Ilustração de Selene, inspirada na atriz Dior Goodjohn.
Prólogo
🪻
O cheiro de sangue fresco ainda pairava no ar como uma lembrança cruel. Misturado ao odor acre da madeira queimada, criava uma névoa sufocante que se agarrava à pele, aos cabelos, aos pulmões, a noite estava densa, silenciosa demais, como se o mundo houvesse prendido a respiração. Acima das copas das árvores retorcidas, a lua cheia brilhava num tom pálido, quase indiferente – vento soprava leve – mas nem ele ousava quebrar o luto da floresta.
A clareira parecia um altar profano. As árvores em volta se curvavam como sentinelas antigas, testemunhas silenciosas do que havia acontecido ali. Galhos retorcidos se estendiam como dedos em julgamento. As folhas secas no chão formavam um tapete irregular, coberto por manchas escuras que o tempo não apagaria tão cedo.
No centro da clareira, ajoelhada, Selene. O corpo inteiro tremia. As mãos estavam cobertas de vermelho, escorrendo ainda pela ponta dos dedos. Ela mal percebia o frio cortante que descia das montanhas próximas. Estava alheia a tudo, exceto ao próprio desespero. Seus olhos castanhos, outrora vivos, pareciam agora dois poços fundos, tomados por sombras. As sobrancelhas arqueadas emolduravam o olhar dolorido com uma beleza melancólica. O nariz delicado, com aquela leve curvatura que sempre fora motivo de carinho por parte de Aurora, parecia agora endurecido pelo peso da culpa. Os lábios, firmes e corados como pétalas em fim de outono, tremiam sem som. No queixo, o sinal que sempre fora sua marca – quase um toque de artista sobre uma obra-prima. E ao redor de tudo, seus cabelos escuros, cacheados, colavam-se à pele úmida e fria como serpentes tristes, moldando um rosto que parecia esculpido com dor.
Selene era linda, como as pinceladas gentis de um artista em uma obra de arte, delicadas e precisas, mas que carregavam uma intensidade silenciosa. Sua beleza não era apenas física; ela se desdobrava em sua alma, transbordando em cada gesto, em cada olhar, em cada palavra não dita. Havia algo de etéreo nela, como se fosse feita da mesma matéria que as estrelas, fugaz e imortal ao mesmo tempo. Seu rosto, agora marcado pela dor, ainda exalava uma graça incomum, como uma flor que, mesmo murcha, conserva sua essência no perfume do vento.
No entanto, havia algo mais profundo em sua beleza. Não era apenas a suavidade das feições ou a simetria do corpo, mas a força que emanava de sua fragilidade. Como um rio sereno que esconde as correntes subterrâneas, Selene sempre foi mais do que aparentava. Sua beleza estava nas sombras que ela carregava dentro de si, no peso das escolhas, no silêncio das palavras não ditas. Como um quadro que, ao ser analisado por mais tempo, revela camadas ocultas, a verdadeira essência de Selene se desvelava aos poucos, de maneira dolorosa e sincera.
Mas agora, ajoelhada no meio de uma clareira silenciosa, rodeada pelo cheiro da morte e pelo lamento da terra, parecia algo entre uma deusa ferida e um demônio derrotado. Uma criatura marcada por amor, fúria… e perda.
Diante dela, o corpo de Aurora. Estendido sobre o solo úmido, entre folhas e musgo. O vestido branco, agora encharcado em vermelho escuro, ainda ondulava levemente com o vento, como se recusasse a aceitar a imobilidade. Os cabelos negros se espalhavam como tinta sobre a terra. Entre os lábios entreabertos, não havia mais promessas. Apenas o silêncio. Os olhos, grandes, doces, avelã… ainda estavam abertos. Fitando o nada.
— Você contou pra eles. – sussurrou Selene, a voz baixa como o estalar de uma vela morrendo. — Você... me entregou.
As palavras ecoaram sem resposta. No fundo da floresta, um corvo gritou e se calou, a dor dentro dela explodiu como uma tempestade, mas por fora Selene permaneceu imóvel, congelada em sua própria culpa.
