Capítulo 1
A carruagem estremeceu.
Os cascos dos cavalos, batendo nas pedras molhadas da estrada, Selene olhou pela janela embaçada, os pingos de chuva se misturando a escuridão do fim da tarde o céu estava carregado com nuvens tão densas que quase pareciam uma parede sólida, cobrindo o vilarejo diante dela. O vento uivava agitando as árvores e a chuva caía forte criando uma sinfonia de sons que reverberavam nas telhas e nas ruas estreitas de pedra.
Ela sempre preferiu o silêncio das tempestades – era mais fácil se perder na natureza do que nas pessoas – havia se mudado muitas vezes, mas o que a impelia a continuar em movimento não era apenas o medo de ser descoberta, era o peso das memórias, da solidão. Não era fácil ser imortal e carregar o fardo da vida eterna, sempre em constante mudança de aldeias, de nome, de história.
O vilarejo era simples, uma aldeia isolada, com casinhas de pedra e madeira. O calor da lareira de algum lugar distante ainda não chegara até ela, mas senti o cheiro da madeira queimando e da Terra molhada. Mesmo assim, um pequeno calafrio lhe percorreu a espinha, o frio da tempestade ainda estava em seu corpo, e ela sentiu fome, uma fome diferente, que não era apenas por comida sim que o desejo por sangue, algo que sempre parecia se intensificar durante esses dias de mudança.
A carruagem finalmente parou diante de uma estalagem modesta, com uma placa que balançava suavemente com o vento, o som da chuva no telhado abafava qualquer outro som que pudesse vir do vilarejo. Selene deu algumas moedas ao cocheiro e desceu da carruagem, suas botas de couro afundando ligeiramente no barro, ela puxou a gola de sua capa para se proteger da chuva e se dirigiu até a porta da estalagem, batendo levemente.
— Entre! – A voz veio de dentro, abafada pelo som da tempestade, e a porta se abriu antes que ela pudesse tocá-la novamente.
Uma jovem mulher, com cabelos castanhos presos em uma trança frouxa, o rosto dela parecia cheio de vida e doçura, seus traços pareciam fugir aos rígidos padrões idealizados, mas que carregam um encanto inegável, as bochechas levemente arredondadas e coradas, seus olhos escuros, grandes e curiosos – como quem cresceu observando o vai e vem de viajantes, mercadores e artistas –, as sobrancelhas suavemente arqueadas, traziam leveza ao olhar e acentuavam a expressão afetuosa, o nariz discreto – levemente arredondado –, seus cabelos, espessos e escuros, estavam presos em uma trança solta que repousava sobre o ombro – alguns fios rebeldes escapando na altura das têmporas e da nuca, os lábios curvaram-se em um sorriso ao ver Selene encharcada.
— Parece que o céu não quis colaborar com a sua chegada. – ela disse, como tom de simpatia. — Entre, por favor, vou prepará-la um chá quente.
Selene não disse nada por um momento, observando a jovem à sua frente. Havia algo de acolhedor nela, uma luz tranquila que contrastava com a tempestade lá fora.
— Não se preocupe, vou me cuidar. – Respondeu mantendo a voz calma. Ela sempre se mantinha distante, mas havia algo na forma como a jovem a olhava que fez Selene hesitar.
Aqueles olhos... eram como uma janela para algo que Selene não conseguia entender, eles eram profundos, escuros, mas ao mesmo tempo brilhavam com uma intensidade única, quase hipnotizante. O olhar dela não era comum — havia algo de tão direto, de tão penetrante, que Selene sentiu uma pontada de inquietação, mas também uma atração irresistível. Não era como o olhar de quem observava de fora, era o olhar de quem vê além, de quem compreende sem palavras.
— Não pode ficar na chuva, você vai se resfriar. – a jovem insistiu, com uma energia que fez Selene e se sentir um pouco desconfortável. — Meu nome é Aurora, sou filha dos donos daqui. Venha, vamos levá-la ao calor da lareira.
Selene acenou com a cabeça e seguiu a Aurora para dentro. O interior da estalagem tinha um aroma reconfortante de madeira queimada, como a lareira iluminando o ambiente com uma luz suave. O lugar era pequeno, mas é aconchegante, a mobília simples e rústica, combinava com a rusticidade do vilarejo.
Aurora pediu para Selene se sentar perto da lareira e foi até a cozinha preparar algo quente.
— Não precisa, realmente. – Começou a dizer Selene, ainda tentando manter uma certa distância. Ela estava acostumada anão depender de ninguém. Mas Aurora não parecia de esporte está a aceitar um “não” como resposta.
— Não, senhora. – Aurora sorriu de maneira encantadora. — É o mínimo que posso fazer para alguém que chega aqui em uma noite tão ruim. Deixe-me cuidar disso.
Selene observou, um pouco desconcertada, a jovem se mover pela sala. Aurora parecia tão natural em sua atenção e simpatia. Selene tentou afastar os pensamentos, mas algo nela a incomodava – ou talvez, atraía, não sabia dizer ao certo. Seus olhos seguiam Aurora, e Selene sentiu uma espécie de fascinação, algo que ela não sentia há muito tempo.
Aurora voltou com uma xícara de chá fumegante e se sentou ao lado de Selene.
— Você viaja sozinha em uma tempestade como esta? – ela perguntou, olhando a com preocupação.
