Capítulo 2
Seus olhos turvos mal conseguiram focá-la. Cambaleava sob o peso do vinho barato e da madrugada úmida. Era jovem – talvez nem vinte invernos tivesse ainda completado. A pele pálida contrastava com o rubor da bebida e o brilho incoerente nos olhos.
— Boa noite, minha senhora… – murmurou, com a voz embargada e um sorriso idiota nos lábios. — Está... está perdida?
Selene sorriu. Era um sorriso silencioso, cortante. Não havia malícia ou charme ali – apenas a crueza de um instinto que, naquela noite, falava mais alto do que qualquer humanidade adormecida. Seus olhos âmbar, sombreados pelo capuz escuro, não viam o rapaz. Apenas o calor sob a pele, o sangue sob a carne. Ela não via rostos. Não há rostos quando se tem fome.
— Estou exatamente onde preciso estar. – respondeu, com uma suavidade que quase soava como um canto antigo.
Ela se aproximou, e o manto negro esvoaçou com a brisa da noite. Os cabelos cacheados, ainda úmidos da névoa e da chuva de horas antes, se prenderam em pequenos anéis nas têmporas. Uma mecha escapou, e o rapaz a seguiu com os olhos, como se aquilo – um fio de cabelo – fosse a coisa mais encantadora do mundo. Ele não viu o perigo. Só o calor e a beleza.
A mão de Selene pousou sobre o ombro dele com o cuidado de quem não quer espantar um animal ferido. O toque era morno, quase reconfortante. Por um instante, o jovem pareceu relaxar. Seus ombros caíram, a respiração aliviou. E no instante seguinte… tudo se apagou.
Com uma destreza silenciosa, Selene arrastou para dentro das sombras de uma cocheira abandonada. As tábuas, há muito carcomidas pela umidade e pelo tempo, gemeram suavemente sob seus passos leves. No interior, o cheiro de madeira podre e palha úmida preenchia o ar como um véu. Ratos se enfiaram pelas fendas ao sentir sua presença, e um corvo empoleirado em uma viga soltou um grasnido rouco antes de desaparecer pela noite.
Ali dentro, envolta por sombras antigas, ela se ajoelhou ao lado do corpo largado. O coração dele ainda batia – fraco, irregular, mas útil.
Ela afastou o capuz. Seus olhos âmbar brilharam sob a tênue luz da lua filtrada pelas frestas do telhado. O frio da madrugada cortava sua pele morena como lâminas de gelo, mas ela já mal o sentia. A fome era mais forte. A sede, brutal.
— Vai acabar rápido. – murmurou, talvez para si mesma, talvez como um último alento ao morto-vivo que jazia ali.
Inclinou-se devagar, os lábios tocando o pescoço com precisão cerimonial. Quando os caninos atravessaram a pele, não houve grito. Apenas um suspiro. E depois, o silêncio. O sangue escorreu quente, doce, afogando a ardência que lhe queimava as entranhas. Cada gole era uma chama apagada, uma lembrança sufocada. Segurou o corpo contra o seu com uma delicadeza quase íntima, sentindo o calor se dissipar até que restasse apenas o frio da morte.
Quando o coração cessou, Selene recuou. O corpo tombou com um baque abafado sobre a terra molhada.
Ela o observou por um instante. Limpou os lábios com o dorso da mão. O sangue ainda escorria de um canto da boca, mas ela não o enxugou por completo. Não havia pressa. Nem culpa.
Mas havia prudência.
Aquela aldeia era pequena. Um corpo, mesmo jogado na lama, levantaria perguntas. E perguntas levavam a caçadores. E os caçadores... levavam morte – às vezes dela, às vezes de outros.
Selene se ergueu, o manto envolvendo novamente o corpo esguio. Olhou ao redor. A cocheira estava em ruínas, mas atrás dela havia uma trilha estreita de terra dura, quase esquecida, por onde os lavradores passavam com seus feixes de trigo e barris de vinagre. A trilha levava até a beira do rio, onde a vegetação crescia espessa e o solo afundava sob os pés. Um bom lugar.
Com uma força impossível para alguém de aparência tão leve, ergueu o cadáver nos braços. Ele pendia mole, como um boneco mal costurado. Seus cabelos ensopados ainda pingavam sangue.
Selene seguiu pela trilha, desviando-se de galhos baixos e raízes traiçoeiras. A floresta ali era densa, e o mato alto abafava os sons. Ainda assim, ela ouvia tudo: o ranger distante de uma janela batendo ao vento, o choro abafado de um recém-nascido, o baque seco de um machado esquecido no tronco. Nada lhe escapava.
O rio surgiu à frente como uma serpente adormecida, negro e largo, deslizando entre pedras cobertas de musgo. A lua, agora quase escondida pelas nuvens, lançava um brilho fosco sobre a água escura. O ar ali era úmido e carregado do cheiro de limo e podridão vegetal.
Selene encontrou uma fenda entre duas grandes rochas, onde a corrente formava um redemoinho silencioso. A água girava, arrastando folhas, galhos e pequenos ossos de animais. Um bom lugar.
