhou o horizonte, como se procurasse algo além das montanhas.

— Para o Palácio.

— Chegou a hora de enfrentar os vivos.

Tudo que não foi dito.

Seis meses haviam se passado desde a batalha do Norte, mas o sangue ainda não cessara por completo.

Naquela manhã escaldante, Tharion cortava o deserto com a lâmina em punho e a sombra das antigas muralhas ao fundo.

O ataque aos traficantes de escravos havia sido breve — brutal e sem poesia.

Orren ria enquanto limpava a espada com a túnica de um dos caídos. Lyzar permanecia firme, o braço ferido coberto por uma tira improvisada de couro tingido de sangue seco.

Tharion notou.

Notava tudo que dizia respeito a ela — a mulher que o criara com silêncio e aço, nunca com carícias.

E nunca o chamara por títulos.

No caminho de volta, montados sob o calor do meio-dia, ele disse:

— Isso vai infeccionar.

Ela arqueou a sobrancelha, mordendo um figo seco entre os dentes.

— É só um arranhão. Já levei bem pior de você.

Ele franziu o cenho, meio culpado, meio grato pela resposta firme.

Quis dizer algo — talvez obrigado, talvez perdão. Mas o silêncio venceu.

O corte no ombro dela queimava menos do que o dele. Aquele que ele deixara naquela manhã na torre.

Na explosão.

Na despedida sem palavras.

O portão de pedra branca do Palácio do Sul se abriu como um teatro.

Flores azuis pendiam das colunas como véus.

O perfume doce da resina queimada nos altares se misturava ao cheiro de areia quente e couro molhado de suor.

O palácio era uma oferenda aos deuses e à rainha do Norte que agora habitava o Sul.

Mael o esperava com a postura imaculada e a Túnica sem uma vincos .

Titos correu até o cavalo sorrindo, gritando por “Tharion!”, como só ele sabia fazer.

Lyora, com os cachos soltos e uma boneca de olhos bordados, abriu os braços assim que o viu.

Mas o que o fez parar — o que o silenciou como uma lâmina no meio do peito — foi ela.

Kátyra.

Ela descia os degraus do terraço com a delicadeza de uma sacerdotisa, envolta em um vestido translúcido tingido com essências do Sul.

A pele, antes pálida do Norte, agora tinha o brilho saudável das infusões de seiva.

Os cabelos prateados estavam mais cheios, mais longos — caíam pelas costas como uma cascata viva de luz.

E mesmo grávida de seis luas, o ventre à mostra sob o tecido fino, ela não parecia vulnerável.

Parecia uma rainha de fogo sob a máscara da paz.

Ele desceu do cavalo, sujo de areia e sangue seco, e por um instante teve a certeza de que havia cruzado uma muralha invisível.

A muralha que existia entre quem ele era…

e quem ela agora precisava que ele não fosse.

Tharion entrou na torre de pedra escura e retirou a armadura em silêncio. O sangue nas correias estava seco, quase negro. Jogou-a sobre o banco, deixou que o suor escorresse das têmporas e mergulhou as mãos na bacia de água fria. O reflexo distorcido piscou de volta.

— Senhor Tharion — disse um criado, curvando-se levemente. — As cartas e as aves chegaram.

Ele ergueu os olhos.

— Onde estão?

— Na sua torre de trabalho, senhor, como sempre.

Tharion assentiu com um gesto curto.

— Ótimo. Deixe lá.

O servo hesitou por meio segundo, mas nada disse. Fez uma reverência e saiu, sumindo pelos corredores de pedra.

Ele secou o rosto com um pano grosso, sentindo o cheiro de poeira, areia e sal. A água não levava embora o incômodo. Não aquele.

Cartas.

As dela para o Norte.

As de Dimitry e Cora.

Ele não lia todas. Mas também não entregava todas.

Às vezes… demorava dias. Às vezes esquecia de responder.

Às vezes apenas sentia que o mundo real era perigoso demais para ela.

Kátyra parecia mais bela a cada dia sob o sol do Sul. Os olhos mais marcados. A pele mais viva. Os cabelos prateados cheios como prata líquida. As fórmulas e infusões daquelas sacerdotisas malucas pareciam funcionar.

Mas ela também parecia mais distante.

Mais sozinha.

Mais... contida.

Tharion vestiu o traje do jantar, apertou o cinto de couro e ajeitou a fivela. O reflexo dele agora parecia outra pessoa — não o homem que caminhou pelas Terras Baixas, não o rapaz que ouviu o coração de Kátyra pela primeira vez.