Ela se lembrava do fogo. Das tochas. Das vozes raivosas que gritavam seu nome como se fosse maldição. A cidade inteira se voltou contra ela como um animal ferido. Tudo por causa de uma confissão dita na escuridão, uma palavra sussurrada por alguém que ela amava. Uma vela acesa na casa errada. Um segredo revelado. E olhos demais observando.
Aurora havia prometido amor. Havia dito que jamais a machucaria. Tinha sorrido entre beijos, tinha jurado lealdade com os dedos entrelaçados aos seus. Mas ali, diante do corpo que esfriava, Selene só enxergava a sombra da traição.
A fúria tomara seu coração antes que o amor pudesse impedi-la. Foi mais fácil acreditar na dor do que no abandono. Mais fácil destruir do que enfrentar o vazio. No fim, o sangue foi derramado pelas próprias mãos. Pelas mãos que um dia afagaram o rosto de Aurora com carinho. Que tocaram sua pele com reverência.
Ela se deitou ao lado do corpo da amada. Deitou-se como quem desiste. Pressionou o rosto contra o sangue ainda morno, tentando absorver aquele calor, gravar em si o último resquício de vida. Seus dedos tocaram os fios escuros com delicadeza desesperada. Como se ao tocar, pudesse trazer de volta. Como se ainda houvesse tempo.
— Eu te amei... – murmurou, e a voz quebrou como vidro fino. — Mesmo que você tenha me destruído.
O céu permaneceu mudo. As estrelas observavam, distantes, indiferentes. A lua parecia zombar. Nada mais restava senão o silêncio, o corpo e a promessa quebrada.
A noite avançou devagar. O sangue secou sobre a terra, formando crostas escuras. O vestido se tornou apenas mais uma mancha branca entre folhas. E quando a última lágrima caiu, Selene se ergueu.
Ficou de pé lentamente, como se algo dentro dela se partisse a cada movimento. Já não tremia. Seus olhos estavam secos, frios. Já não havia humanidade ali. Apenas uma criatura imortal, condenada a carregar o peso do próprio erro. Caminhou em direção às sombras da floresta, sumindo entre as árvores sem olhar para trás.
E o tempo passou.
As décadas viraram poeira na memória do mundo. A clareira foi engolida pela floresta, o sangue lavado por chuvas, o nome de Aurora esquecido pelas bocas humanas. Mas não por Selene.
Quatrocentos anos depois, ela a viu de novo.
Estava viva. E não estava.
O mesmo rosto, moldado em outra jovem. Os olhos não eram exatamente iguais, mas traziam o mesmo brilho curioso. Os lábios, a mesma curvam suave. O cabelo… um pouco mais claro, mas ainda assim familiar. O riso era diferente. Mais leve. A voz também. Mas era ela. Não havia dúvidas.
Selene soube na hora. O destino lhe oferecia uma segunda chance. Talvez um recomeço. Talvez uma redenção. Ou talvez apenas um castigo mais cruel.
Evangeline era o nome que ela carregava agora. Um nome novo, uma história nova, sem lembranças. Sem mágoas. Sem amor. Mas Selene sentiu tudo de novo. A mesma chama. O mesmo arrepio. O mesmo desejo de tocar. De proteger. De amar.
Ela se aproximou devagar, com cautela. Como se o tempo não tivesse passado. Como se não houvesse sangue entre elas. Como se pudesse apagar o passado apenas olhando para aqueles olhos. Mas o passado não se apaga. Nunca desaparece. Apenas adormece, à espera de acordar.
E um dia, Selene sabia, ele despertaria.
Porque o passado… sempre encontra um jeito de voltar.
queria mais evitar.
Capítulo 1
A carruagem estremeceu.
Os cascos dos cavalos, batendo nas pedras molhadas da estrada, Selene olhou pela janela embaçada, os pingos de chuva se misturando a escuridão do fim da tarde o céu estava carregado com nuvens tão densas que quase pareciam uma parede sólida, cobrindo o vilarejo diante dela. O vento uivava agitando as árvores e a chuva caía forte criando uma sinfonia de sons que reverberavam nas telhas e nas ruas estreitas de pedra.
