Sombras de um Amor Eterno
Ilustração de Selene, inspirada na atriz Dior Goodjohn.
Prólogo
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O cheiro de sangue fresco ainda pairava no ar como uma lembrança cruel. Misturado ao odor acre da madeira queimada, criava uma névoa sufocante que se agarrava à pele, aos cabelos, aos pulmões, a noite estava densa, silenciosa demais, como se o mundo houvesse prendido a respiração. Acima das copas das árvores retorcidas, a lua cheia brilhava num tom pálido, quase indiferente – vento soprava leve – mas nem ele ousava quebrar o luto da floresta.
A clareira parecia um altar profano. As árvores em volta se curvavam como sentinelas antigas, testemunhas silenciosas do que havia acontecido ali. Galhos retorcidos se estendiam como dedos em julgamento. As folhas secas no chão formavam um tapete irregular, coberto por manchas escuras que o tempo não apagaria tão cedo.
No centro da clareira, ajoelhada, Selene. O corpo inteiro tremia. As mãos estavam cobertas de vermelho, escorrendo ainda pela ponta dos dedos. Ela mal percebia o frio cortante que descia das montanhas próximas. Estava alheia a tudo, exceto ao próprio desespero. Seus olhos castanhos, outrora vivos, pareciam agora dois poços fundos, tomados por sombras. As sobrancelhas arqueadas emolduravam o olhar dolorido com uma beleza melancólica. O nariz delicado, com aquela leve curvatura que sempre fora motivo de carinho por parte de Aurora, parecia agora endurecido pelo peso da culpa. Os lábios, firmes e corados como pétalas em fim de outono, tremiam sem som. No queixo, o sinal que sempre fora sua marca – quase um toque de artista sobre uma obra-prima. E ao redor de tudo, seus cabelos escuros, cacheados, colavam-se à pele úmida e fria como serpentes tristes, moldando um rosto que parecia esculpido com dor.
Selene era linda, como as pinceladas gentis de um artista em uma obra de arte, delicadas e precisas, mas que carregavam uma intensidade silenciosa. Sua beleza não era apenas física; ela se desdobrava em sua alma, transbordando em cada gesto, em cada olhar, em cada palavra não dita. Havia algo de etéreo nela, como se fosse feita da mesma matéria que as estrelas, fugaz e imortal ao mesmo tempo. Seu rosto, agora marcado pela dor, ainda exalava uma graça incomum, como uma flor que, mesmo murcha, conserva sua essência no perfume do vento.
No entanto, havia algo mais profundo em sua beleza. Não era apenas a suavidade das feições ou a simetria do corpo, mas a força que emanava de sua fragilidade. Como um rio sereno que esconde as correntes subterrâneas, Selene sempre foi mais do que aparentava. Sua beleza estava nas sombras que ela carregava dentro de si, no peso das escolhas, no silêncio das palavras não ditas. Como um quadro que, ao ser analisado por mais tempo, revela camadas ocultas, a verdadeira essência de Selene se desvelava aos poucos, de maneira dolorosa e sincera.
Mas agora, ajoelhada no meio de uma clareira silenciosa, rodeada pelo cheiro da morte e pelo lamento da terra, parecia algo entre uma deusa ferida e um demônio derrotado. Uma criatura marcada por amor, fúria… e perda.
Diante dela, o corpo de Aurora. Estendido sobre o solo úmido, entre folhas e musgo. O vestido branco, agora encharcado em vermelho escuro, ainda ondulava levemente com o vento, como se recusasse a aceitar a imobilidade. Os cabelos negros se espalhavam como tinta sobre a terra. Entre os lábios entreabertos, não havia mais promessas. Apenas o silêncio. Os olhos, grandes, doces, avelã… ainda estavam abertos. Fitando o nada.
— Você contou pra eles. – sussurrou Selene, a voz baixa como o estalar de uma vela morrendo. — Você... me entregou.