Mas o "Senhor do Sul".

Frio. Comedido.

E cada vez mais perto de quebrar.

O salão de mármore branco estava iluminado por velas suspensas e brisas perfumadas com jasmim e mirra. Servos caminhavam em silêncio, com taças de vinho de romã e bandejas cobertas por sedas.

Kátyra chegou por último.

Os olhos de todos se voltaram.

Seu vestido dourado realçava o ventre de seis luas. Os cabelos prateados estavam presos por grampos de cristal e óleos finos, como os das rainhas antigas dos desertos. A beleza dela era impossível de ignorar — mas havia algo solitário nos ombros erguidos e no sorriso polido.

Elyra foi a primeira a falar.

— Chegou nossa deusa do Norte — disse ela, com um sorriso que parecia uma navalha envolta em seda. — Como está o pequeno príncipe hoje? Ainda chutando como um general?

Kátyra manteve o sorriso calmo.

— Está sim. E com o mesmo apetite de sempre. Herdou isso do pai.

Mael riu. Titos franziu a testa, protetor como um soldado. Lyora batia palmas distraída, encantada com o brilho dos talheres.

Tharion apenas observava.

Elyra tomou a taça de vinho e virou-se para o menino mais velho, sentando-o ao seu lado com afeto.

— Mael, venha cá, meu querido. Este lugar é seu, como o verdadeiro herdeiro do seu pai.

Kátyra piscou devagar. Não respondeu.

Titos apertou a mão da mãe por baixo da mesa.

— Eu sou o herdeiro — murmurou, quase como se fosse para si mesmo.

A voz de Elyra manteve o tom gentil.

— Claro, meu bem. Você é o filho da rainha. E Mael é o coração do Sul, não é?

Tharion abriu a boca para falar, mas foi interrompido por um servo que se curvou ao seu lado.

— Há mais cartas , senhor. Já estão em sua torre de trabalho.

— Ótimo — respondeu ele, quase sem pensar. — Deixe lá.

Kátyra desviou os olhos. O gesto fora sutil. Mas suficiente.

O jantar seguiu como um espetáculo de sorrisos bem ensaiados e venenos silenciosos. E enquanto os copos se enchiam e as crianças riam de doces coloridos, ninguém percebia que a muralha entre o casal real estava crescendo — e já se enraizava nas paredes do palácio.

A música de cordas era suave, e os talheres de prata tilintavam em harmonia. Tudo parecia ensaiado. Perfeito.

Mael falava alto sobre cavalos e treinos com espadas. Sentado ao lado de Elyra, ele se portava como um pequeno príncipe. Todos riam.

Até que ele comentou, com a inocência cruel das crianças:

— Vovó Elyra disse que um dia eu vou ser rei, porque sou o que mais parece com o pai.

O silêncio caiu como um manto pesado.

Titos baixou o garfo.

Lyora parou de balançar os pezinhos.

Kátyra manteve o sorriso, mas os dedos sob a mesa apertaram o tecido do vestido.

— É mesmo? — ela disse, a voz doce. — E o que mais a vovó te contou?

Elyra sorriu, sem culpa.

— As crianças ouvem e repetem tudo, minha querida. Mael apenas sonha alto. Como qualquer menino saudável.

Tharion limpou os lábios com o guardanapo. Não olhou para ninguém.

— Está tarde para sonhos — murmurou. — Amanhã ele treina ao amanhecer.

Mael pareceu decepcionado, mas assentiu. Elyra apenas sorriu e acariciou o queixo do menino.

Kátyra inclinou-se levemente para servir Titos, e o sussurro escapou como quem fala consigo mesma:

— Então é por isso que as cartas nunca chegam…

Tharion ergueu os olhos para ela. Um lampejo.

— O que disse?

Ela ergueu o rosto e sorriu com ternura impecável.

— Nada, amor. Estava pensando em como é bom termos todos reunidos. Uma bênção.

Não é mesmo, minha senhora? — olhou direto para Elyra, como quem serve veneno num cálice de ouro.

A Bardaxa não respondeu. Apenas inclinou a cabeça, com aquele mesmo sorriso — o de quem observa um império desmoronar em silêncio.

Titos será o brilho inesperado: pequeno no corpo, gigante no sangue dos Ursos.