Ela sempre preferiu o silêncio das tempestades – era mais fácil se perder na natureza do que nas pessoas – havia se mudado muitas vezes, mas o que a impelia a continuar em movimento não era apenas o medo de ser descoberta, era o peso das memórias, da solidão. Não era fácil ser imortal e carregar o fardo da vida eterna, sempre em constante mudança de aldeias, de nome, de história.
O vilarejo era simples, uma aldeia isolada, com casinhas de pedra e madeira. O calor da lareira de algum lugar distante ainda não chegara até ela, mas senti o cheiro da madeira queimando e da Terra molhada. Mesmo assim, um pequeno calafrio lhe percorreu a espinha, o frio da tempestade ainda estava em seu corpo, e ela sentiu fome, uma fome diferente, que não era apenas por comida sim que o desejo por sangue, algo que sempre parecia se intensificar durante esses dias de mudança.
A carruagem finalmente parou diante de uma estalagem modesta, com uma placa que balançava suavemente com o vento, o som da chuva no telhado abafava qualquer outro som que pudesse vir do vilarejo. Selene deu algumas moedas ao cocheiro e desceu da carruagem, suas botas de couro afundando ligeiramente no barro, ela puxou a gola de sua capa para se proteger da chuva e se dirigiu até a porta da estalagem, batendo levemente.
— Entre! – A voz veio de dentro, abafada pelo som da tempestade, e a porta se abriu antes que ela pudesse tocá-la novamente.
Uma jovem mulher, com cabelos castanhos presos em uma trança frouxa, o rosto dela parecia cheio de vida e doçura, seus traços pareciam fugir aos rígidos padrões idealizados, mas que carregam um encanto inegável, as bochechas levemente arredondadas e coradas, seus olhos escuros, grandes e curiosos – como quem cresceu observando o vai e vem de viajantes, mercadores e artistas –, as sobrancelhas suavemente arqueadas, traziam leveza ao olhar e acentuavam a expressão afetuosa, o nariz discreto – levemente arredondado –, seus cabelos, espessos e escuros, estavam presos em uma trança solta que repousava sobre o ombro – alguns fios rebeldes escapando na altura das têmporas e da nuca, os lábios curvaram-se em um sorriso ao ver Selene encharcada.
— Parece que o céu não quis colaborar com a sua chegada. – ela disse, como tom de simpatia. — Entre, por favor, vou prepará-la um chá quente.
Selene não disse nada por um momento, observando a jovem à sua frente. Havia algo de acolhedor nela, uma luz tranquila que contrastava com a tempestade lá fora.
— Não se preocupe, vou me cuidar. – Respondeu mantendo a voz calma. Ela sempre se mantinha distante, mas havia algo na forma como a jovem a olhava que fez Selene hesitar.
Aqueles olhos... eram como uma janela para algo que Selene não conseguia entender, eles eram profundos, escuros, mas ao mesmo tempo brilhavam com uma intensidade única, quase hipnotizante. O olhar dela não era comum — havia algo de tão direto, de tão penetrante, que Selene sentiu uma pontada de inquietação, mas também uma atração irresistível. Não era como o olhar de quem observava de fora, era o olhar de quem vê além, de quem compreende sem palavras.
— Não pode ficar na chuva, você vai se resfriar. – a jovem insistiu, com uma energia que fez Selene e se sentir um pouco desconfortável. — Meu nome é Aurora, sou filha dos donos daqui. Venha, vamos levá-la ao calor da lareira.
Selene acenou com a cabeça e seguiu a Aurora para dentro. O interior da estalagem tinha um aroma reconfortante de madeira queimada, como a lareira iluminando o ambiente com uma luz suave. O lugar era pequeno, mas é aconchegante, a mobília simples e rústica, combinava com a rusticidade do vilarejo.
Aurora pediu para Selene se sentar perto da lareira e foi até a cozinha preparar algo quente.
— Não precisa, realmente. – Começou a dizer Selene, ainda tentando manter uma certa distância. Ela estava acostumada anão depender de ninguém. Mas Aurora não parecia de esporte está a aceitar um “não” como resposta.
