Capítulo 3
Na manhã seguinte, a chuva tamborilava suavemente contra as vidraças da estalagem, como dedos invisíveis pedindo entrada. O céu, de um cinza carregado, lançava sombras melancólicas sobre os móveis de madeira escura e encerada do quarto onde Selene repousava. As cortinas pesadas de linho cru filtravam a luz branda da manhã, e o ar, levemente úmido, trazia o perfume das pedras molhadas e do chá de hortelã servido no salão inferior.
Selene despertou mais tarde do que de costume. Seus olhos se abriram devagar, acostumando-se à luz pálida que atravessava os vitrais da janela de seu quarto. As cortinas de linho cru balançavam levemente com a brisa que conseguia se infiltrar pelas frestas da madeira. Espreguiçou-se lentamente, deixando que seus cachos desgrenhados se soltassem dos fios da noite. O aroma de pão fresco e café fervido subia do andar de baixo, misturado ao perfume amadeirado do sabão de castelã que ela usara no dia anterior. A água morna de uma bacia trazida por uma das criadas ajudou a dissipar os últimos vestígios do sono. Selene banhou-se com paciência, seus dedos percorrendo os próprios braços como se tentasse recordar quem era, de onde vinha, e por que agora tudo parecia tão... suspenso no tempo.
Vestiu um vestido de linho bege com rendas discretas no decote e mangas bufantes que terminavam justas nos pulsos. Amava vestidos assim, elegantes sem serem ostentosos. Escovou os cabelos com cuidado, seus cachos escuros formando uma moldura harmoniosa ao redor do rosto. Havia beleza em sua tranquilidade. Beleza e mistério.
Quando desceu as escadas da estalagem, o ambiente parecia acolhê-la em um abraço morno. Havia uma grande lareira acesa no canto da sala principal, onde algumas poucas pessoas se aqueciam com canecas de chá ou vinho quente. As paredes de pedra e madeira tinham uma tonalidade âmbar, aquecidas pelo fogo e pelo aroma de especiarias. Sobre a mesa principal, disposta próxima à janela, repousava uma jarra de leite fresco, frutas da estação e pães que pareciam ter saído minutos antes do forno. As prateleiras nos cantos da sala exibiam livros gastos e estatuetas de madeira talhada – tudo denunciava uma estalagem que, apesar de modesta, sabia agradar aos mais exigentes.
Selene sentou-se sozinha, escolhendo uma mesa próxima à janela, onde podia ver a chuva descer com elegância sobre o jardim de ervas do lado de fora. Enquanto passava mel em uma fatia de pão, notou algo: estava sendo observada.
Virando os olhos com discrição, encontrou o olhar de Aurora, a filha dos donos da estalagem.
A jovem estava de pé perto do balcão, fingindo arrumar as louças, embora claramente sua atenção estivesse voltada para Selene. Tinha a pele morena clara, quase dourada, os olhos escuros profundos e vivos. Os cabelos, longos e presos em uma trança solta, contrastavam com o avental claro que cobria seu vestido azul-marinho.
Selene não desviou o olhar. Havia algo intrigante em Aurora – uma presença silenciosa, quase inquietante. Mas a moça não se aproximou. Não disse “bom dia”, não fez menção de servir, nem de perguntar se estava tudo ao gosto da hóspede. Apenas a olhava, como se desejasse guardar cada detalhe dela em segredo.
Selene sorriu de leve, quase imperceptivelmente. Aquilo não a incomodava. Muito pelo contrário – havia um toque de poesia em ser olhada assim.
Continuou seu desjejum em silêncio. A chuva persistia como um pano de fundo sonoro que parecia proteger aquele instante do mundo exterior. A cada mordida, o sabor dos pães e o calor da infusão de hibisco a envolviam em conforto. Mas o olhar de Aurora... esse queimava mais do que o chá.
Após alguns minutos, Aurora se afastou discretamente, como se fugisse de um flagra. Selene acompanhou com os olhos. A jovem atravessou o salão e sumiu por uma porta lateral que levava, provavelmente, à cozinha. Selene voltou sua atenção à janela, mas o pensamento ficou preso naquela figura que lhe despertava curiosidade e algo mais profundo – algo que ela ainda não queria nomear.
Mais tarde, já com o salão vazio e o fogo da lareira crepitando em ritmo preguiçoso, Selene explorou os arredores da estalagem. Passou pelo saguão decorado com tapeçarias de cenas bucólicas e bustos de mármore que certamente eram herança de tempos mais antigos. Havia uma sala de leitura reclusa, com janelas arqueadas e estantes repletas de livros encadernados em couro – muitos dos quais escritos em francês e latim.
Selene sentia prazer ao caminhar por ali, os dedos deslizando pelas lombadas dos livros, os olhos saboreando o silêncio carregado de história. Estava longe de casa, de tudo que conhecia, mas aquela estalagem lhe dava um tipo raro de paz. Uma paz que ela estranhava, por vezes até temia. Afinal, quando se acostumava demais com a tranquilidade, era porque algo se aproximava para tirá-la.
Ao fim da tarde, a chuva persistia. Sentada em uma das poltronas perto da lareira da sala de leitura, Selene lia um volume empoeirado de poesia renascentista quando ouviu passos suaves se aproximarem. Era Aurora, desta vez com os cabelos meio soltos, apenas uma fita azul os prendia parcialmente.