A conversa à mesa seguia entre risos e relatos sobre cavalos, colheitas e vinhos do sul.

Tharion não dizia uma palavra para Kátyra. Nem um olhar. Como se ela fosse parte da tapeçaria.

Lyzar, ao seu lado, tentou quebrar o gelo com uma voz suave.

— Vi que os servos trouxeram novas caixas de especiarias. Aquela mistura de folhas lilases que você gosta... — Ela sorriu. — A que alivia o peito.

Kátyra assentiu com um meio sorriso, olhando a taça sem beber.

— Obrigada, Lyzar. As infusões daqui têm me feito bem… embora ainda me doa não saber por que meu pai e minha mãe pararam de responder minhas cartas.

O silêncio que se seguiu foi quebrado por Elyra, com um sorrisinho venenoso.

— Talvez estejam ocupados demais salvando o reino para responder caprichos sentimentais. Ou… — ela tomou um gole de vinho — talvez saibam mais do que dizem.

Mael riu, sem entender a malícia.

Titos parou de mastigar. Seus olhos escuros se fixaram em Elyra.

— Minha mãe não envia caprichos — disse ele, com a voz limpa, firme, sem vacilar. — E se minha avó ou meu avô deixaram de responder, com certeza não foi por escolha deles.

Todos silenciaram.

Até o vinho pareceu mais espesso na taça.

Elyra ergueu as sobrancelhas, surpresa. Mael o olhou, confuso.

Tharion não disse nada. Continuou cortando o pão com calma.

Kátyra pousou o guardanapo no colo.

Seus olhos estavam secos. Mas a alma, trincada como vidro.

— Com licença — disse ela, com dignidade intacta. — Tive um dia longo.

Levantou-se com a mesma elegância com que entrara.

Ninguém ousou detê-la.

Titos a observou sair, com os olhos de Dimitry.

Elyra, por fim, apenas murmurou:

— As joias brilham mais quando estão sozinhas no escuro.

Mas ninguém riu dessa vez.

Como posso esquecer.

Torre de Trabalho – Alta Noite

O som dos passos de Tharion ecoava pelo mármore escuro da torre.

A noite estava alta, e o palácio dormia sob névoa.

Ele empurrou a porta pesada do escritório, acendeu uma lamparina com um estalar de dedos e caminhou direto até uma estante.

Ali, atrás de volumes antigos sobre estratégia e tratados de guerra, retirou uma pequena caixa de madeira entalhada. Abriu-a.

Um maço de cartas.

Todas seladas. Todas endereçadas a Kátyra dos Ursos.

A letra de Dimitry. O perfume discreto de Cora.

Uma delas tinha um desenho feito por Moira — flor de romã bordada em dourado.

Tharion respirou fundo. Passou os dedos sobre os envelopes.

Ele as tinha escondido. Todas.

As colocou dentro de uma gaveta secreta atrás da tapeçaria de mapas. Trancou. Virou a chave.

Virou-se então para o servo que aguardava na porta.

— Alguém o viu entrar aqui?

— Ninguém, senhor.

— E a rainha? Como… tem se comportado?

O servo hesitou.

— Não fala muito. Come pouco. Dorme menos ainda, pelo que dizem as criadas.

Só sorri de verdade quando está com os filhos. Principalmente com a pequena Lyora.

Tharion assentiu com um leve franzir de sobrancelhas.

Seu punho se fechou, tenso. Mas ele não disse nada.

Saiu da torre com a respiração presa na garganta.

Quarto de Kátyra – Um pouco depois

Ela estava sentada na poltrona perto da janela, envolta num xale branco. Os cabelos soltos, prateados, tocavam o chão como rios de luz.

O som da porta se abrindo não a surpreendeu.

Tharion entrou. Com o rosto cansado, porém inexpressivo.

— Está bem? — perguntou ele, a voz seca.

Kátyra demorou a responder.

Não o olhou.

— Gostaria de ir ao Norte. Ver minha mãe. Sentir o vento de casa.

Ele não respondeu de imediato. Apenas observou a barriga dela — ainda pequena, mas já visível sob o tecido.

— Não é um bom momento — disse ele por fim. — É arriscado. O bebê…

Ela fechou os olhos. O silêncio entre eles era como gelo entre duas paredes.

Ele permaneceu ali por mais alguns segundos.

Depois deu meia-volta. Saiu sem tocá-la.

A porta se fechou com um clique quase inaudível.

Kátyra ficou ali, imóvel, olhando o céu do Sul.