— Não, senhora. – Aurora sorriu de maneira encantadora. — É o mínimo que posso fazer para alguém que chega aqui em uma noite tão ruim. Deixe-me cuidar disso.
Selene observou, um pouco desconcertada, a jovem se mover pela sala. Aurora parecia tão natural em sua atenção e simpatia. Selene tentou afastar os pensamentos, mas algo nela a incomodava – ou talvez, atraía, não sabia dizer ao certo. Seus olhos seguiam Aurora, e Selene sentiu uma espécie de fascinação, algo que ela não sentia há muito tempo.
Aurora voltou com uma xícara de chá fumegante e se sentou ao lado de Selene.
— Você viaja sozinha em uma tempestade como esta? – ela perguntou, olhando a com preocupação.
Selene desviou o olhar e tomou Um gole do chá quente a sensação do líquido queimando sua garganta fez seu corpo se aquecer um pouco, mas não de uma forma que fosse suficiente para espantar o frio que a consumia.
— Às vezes, a solidão é mais segura. – Respondeu como um sorriso enigmático, que Aurora não compreendeu completamente.
Aurora não conseguiu desviar o olhar. Algo na forma de Selene a deixava intrigada, sua beleza era impressionante – de tirar o folego –, mas não era apenas isso, havia algo em sua presença, uma aura de mistério que atraia Aurora de uma forma que ela não conseguia explicar.
Selene percebeu o olhar de Aurora, e uma sensação estranha a invadiu. A jovem não estava apenas sendo educada, havia algo mais. Ela estava interessada, Selene engoliu em seco, sentindo uma leve ansiedade, não era comum que alguém se interessasse por ela assim. Afinal, ela era apenas uma viajante solitária, uma mulher que passava rapidamente pelos lugares, desaparecendo na escuridão sempre que a tempestade se acalmava.
— Você não parece ser do tipo que se importa com a opinião dos outros. – Aurora comentou, observando-a atentamente. Selene deu-lhe um pequeno sorriso.
— É uma boa qualidade para se ter quando se vive sozinha. – Respondeu ela, com um tom suave, mas firme. Ela não queria se abrir mais do que o necessário, mas havia algo em Aurora que fazia com que ela fizesse isso sem querer.
Aurora ficou em silêncio por um momento, ainda olhando para Selene. Ela sentia uma conexão inexplicável, mas não podia entender de onde vinha, algo em Selene a fazia querer conhecê-la mais, saber mais sobre ela, mas, ao mesmo tempo, ela sabia que isso não era prudente. O que ela sentia parecia perigoso e Aurora não sabia o porquê.
(...)
Mais tarde, quando a chuva finalmente diminuíra, Selene se retirou para o quarto que Aurora preparara para ela. A jovem, ainda à porta, a observava com os olhos inquietos.
— Vai ficar aqui por muito tempo?
Selene hesitou, a pergunta parecia simples, mas carregava um peso que ela não conseguia ignorar, olhou por um momento para Aurora, e em seus olhos viu algo que a deixou desconcertada.
— Talvez. – Respondeu ela, sem revelar mais. — Eu vejo o tempo de maneira diferente.
Aurora apenas sorriu, mas o sorriso foi cheio de um mistério que Selene não podia decifrar. Aurora se retirou do quarto, pouco depois Selene se aproximou da janela, sentou-se ali, observando as pequenas gotículas que ainda caiam do céu, sentia-se mais confusa do que deveria, não era normal ser observada assim, ser sentida de uma maneira tão... intensa.
— Você não deveria se aproximar, Aurora. Não agora.
A noite estava apenas começando, e a tempestade que se iniciava novamente lá fora refletia o que se passava dentro de Selene. Algo estava mudando, e ela não sabia se isso era bom ou ruim.
(...)
Assim que a última vela se extinguiu, Selene saiu pela varanda de seu quarto na estalagem.
O breu absoluto da noite a envolveu como um velho conhecido, cúmplice silencioso de seus passos, deslizou para fora como uma sombra viva, os pés descalços mal tocando as tabuas do assoalho. O manto negro que envolvia seu corpo fundia-se a escuridão, tomando-a quase invisível aos olhos alheios.