— Encontra o que procura, senhorita Selene? – perguntou com uma voz suave, porém firme. Selene ergueu os olhos devagar, fechando o livro com delicadeza. Sorriu com gentileza.
— Creio que sim... E ainda assim, não sei exatamente o que busco. – respondeu.
Aurora mordeu o canto do lábio inferior. Os olhos dela vacilaram por um segundo antes de assentir.
— Às vezes, o lugar certo nos ajuda a descobrir.
Um silêncio se fez entre elas, denso, porém não desconfortável. Aurora aproximou-se mais, com um pano de linho na mão, fingindo tirar o pó de uma das prateleiras próximas.
— É um lugar bonito. – disse Selene, observando-a com interesse sincero.
— Meus pais o construíram com esforço. Eu gosto de ajudar aqui, mesmo que não precise.
— Muitos diriam que é perda de tempo, quando se tem escolha.
— Talvez. Mas eu gosto de ver as pessoas. As que vêm e vão. É... interessante.
Selene ergueu uma sobrancelha, mas manteve o sorriso contido.
— Inclusive observar as que tomam café pela manhã e se sentam perto da janela?
Aurora parou por um instante. O pano em sua mão congelou no ar. Seus olhos encontraram os de Selene e, por um breve momento, havia algo além de curiosidade — admiração, talvez desejo, mas certamente um toque de hesitação.
— Eu... desculpe, não queria parecer indelicada.
Selene inclinou levemente a cabeça, o sorriso ainda presente nos lábios.
— Não foi. – respondeu, com uma calma que parecia dançar entre a ironia e a gentileza. — Mas talvez devêssemos tentar algo menos... enigmático, não acha?
Aurora franziu ligeiramente a testa, confusa.
— Algo menos enigmático?
— Sim. – disse Selene, pousando o livro sobre o colo com elegância. — Como conversar. De verdade. Sem espiar de longe ou fingir que está limpando uma prateleira já limpa.
Aurora arregalou os olhos, surpresa, depois riu com suavidade – um som que parecia aquecer o ar ao redor.
— Está bem... posso tentar. Conversar de verdade, quero dizer.
Selene sorriu, satisfeita, e fez um gesto leve com a mão, convidando-a a sentar-se na poltrona ao lado.
— Ótimo. Então, que tal começarmos de forma mais amigável? Já sabemos o nome uma da outra, é verdade, mas acho que ainda não nos dissemos “olá” como se deve.
Aurora se aproximou, sentando-se com delicadeza. Os olhos ainda brilhavam com certa timidez, mas havia ali um brilho novo – o tipo de coragem que nasce entre duas pessoas que, de algum modo, reconhecem o terreno em comum antes mesmo de pisá-lo.
— Olá, Selene. – disse ela, com um sorriso sincero.
— Olá, Aurora.
O silêncio que se seguiu já não era o mesmo de antes. Era denso, mas confortável. Um tipo de silêncio que não pressiona – apenas permite. Como o intervalo entre uma pergunta e uma resposta que se sabe inevitável.
Aurora sorriu com mais força, dessa vez. A tensão inicial começava a se dissipar, substituída por uma eletricidade sutil, como se ambas pressentissem que aquele momento, tão breve, era o início de algo – e ainda assim, nenhuma ousasse dar nome ao que nascia ali.
— Gosta de poesia? – perguntou Aurora, apontando com o queixo para o livro que descansava sobre o colo de Selene.
— Gosto – respondeu ela, tocando com os dedos a capa já um pouco gasta. — Ela diz verdades que as palavras comuns não ousam.
Aurora pareceu tocar essa ideia com os olhos, absorvendo-a como quem escuta uma canção pela primeira vez e já sabe de cor a melodia. Havia algo na maneira como ela olhava para Selene – uma escuta inteira, uma presença sem esforço.
Antes que pudesse responder, uma voz ecoou da cozinha, firme, mas carregada de afeto. Era a mãe de Aurora, chamando-a com urgência – provavelmente para ajudar com os preparativos do jantar.
Aurora se levantou com pesar visível nos ombros, como se não quisesse romper o encantamento daquela conversa.
— Eu... até mais tarde. – disse, fazendo um leve aceno com a cabeça.
Selene apenas assentiu, os olhos acompanhando o movimento delicado da jovem até ela desaparecer pela porta. Quando está se fechou, o quarto pareceu respirar de outro modo. A chuva continuava a tamborilar nas janelas, mas agora sua música soava diferente – como se cantasse para dentro.
Mais tarde, ao retornar para o quarto que lhe fora designado no andar de cima da estalagem, Selene ouviu o assobio do vento atravessando as frestas das janelas antigas. Não acendeu velas. Deitou-se envolta pela escuridão e pelo sussurro da chuva. A madeira do soalho estalava aqui e ali, como se a casa também sonhasse.
“Aurora.”
O nome ecoava em sua mente com a força de um trovão mudo. Um nome que parecia mais antigo do que as paredes que a cercavam. Mais profundo do que o silêncio noturno.
Selene fechou os olhos. Havia algo de sagrado na imagem daquela jovem – o modo como seus cabelos ondulavam quando ela se movia, a forma como seu olhar hesitava e depois mergulhava fundo. Era como olhar para o próprio coração em forma humana.
E, embora ainda não compreendesse bem por que, Selene sentia que não passaria muito tempo antes que Aurora batesse à sua porta.
Fosse literal ou simbolicamente.
Porque certos olhares, ela sabia, nunca são apenas olhares.
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Atualizado até capítulo 28
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