As palavras ecoaram sem resposta. No fundo da floresta, um corvo gritou e se calou, a dor dentro dela explodiu como uma tempestade, mas por fora Selene permaneceu imóvel, congelada em sua própria culpa.
Ela se lembrava do fogo. Das tochas. Das vozes raivosas que gritavam seu nome como se fosse maldição. A cidade inteira se voltou contra ela como um animal ferido. Tudo por causa de uma confissão dita na escuridão, uma palavra sussurrada por alguém que ela amava. Uma vela acesa na casa errada. Um segredo revelado. E olhos demais observando.
Aurora havia prometido amor. Havia dito que jamais a machucaria. Tinha sorrido entre beijos, tinha jurado lealdade com os dedos entrelaçados aos seus. Mas ali, diante do corpo que esfriava, Selene só enxergava a sombra da traição.
A fúria tomara seu coração antes que o amor pudesse impedi-la. Foi mais fácil acreditar na dor do que no abandono. Mais fácil destruir do que enfrentar o vazio. No fim, o sangue foi derramado pelas próprias mãos. Pelas mãos que um dia afagaram o rosto de Aurora com carinho. Que tocaram sua pele com reverência.
Ela se deitou ao lado do corpo da amada. Deitou-se como quem desiste. Pressionou o rosto contra o sangue ainda morno, tentando absorver aquele calor, gravar em si o último resquício de vida. Seus dedos tocaram os fios escuros com delicadeza desesperada. Como se ao tocar, pudesse trazer de volta. Como se ainda houvesse tempo.
— Eu te amei... – murmurou, e a voz quebrou como vidro fino. — Mesmo que você tenha me destruído.
O céu permaneceu mudo. As estrelas observavam, distantes, indiferentes. A lua parecia zombar. Nada mais restava senão o silêncio, o corpo e a promessa quebrada.
A noite avançou devagar. O sangue secou sobre a terra, formando crostas escuras. O vestido se tornou apenas mais uma mancha branca entre folhas. E quando a última lágrima caiu, Selene se ergueu.
Ficou de pé lentamente, como se algo dentro dela se partisse a cada movimento. Já não tremia. Seus olhos estavam secos, frios. Já não havia humanidade ali. Apenas uma criatura imortal, condenada a carregar o peso do próprio erro. Caminhou em direção às sombras da floresta, sumindo entre as árvores sem olhar para trás.
E o tempo passou.
As décadas viraram poeira na memória do mundo. A clareira foi engolida pela floresta, o sangue lavado por chuvas, o nome de Aurora esquecido pelas bocas humanas. Mas não por Selene.
Quatrocentos anos depois, ela a viu de novo.
Estava viva. E não estava.
O mesmo rosto, moldado em outra jovem. Os olhos não eram exatamente iguais, mas traziam o mesmo brilho curioso. Os lábios, a mesma curvam suave. O cabelo… um pouco mais claro, mas ainda assim familiar. O riso era diferente. Mais leve. A voz também. Mas era ela. Não havia dúvidas.
Selene soube na hora. O destino lhe oferecia uma segunda chance. Talvez um recomeço. Talvez uma redenção. Ou talvez apenas um castigo mais cruel.
Evangeline era o nome que ela carregava agora. Um nome novo, uma história nova, sem lembranças. Sem mágoas. Sem amor. Mas Selene sentiu tudo de novo. A mesma chama. O mesmo arrepio. O mesmo desejo de tocar. De proteger. De amar.
Ela se aproximou devagar, com cautela. Como se o tempo não tivesse passado. Como se não houvesse sangue entre elas. Como se pudesse apagar o passado apenas olhando para aqueles olhos. Mas o passado não se apaga. Nunca desaparece. Apenas adormece, à espera de acordar.
E um dia, Selene sabia, ele despertaria.
Porque o passado… sempre encontra um jeito de voltar.
queria mais evitar.
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Atualizado até capítulo 28
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