Na rua de terra batida, o silêncio era quase sagrado, as chaminés já não soltavam fumaça e as janelas estavam cerradas, vigiadas por ramos de arruda penduradas nas ombreiras. A aldeia dormia – inocente, ignorante do que andava entre seus telhado e vielas.
O estômago de Selene roncou em agonia, mas não fome por pão ou caldo que a movia, sua garganta ardia com uma sede brutal, como se nela tivessem sido derramadas brasas incandescentes. Era uma dor seca, antiga, quase ritual. Não havia como ignorá-la.
Precisava se alimentar. Precisava de sangue humano.
Desceu com leveza pelo telhado da estalagem, os dedos agarrando a madeira úmida, e saltou para o chão com a graça de um felino. O manto esvoaçou ao seu redor como asas negras. Na penumbra, ela se movia como se fosse parte do próprio nevoeiro. Seus olhos, agora adaptados à escuridão, buscavam os sinais que o olfato já pressentia: o calor do corpo, o ferro doce do sangue sob a pele.
Seguiu por entre as casas de pedra e madeira, desviando-se das carroças abandonadas e das poças de chuva que ainda refletiam os últimos lampejos das chamas apagadas. A aldeia era pequena, cercada por mata cerrada, e os poucos homens que se arriscavam fora de casa àquela hora ou estavam bêbados ou à beira da loucura. E eram esses os mais fáceis.
Selene farejou o vento e parou. Ali, no fim da rua, perto do poço da praça central, caminhava um homem. Cambaleava. O chapéu desalinhado mal lhe cobria a testa, e sua silhueta era fraca sob o luar rarefeito. Tinha o cheiro do vinho barato da taverna, mas por baixo disso, havia o que ela queria. O sangue pulsando lento, morno, esperando por ela.
Ela sorriu, e o sorriso não carregava prazer nem prazer antecipado. Era apenas instinto.
Sem pressa, avançou pelas sombras, o olhar fixo na presa.
Ainda havia tempo.
A noite era longa, e a morte… silenciosa.
Capítulo 2
Seus olhos turvos mal conseguiram focá-la. Cambaleava sob o peso do vinho barato e da madrugada úmida. Era jovem – talvez nem vinte invernos tivesse ainda completado. A pele pálida contrastava com o rubor da bebida e o brilho incoerente nos olhos.
— Boa noite, minha senhora… – murmurou, com a voz embargada e um sorriso idiota nos lábios. — Está... está perdida?
Selene sorriu. Era um sorriso silencioso, cortante. Não havia malícia ou charme ali – apenas a crueza de um instinto que, naquela noite, falava mais alto do que qualquer humanidade adormecida. Seus olhos âmbar, sombreados pelo capuz escuro, não viam o rapaz. Apenas o calor sob a pele, o sangue sob a carne. Ela não via rostos. Não há rostos quando se tem fome.
— Estou exatamente onde preciso estar. – respondeu, com uma suavidade que quase soava como um canto antigo.
Ela se aproximou, e o manto negro esvoaçou com a brisa da noite. Os cabelos cacheados, ainda úmidos da névoa e da chuva de horas antes, se prenderam em pequenos anéis nas têmporas. Uma mecha escapou, e o rapaz a seguiu com os olhos, como se aquilo – um fio de cabelo – fosse a coisa mais encantadora do mundo. Ele não viu o perigo. Só o calor e a beleza.
A mão de Selene pousou sobre o ombro dele com o cuidado de quem não quer espantar um animal ferido. O toque era morno, quase reconfortante. Por um instante, o jovem pareceu relaxar. Seus ombros caíram, a respiração aliviou. E no instante seguinte… tudo se apagou.
Com uma destreza silenciosa, Selene arrastou para dentro das sombras de uma cocheira abandonada. As tábuas, há muito carcomidas pela umidade e pelo tempo, gemeram suavemente sob seus passos leves. No interior, o cheiro de madeira podre e palha úmida preenchia o ar como um véu. Ratos se enfiaram pelas fendas ao sentir sua presença, e um corvo empoleirado em uma viga soltou um grasnido rouco antes de desaparecer pela noite.