Ajoelhou-se. Ajoelhar-se não era um gesto de humildade – era apenas necessidade. Abaixou o corpo e o empurrou para dentro da água fria. Os dedos do rapaz tremularam ao tocar a corrente, como se protestassem contra o esquecimento. Mas logo afundaram, engolidos pelas trevas líquidas.
Viu-o desaparecer. Não havia cerimônia. Era apenas mais um fim. Quando a última dobra da roupa se perdeu nas águas, Selene se levantou. O vento soprou contra seu rosto, espalhando seus cachos pelo ar, como serpentes vivas ao redor da cabeça.
Ficou ali por um momento. Respirou fundo. O cheiro de sangue ainda a cercava, mas já não era dor. Era saciedade.
Com um último olhar ao rio, girou nos calcanhares e sumiu entre as árvores, tão silenciosa quanto havia chegado. Atrás de si, só o som da água corrente e o murmúrio das folhas.
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De volta à aldeia, o silêncio era denso como a névoa que rastejava pelas ruas de pedra. As luzes das janelas estavam apagadas, e o vilarejo mergulhava em uma quietude quase sagrada. Os lampiões nas fachadas elegantes oscilavam ao sabor do vento, projetando sombras longas que dançavam nos muros de pedra bem lavrada. A umidade da noite fazia as pedras brilharem como vidro sob a luz difusa da lua, e o cheiro de lenha queimada – vindo de lareiras embutidas em casas bem cuidadas –, que durante o dia confortava, agora exalava um lamento antigo, sutil, um eco de solidão entre paredes ornamentadas.
Selene caminhava como um espectro pela aldeia adormecida. Seus passos quase não se faziam ouvir sobre o solo molhado. Contornou a entrada principal da estalagem – um casarão de dois andares, com alicerces firmes, varandas de madeira entalhada e janelas altas adornadas com cortinas pesadas. As colunas da entrada sustentavam uma pequena marquise que protegia os hóspedes da chuva, e vasos de ferro forjado ainda guardavam vestígios de lavanda e ervas secas.
Ela preferiu subir pelos fundos, onde uma escada de madeira envernizada, coberta por um pequeno alpendre, levava diretamente ao corredor superior. Os degraus rangiam suavemente, não por negligência, mas pelo tempo e pela história. A madeira era antiga, porém bem cuidada – polida, firme. Havia tapeçarias discretas nos corredores, e uma luz fraca de lamparinas a óleo tremeluzia em suportes de latão ao longo da parede.
Seu quarto era o último do corredor, uma suíte voltada para o leste, com uma janela que dava vista para a parte mais antiga da aldeia e os campos ao longe. A porta, de madeira nobre, era adornada com molduras discretas. Ao entrar, Selene não acendeu nenhuma vela. A escuridão era sua aliada – antiga, íntima, confiável.
O aposento era confortável, pensado para viajantes com bom gosto: uma cama de dossel com cortinas finas de linho, móveis de madeira escura polida, um espelho de moldura dourada junto à penteadeira, e um tapete espesso cobrindo parte do assoalho de tábuas largas. Um pequeno lustre de cristal pendia no centro do teto, agora apagado, mas refletia fragmentos da luz da lua que entrava pela janela.
Tirou o manto úmido com gestos lentos e o pendurou no cabideiro de ferro ornamentado. As botas, bem moldadas e de couro fino, foram deixadas ao lado da cama. Seus pés descalços tocaram o tapete felpudo, ainda morno do calor que a lareira havia deixado mais cedo. Mas ela não se dirigiu à cama. Caminhou até a janela e afastou a cortina espessa de veludo azul-escuro. A aldeia dormia. Mas ela sabia que nem todos dormiam.
O vidro estava frio ao toque. No reflexo, viu seu rosto desenhado em sombras: olhos profundos, cabelos escuros e cacheados derramando-se sobre os ombros, a pele parda iluminada pela luz espectral da lua. Havia algo em sua própria imagem que a fez hesitar. Um cansaço antigo, que nenhuma noite de descanso poderia desfazer.
Sentou-se no parapeito largo da janela, abraçando os joelhos. O frio do vidro contra as costas era uma lembrança bem-vinda da realidade. Ainda sentia o gosto metálico do sangue na boca, e a memória do olhar de Aurora queimava em sua mente como uma brasa sob a pele. Aquele olhar... tímido, mas afiado. Curioso, mas contido. Havia algo nele que a desarmava.
Mordeu o lábio inferior, distraída. Havia calor em Aurora – não o calor vulgar da carne, mas algo mais raro, mais perigoso. Um calor que despertava sensações esquecidas, emoções que ela há muito aprendera a sufocar.
A tempestade havia cessado, mas dentro de Selene, outra se formava – lenta, densa, irresistível. E desta vez, não havia fuga fácil.
Lá fora, os lampiões ainda tremeluziam na madrugada. Um cão uivou ao longe. E a noite, com seus segredos e silêncios, envolvia tudo com braços frios.
Selene ainda não compreendia o que Aurora havia acendido dentro dela. Mas sentia, com uma certeza incômoda, que seria impossível apagar.
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Atualizado até capítulo 28
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