Selene desviou o olhar e tomou Um gole do chá quente a sensação do líquido queimando sua garganta fez seu corpo se aquecer um pouco, mas não de uma forma que fosse suficiente para espantar o frio que a consumia.
— Às vezes, a solidão é mais segura. – Respondeu como um sorriso enigmático, que Aurora não compreendeu completamente.
Aurora não conseguiu desviar o olhar. Algo na forma de Selene a deixava intrigada, sua beleza era impressionante – de tirar o folego –, mas não era apenas isso, havia algo em sua presença, uma aura de mistério que atraia Aurora de uma forma que ela não conseguia explicar.
Selene percebeu o olhar de Aurora, e uma sensação estranha a invadiu. A jovem não estava apenas sendo educada, havia algo mais. Ela estava interessada, Selene engoliu em seco, sentindo uma leve ansiedade, não era comum que alguém se interessasse por ela assim. Afinal, ela era apenas uma viajante solitária, uma mulher que passava rapidamente pelos lugares, desaparecendo na escuridão sempre que a tempestade se acalmava.
— Você não parece ser do tipo que se importa com a opinião dos outros. – Aurora comentou, observando-a atentamente. Selene deu-lhe um pequeno sorriso.
— É uma boa qualidade para se ter quando se vive sozinha. – Respondeu ela, com um tom suave, mas firme. Ela não queria se abrir mais do que o necessário, mas havia algo em Aurora que fazia com que ela fizesse isso sem querer.
Aurora ficou em silêncio por um momento, ainda olhando para Selene. Ela sentia uma conexão inexplicável, mas não podia entender de onde vinha, algo em Selene a fazia querer conhecê-la mais, saber mais sobre ela, mas, ao mesmo tempo, ela sabia que isso não era prudente. O que ela sentia parecia perigoso e Aurora não sabia o porquê.
(...)
Mais tarde, quando a chuva finalmente diminuíra, Selene se retirou para o quarto que Aurora preparara para ela. A jovem, ainda à porta, a observava com os olhos inquietos.
— Vai ficar aqui por muito tempo?
Selene hesitou, a pergunta parecia simples, mas carregava um peso que ela não conseguia ignorar, olhou por um momento para Aurora, e em seus olhos viu algo que a deixou desconcertada.
— Talvez. – Respondeu ela, sem revelar mais. — Eu vejo o tempo de maneira diferente.
Aurora apenas sorriu, mas o sorriso foi cheio de um mistério que Selene não podia decifrar. Aurora se retirou do quarto, pouco depois Selene se aproximou da janela, sentou-se ali, observando as pequenas gotículas que ainda caiam do céu, sentia-se mais confusa do que deveria, não era normal ser observada assim, ser sentida de uma maneira tão... intensa.
— Você não deveria se aproximar, Aurora. Não agora.
A noite estava apenas começando, e a tempestade que se iniciava novamente lá fora refletia o que se passava dentro de Selene. Algo estava mudando, e ela não sabia se isso era bom ou ruim.
(...)
Assim que a última vela se extinguiu, Selene saiu pela varanda de seu quarto na estalagem.
O breu absoluto da noite a envolveu como um velho conhecido, cúmplice silencioso de seus passos, deslizou para fora como uma sombra viva, os pés descalços mal tocando as tabuas do assoalho. O manto negro que envolvia seu corpo fundia-se a escuridão, tomando-a quase invisível aos olhos alheios.
Na rua de terra batida, o silêncio era quase sagrado, as chaminés já não soltavam fumaça e as janelas estavam cerradas, vigiadas por ramos de arruda penduradas nas ombreiras. A aldeia dormia – inocente, ignorante do que andava entre seus telhado e vielas.
O estômago de Selene roncou em agonia, mas não fome por pão ou caldo que a movia, sua garganta ardia com uma sede brutal, como se nela tivessem sido derramadas brasas incandescentes. Era uma dor seca, antiga, quase ritual. Não havia como ignorá-la.
Precisava se alimentar. Precisava de sangue humano.
Desceu com leveza pelo telhado da estalagem, os dedos agarrando a madeira úmida, e saltou para o chão com a graça de um felino. O manto esvoaçou ao seu redor como asas negras. Na penumbra, ela se movia como se fosse parte do próprio nevoeiro. Seus olhos, agora adaptados à escuridão, buscavam os sinais que o olfato já pressentia: o calor do corpo, o ferro doce do sangue sob a pele.
Seguiu por entre as casas de pedra e madeira, desviando-se das carroças abandonadas e das poças de chuva que ainda refletiam os últimos lampejos das chamas apagadas. A aldeia era pequena, cercada por mata cerrada, e os poucos homens que se arriscavam fora de casa àquela hora ou estavam bêbados ou à beira da loucura. E eram esses os mais fáceis.
Selene farejou o vento e parou. Ali, no fim da rua, perto do poço da praça central, caminhava um homem. Cambaleava. O chapéu desalinhado mal lhe cobria a testa, e sua silhueta era fraca sob o luar rarefeito. Tinha o cheiro do vinho barato da taverna, mas por baixo disso, havia o que ela queria. O sangue pulsando lento, morno, esperando por ela.
Ela sorriu, e o sorriso não carregava prazer nem prazer antecipado. Era apenas instinto.
Sem pressa, avançou pelas sombras, o olhar fixo na presa.
Ainda havia tempo.
A noite era longa, e a morte… silenciosa.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 28
Comments