Ali dentro, envolta por sombras antigas, ela se ajoelhou ao lado do corpo largado. O coração dele ainda batia – fraco, irregular, mas útil.
Ela afastou o capuz. Seus olhos âmbar brilharam sob a tênue luz da lua filtrada pelas frestas do telhado. O frio da madrugada cortava sua pele morena como lâminas de gelo, mas ela já mal o sentia. A fome era mais forte. A sede, brutal.
— Vai acabar rápido. – murmurou, talvez para si mesma, talvez como um último alento ao morto-vivo que jazia ali.
Inclinou-se devagar, os lábios tocando o pescoço com precisão cerimonial. Quando os caninos atravessaram a pele, não houve grito. Apenas um suspiro. E depois, o silêncio. O sangue escorreu quente, doce, afogando a ardência que lhe queimava as entranhas. Cada gole era uma chama apagada, uma lembrança sufocada. Segurou o corpo contra o seu com uma delicadeza quase íntima, sentindo o calor se dissipar até que restasse apenas o frio da morte.
Quando o coração cessou, Selene recuou. O corpo tombou com um baque abafado sobre a terra molhada.
Ela o observou por um instante. Limpou os lábios com o dorso da mão. O sangue ainda escorria de um canto da boca, mas ela não o enxugou por completo. Não havia pressa. Nem culpa.
Mas havia prudência.
Aquela aldeia era pequena. Um corpo, mesmo jogado na lama, levantaria perguntas. E perguntas levavam a caçadores. E os caçadores... levavam morte – às vezes dela, às vezes de outros.
Selene se ergueu, o manto envolvendo novamente o corpo esguio. Olhou ao redor. A cocheira estava em ruínas, mas atrás dela havia uma trilha estreita de terra dura, quase esquecida, por onde os lavradores passavam com seus feixes de trigo e barris de vinagre. A trilha levava até a beira do rio, onde a vegetação crescia espessa e o solo afundava sob os pés. Um bom lugar.
Com uma força impossível para alguém de aparência tão leve, ergueu o cadáver nos braços. Ele pendia mole, como um boneco mal costurado. Seus cabelos ensopados ainda pingavam sangue.
Selene seguiu pela trilha, desviando-se de galhos baixos e raízes traiçoeiras. A floresta ali era densa, e o mato alto abafava os sons. Ainda assim, ela ouvia tudo: o ranger distante de uma janela batendo ao vento, o choro abafado de um recém-nascido, o baque seco de um machado esquecido no tronco. Nada lhe escapava.
O rio surgiu à frente como uma serpente adormecida, negro e largo, deslizando entre pedras cobertas de musgo. A lua, agora quase escondida pelas nuvens, lançava um brilho fosco sobre a água escura. O ar ali era úmido e carregado do cheiro de limo e podridão vegetal.
Selene encontrou uma fenda entre duas grandes rochas, onde a corrente formava um redemoinho silencioso. A água girava, arrastando folhas, galhos e pequenos ossos de animais. Um bom lugar.
Ajoelhou-se. Ajoelhar-se não era um gesto de humildade – era apenas necessidade. Abaixou o corpo e o empurrou para dentro da água fria. Os dedos do rapaz tremularam ao tocar a corrente, como se protestassem contra o esquecimento. Mas logo afundaram, engolidos pelas trevas líquidas.
Viu-o desaparecer. Não havia cerimônia. Era apenas mais um fim. Quando a última dobra da roupa se perdeu nas águas, Selene se levantou. O vento soprou contra seu rosto, espalhando seus cachos pelo ar, como serpentes vivas ao redor da cabeça.
Ficou ali por um momento. Respirou fundo. O cheiro de sangue ainda a cercava, mas já não era dor. Era saciedade.
Com um último olhar ao rio, girou nos calcanhares e sumiu entre as árvores, tão silenciosa quanto havia chegado. Atrás de si, só o som da água corrente e o murmúrio das folhas.
