Chapter 4

Capítulo 4

A chuva caía fina e contínua, lavando os telhados da estalagem com uma cadência hipnótica. A umidade impregnava o ar, e as janelas embaçadas tornavam o mundo lá fora uma aquarela cinzenta e silenciosa. Estavam presas ali há dois dias, talvez mais, desde que os caminhos de terra ficaram intransitáveis e os cavalos foram recolhidos ao estábulo. Os hóspedes perambulavam entre os salões, tomando chá ou vinho quente, tentando esquecer o tempo enclausurado – mas Selene não conseguia se distrair.

Ela estava sentada no canto do salão principal, perto da lareira acesa, com um livro aberto no colo e a cabeça inclinada na direção oposta às páginas. Lia, mas não lia. Tentava, em vão, encontrar consolo nas palavras que dançavam diante dos olhos — mas seu foco estava a poucos metros de distância.

Aurora.

A jovem permanecia em pé, como tantas vezes, junto à janela do salão, observando a chuva com o semblante sereno. Os fios escuros caíam lisos pelas costas, presos apenas por uma fita azul-marinho. Não dizia nada. Nunca dizia. Seus olhos, de um castanho profundo, acompanhavam o vai e vem das gotas no vidro, mas Selene sabia – sabia – que, vez ou outra, eram nela que pousavam.

Era isso que a deixava confusa. Havia momentos em que Aurora a observava com atenção – de forma quase reverente. E em outros... outros em que mal a cumprimentava.

Como agora.

Mais cedo, Selene havia passado por ela no corredor e arriscado um sorriso hesitante. Aurora não apenas não retribuíra o gesto como sequer parecera vê-la. Virou o rosto. Não disfarçou. Foi como se ela não existisse.

Por que ela fazia isso?

A pergunta martelava na mente de Selene desde então. Desde o momento em que Aurora cruzou por ela com o que parecia frieza – e talvez fosse mesmo, ou não, era tudo tão ambíguo. A cada aproximação silenciosa, a cada olhar furtivo, havia uma distância impossível de atravessar. Selene não sabia mais se era orgulho, desdém... ou medo.

Tentou se convencer de que talvez estivesse exagerando. Talvez Aurora apenas fosse tímida. Ou talvez não gostasse dela. Mas como explicar aqueles momentos em que seus olhos pareciam chamá-la? Tão suaves. Tão vivos.

Era exaustivo.

Selene fechou o livro sem ler uma única página e apoiou os cotovelos nos braços da poltrona. Seus dedos brincaram com o pingente de prata pendurado no pescoço — um presente de sua irmã, recebido antes da partida. Havia uma âncora gravada nele, um símbolo de firmeza. E ela se sentia tudo, menos firme.

— Senhorita Selene? – A voz do atendente tirou-a dos pensamentos. — Deseja mais chá?

— Sim, por favor – respondeu com um sorriso breve.

Enquanto ele se afastava, seus olhos voltaram a Aurora. Ela agora estava sentada – não muito longe dali – lendo um livro antigo, capa gasta, folhas amareladas. Era elegante em tudo o que fazia, até no modo como virava as páginas. E embora estivesse imersa na leitura, Selene podia jurar que os olhos dela voltavam a pousar nela de tempos em tempos.

Ela testou isso.

Ajeitou-se na poltrona, propositalmente. Simulou um bocejo. Cruzou e descruzou as pernas. E lá estava – o vislumbre rápido, mas claro, de olhos que a observavam por sobre a borda do livro.

Mas então, ao encontrar seu olhar, Aurora desviou de novo, não com pressa, com precisão.

Era como se reconhecesse o incômodo que causava e o alimentasse.

Selene se perguntou, pela milésima vez, o que havia feito de errado. Desde que chegara à estalagem, trocara apenas algumas palavras com Aurora. Frases curtas, educadas. A moça falava baixo, e tinha um jeito de se fazer ausente mesmo estando presente. Era impossível decifrá-la.