As estrelas pareciam mais distantes do que nunca.

Céu do Sul – Alta Noite

O grifo cortava o céu como uma sombra entre nuvens.

Tharion não deixou rastros.

Vestia-se como um mercador qualquer — capuz baixo, roupa comum.

As patas da criatura pousaram sem som nos arredores de uma estalagem esquecida entre vinhedos e pedreiras.

A entrada lateral se abriu para ele.

Ninguém o anunciou. Ninguém ousou cruzar seu olhar.

Taberna Clandestina

O cheiro era de vinho adocicado, flores secas e verniz velho.

No andar de cima, a porta do quarto já estava entreaberta.

Ela estava lá.

A mulher de cabelos escuros, pele morna, olhos sempre abaixados.

Não dizia seu nome. Nunca perguntava o dele.

Ele não beijava.

Ela não sorria.

Não havia desejo — apenas um ritual. Um tipo de anestesia.

Um antídoto para não pensar em outra.

Tharion saiu como sempre: em silêncio, com o capuz puxado, o rosto impassível.

O grifo o esperava.

A noite seguia.

---

Palácio do Sul – Madrugada

No quarto da rainha, as velas já haviam se apagado.

Kátyra sentava-se no chão, entre almofadas e véus, os cabelos prateados caídos como rios feridos.

Tinha um lenço nas mãos, úmido.

As lágrimas não eram novas.

Apenas voltavam, como marés.

Ela segurava um bordado antigo — um presente da avó Moira, ainda no Norte.

As iniciais bordadas em ouro.

“K.U.”

Lembrava-se da risada de Cora ao chamá-la de "menina teimosa" e dos olhos orgulhosos de Dimitry no nascimento de Titos.

Agora… silêncio.

Nada chegava do Norte.

Nem cartas. Nem respostas.

Nem amor.

Kátyra dos Ursos — rainha do Sul, mulher mais bela das cinco casas — sentia-se vazia.

Como uma relíquia de mármore… rachada por dentro.

E na solidão da madrugada, em voz quase inaudível, ela sussurrou para o escuro:

— Pai… eu não aguento mais.

Jardins do Sul – Madrugada

A névoa ainda tocava o chão quando Kátyra saiu em silêncio pelos corredores dourados.

Nenhum criado ousou segui-la.

Os guardas se afastaram como sombras obedientes.

Ela usava um manto leve, cor de musgo, e os cabelos prateados estavam soltos sobre os ombros.

O jardim parecia encantado sob a lua pálida.

As flores do Sul — vivas graças às infusões que ela mesma preparava — se curvavam discretamente quando ela passava.

Na beira da fonte, Kátyra parou.

Alisou o ventre.

E começou a cantar.

A melodia era baixa, antiga.

Grega.

Uma canção que sua mãe, Cora, entoava nas noites frias do Norte.

Uma prece para acalmar o coração das crianças e proteger os sonhos dos que ainda estavam por nascer.

> "Nýmphi tou anémou, nýmphi tou fos..."

(Ninfa do vento, ninfa da luz…)

O bebê se mexeu.

Forte.

Saltou como se dançasse dentro dela.

Kátyra sorriu pela primeira vez em dias.

Mas seus olhos estavam molhados.

Ela cantava para ninguém.

Ou talvez para os deuses que já não respondiam mais.

Torre de Vigília – O Retorno

Tharion pousou o grifo na varanda da torre.

Sujo de poeira, com o peito nu e o capuz ainda abaixado.

O hálito amargo da noite anterior ainda em sua boca.

Mas parou.

Congelou ao ver a silhueta dela ao longe, entre as flores da madrugada.

O cabelo prateado refletia a luz da lua como fogo frio.

Ela estava sozinha. Cantava.

E sorria.

Aquilo partiu alguma coisa nele.

Ele quis ir até ela.

Quis tocar aquele ventre.

Quis se ajoelhar e pedir perdão por tudo — pela dor, pelo silêncio, pela fraqueza.

Mas tudo o que viu, na sua mente, foi o momento da guerra.

Erizy em chamas.

Kátyra voando com Lyzar sangrando.

E a raiva que o cegou.

Aquela cena havia lhe roubado a alma.

Tharion se encostou na parede de pedra e cerrou os punhos.

Queria amá-la.

Ainda a amava.

Mas já não sabia como atravessar o abismo que os separava.

E assim, a noite o engoliu mais uma vez.

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