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De volta à aldeia, o silêncio era denso como a névoa que rastejava pelas ruas de pedra. As luzes das janelas estavam apagadas, e o vilarejo mergulhava em uma quietude quase sagrada. Os lampiões nas fachadas elegantes oscilavam ao sabor do vento, projetando sombras longas que dançavam nos muros de pedra bem lavrada. A umidade da noite fazia as pedras brilharem como vidro sob a luz difusa da lua, e o cheiro de lenha queimada – vindo de lareiras embutidas em casas bem cuidadas –, que durante o dia confortava, agora exalava um lamento antigo, sutil, um eco de solidão entre paredes ornamentadas.
Selene caminhava como um espectro pela aldeia adormecida. Seus passos quase não se faziam ouvir sobre o solo molhado. Contornou a entrada principal da estalagem – um casarão de dois andares, com alicerces firmes, varandas de madeira entalhada e janelas altas adornadas com cortinas pesadas. As colunas da entrada sustentavam uma pequena marquise que protegia os hóspedes da chuva, e vasos de ferro forjado ainda guardavam vestígios de lavanda e ervas secas.
Ela preferiu subir pelos fundos, onde uma escada de madeira envernizada, coberta por um pequeno alpendre, levava diretamente ao corredor superior. Os degraus rangiam suavemente, não por negligência, mas pelo tempo e pela história. A madeira era antiga, porém bem cuidada – polida, firme. Havia tapeçarias discretas nos corredores, e uma luz fraca de lamparinas a óleo tremeluzia em suportes de latão ao longo da parede.
Seu quarto era o último do corredor, uma suíte voltada para o leste, com uma janela que dava vista para a parte mais antiga da aldeia e os campos ao longe. A porta, de madeira nobre, era adornada com molduras discretas. Ao entrar, Selene não acendeu nenhuma vela. A escuridão era sua aliada – antiga, íntima, confiável.
O aposento era confortável, pensado para viajantes com bom gosto: uma cama de dossel com cortinas finas de linho, móveis de madeira escura polida, um espelho de moldura dourada junto à penteadeira, e um tapete espesso cobrindo parte do assoalho de tábuas largas. Um pequeno lustre de cristal pendia no centro do teto, agora apagado, mas refletia fragmentos da luz da lua que entrava pela janela.
Tirou o manto úmido com gestos lentos e o pendurou no cabideiro de ferro ornamentado. As botas, bem moldadas e de couro fino, foram deixadas ao lado da cama. Seus pés descalços tocaram o tapete felpudo, ainda morno do calor que a lareira havia deixado mais cedo. Mas ela não se dirigiu à cama. Caminhou até a janela e afastou a cortina espessa de veludo azul-escuro. A aldeia dormia. Mas ela sabia que nem todos dormiam.
O vidro estava frio ao toque. No reflexo, viu seu rosto desenhado em sombras: olhos profundos, cabelos escuros e cacheados derramando-se sobre os ombros, a pele parda iluminada pela luz espectral da lua. Havia algo em sua própria imagem que a fez hesitar. Um cansaço antigo, que nenhuma noite de descanso poderia desfazer.
Sentou-se no parapeito largo da janela, abraçando os joelhos. O frio do vidro contra as costas era uma lembrança bem-vinda da realidade. Ainda sentia o gosto metálico do sangue na boca, e a memória do olhar de Aurora queimava em sua mente como uma brasa sob a pele. Aquele olhar... tímido, mas afiado. Curioso, mas contido. Havia algo nele que a desarmava.
Mordeu o lábio inferior, distraída. Havia calor em Aurora – não o calor vulgar da carne, mas algo mais raro, mais perigoso. Um calor que despertava sensações esquecidas, emoções que ela há muito aprendera a sufocar.
A tempestade havia cessado, mas dentro de Selene, outra se formava – lenta, densa, irresistível. E desta vez, não havia fuga fácil.
Lá fora, os lampiões ainda tremeluziam na madrugada. Um cão uivou ao longe. E a noite, com seus segredos e silêncios, envolvia tudo com braços frios.
Selene ainda não compreendia o que Aurora havia acendido dentro dela. Mas sentia, com uma certeza incômoda, que seria impossível apagar.
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