Na primeira noite, Selene tentou puxar conversa durante o jantar, mas Aurora se limitara a responder com monossílabas. Já no segundo dia, foi Aurora quem apareceu ao lado dela na biblioteca, como se por acaso, e permaneceu ali por quase uma hora. Nenhuma das duas disse muito, mas os silêncios pareciam menos pesados.

Hoje, tudo parecia diferente de novo. O frio nos olhos. O silêncio mais agudo.

O chá chegou. Selene agradeceu e, ao tomar o primeiro gole, notou que Aurora também se levantava. Caminhou com passos leves até a estante de livros e fingiu examinar os títulos. Mas Selene a conhecia o suficiente – ainda que não soubesse nada de verdade – para saber que ela só fazia isso quando queria se afastar.

Foi então que algo dentro dela cedeu. Ela não suportava mais esse jogo silencioso, feito de passos contidos e palavras que nunca vinham.

Levantou-se também.

Dirigiu-se à lareira, como quem apenas desejava aquecer as mãos, mas parou do lado oposto à estante. Aurora percebeu. Não se virou de imediato, mas seu corpo ficou mais tenso. Os dedos repousaram sobre um volume de capa vermelha, sem tirá-lo do lugar.

— Está difícil de ler hoje. – comentou Selene, com a voz suave. Não era exatamente uma pergunta. Era uma tentativa de aproximação. Aurora hesitou. Então respondeu:

— A chuva abafa os pensamentos.

— Achei que ela ajudasse. Pelo menos para mim... Às vezes parece que o mundo silencia.

Aurora sorriu, mas não virou o rosto. O sorriso foi pequeno. Raro.

— Só silencia por fora.

A frase ecoou na mente de Selene, que permaneceu imóvel por alguns instantes. A expressão da outra moça não mudara. Ainda parecia distante. Mas havia um traço de verdade em sua voz que a desarmava.

— Você costuma fazer isso com todo mundo? – Selene perguntou antes que pudesse se impedir. Sua voz estava mais baixa. — Olhar como se conhecesse e, no minuto seguinte, fingir que nem sabe o nome?

Aurora enfim virou-se.

Seus olhos encontraram os de Selene e, por um instante, nada foi dito. Só aquele silêncio tenso. Aquela corrente entre elas. O salão parecia ter desaparecido. Só restava a lareira, a chuva e o espaço entre seus corpos.

— Eu não finjo – respondeu Aurora. A voz era firme. — Eu só... me protejo.

Selene não respondeu de imediato. O peso daquelas palavras se acomodou em seu peito como uma peça de quebra-cabeça que ela não sabia onde encaixar.

— De quê? — arriscou perguntar. Aurora desviou os olhos. Voltou a olhar os livros. As mãos voltaram a tocar as lombadas.

— De mim. – murmurou. — De você, talvez. Eu não sei.

Selene sentiu o ar rarefeito por um instante. Havia algo tão cru ali. Tão assustador e bonito ao mesmo tempo. Ela não sabia se isso era um convite ou uma barreira. E, por algum motivo, não quis insistir. Não ali. Não agora.

— Vou subir. – disse apenas, recuando um passo. — Boa leitura, Aurora.

Ela se afastou, o coração batendo mais forte que o normal. Enquanto subia as escadas de madeira para o andar dos quartos, a voz da outra ainda ecoava em sua mente. “De você, talvez.”

No quarto, já sozinha, sentou-se à escrivaninha e abriu o diário. A pena tremia levemente entre os dedos. Mas ela precisava escrever. Porque, se não escrevesse, explodiria.

“Ela me olha como se pudesse me ler por dentro, mas recua quando me aproximo. Não sei se é medo. Não sei se é desinteresse. Só sei que algo acontece – e depois é como se não tivesse acontecido. É como se ela desaparecesse atrás dos próprios olhos. Não entendo por que, mesmo assim, eu continuo querendo ser vista por eles.”

A chuva continuava lá fora, persistente. Mas dentro de Selene, agora, havia uma nova tempestade. Uma que não queria mais evitar.

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