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Ele não viu a luz primeiro.
Sentiu. Um calor profundo, que não era bem dor, nem exatamente conforto. Como se seu corpo fosse feito de fios emaranhados, e alguém estivesse puxando cada um com paciência cruel. O som ao redor era abafado, como o eco de um sonho submerso — ruídos de vento, farfalhar de algo seco, e um murmúrio que ele não conseguia entender.
Acordar foi como quebrar a superfície de um lago muito escuro. A consciência chegou em pedaços: primeiro o gosto seco da poeira, depois o ardor nos olhos, e por fim, a estranha sensação de que o ar tinha peso.
Elías abriu os olhos. O céu que viu não era azul. Não era nenhum céu que conhecesse. Tinha tons de roxo antigo, dourado, azul profundo — como se fosse pintado por mãos que desconheciam a lógica das cores. O horizonte tremia com o calor. E tudo ao seu redor era areia.
Areia, até onde os olhos podiam alcançar.
Mas havia algo errado com os olhos também.
Ele piscou. Uma, duas vezes. As formas não se organizavam. Tudo parecia esparso, como se o mundo estivesse desfeito em partes, e ele fosse o único que ainda não tinha sido reconstituído.
Seu corpo estava enterrado até a cintura em areia quente. Sentia as pernas formigando, os pulmões exigindo ar, o coração correndo.
Estava confuso, não sabia onde estava e com foi parar lá
Elías estremeceu. A voz surgiu do nada — não falada, não ouvida. Apenas… presente. Como se alguém tivesse falado dentro da sua mente, com o tom exato de quem pergunta algo e já espera uma resposta.
???
Ou só mais um dos ecos?
Ele virou o rosto, esperando ver alguém atrás de si. Ninguém. O deserto era puro vazio, com dunas que pareciam flutuar a cada rajada de vento. Mas a “voz” continuava lá, persistente e casual.
???
Então você é novo mesmo, legal
???
Bem-vindo ao fim do mundo, ou começo de alguma coisa
Ele tentou se levantar. As mãos afundaram na areia quente, e ele forçou o corpo até sair dali. Caiu de joelhos. O suor escorria em rios. Sentia o sol ou o que fosse aquilo batendo em sua nuca como martelo.
Eri
Mas ninguém entende isso no começo
é tipo... um mundo que tá tentando lembrar de si mesmo
A pergunta veio como um sussurro. A garganta arranhava a cada palavra. O som saiu mais frágil do que ele queria.
Eri
Mas isso não importa tanto aqui
Eri
So o que importa é o que você lembra e o que você escreve
Ele não entendeu. Ainda não. O calor fazia a cabeça latejar. Mas a voz dela — essa Eri — era curiosamente calma. Quase familiar, como se ela já tivesse lendo essa história em outro tempo
Os sentidos começaram a se ajustar. O vento era carregado de cheiro de ferro e lavanda seca. A areia tinha tons acinzentados, e não dourados como ele pensava. E havia sons — distantes — de passos, mesmo que ele estivesse sozinho.
Uma lembrança veio, súbita e nítida:
O trem.
A estação.
O barulho dos freios.
A queda.
A dor que não teve tempo de doer.
Sim. Ele tinha morrido.
E agora... estava aqui.
Elías
Isso não faz sentido
eu era um bibliotecário
nunca fiz mal a ninguém
Eri
Os cronistas antigos também achavam que tinham morrido à toa
Eri
Mas lur chama quem escuta histórias no silêncio
Eri
E você parece escutar bastante
Aquela palavra — cronista — soava com peso. Como uma chave que ele ainda não sabia onde encaixava.
Aos poucos, o horizonte mudou.
Lá, à frente, uma estrutura surgia. Meia enterrada na areia, feita de pedra escura, como carvão envernizado. Altíssima, mas inclinada — uma torre tombada, rachada no meio, coberta por símbolos em espiral que brilhavam e se apagavam como vaga-lumes.
Ele não sabia por que, mas seus pés se moveram. Primeiro trêmulos, depois decididos. Cada passo afundava um pouco mais na areia, mas algo o puxava adiante. Como se aquela torre o chamasse por um nome que ele ainda não sabia que tinha.
Eri
Claro que você foi parar aí
Eri
Vocês cronistas sempre acabam entrando em coisa estranha logo no primeiro dia
Eri
É tipo… uma biblioteca
Eri
Mas ela também sente e às vezes sangra
Eri
Só… tenta não mentir lá dentro
A pedra estava quente e pulsava, quase impercetivelmente, como a pele de um animal adormecido. As inscrições tremiam sob seus dedos. De repente, ele sentiu uma pontada na nuca. E então — visões.
Imagens explodiram dentro da sua cabeça:
Homens feitos de tinta.
Livros que engoliam gritos.
Céus se partindo como vidro.
E, no centro de tudo, uma figura de olhos cobertos, escrevendo com uma pena feita de ossos.
Ele recuou. Ofegante. Suando.
Eri
Ela tá te reconhecendo
Eri
Mnêmora só mostra o passado para quem tem que mudar o fim
Elías
Eu não quero mudar nada
Elías
Eu só quero entender onde estou e o que está acontecendo comigo
Uma sombra passou acima dele. Quando olhou, viu o céu mudar de tom — do roxo para o cinza-pálido. Um som agudo ecoou entre as nuvens, como uma música sem instrumentos.
O ar ficou denso. E Elías soube, mesmo sem provas, que algo estava vindo.
Algo que esperava por ele.
Algo que talvez o conhecesse melhor do que ele mesmo.
Elías
O que está acontecendo?
Elías
Por que sinto que algo está vindo?
Eri
Você é aquele que escreve quando os deuses esquecem
Eri
O que nomeia o que está se apagando
Eri
O que decide o que vai ficar depois que tudo cair
falou assustado, não entendia nada desde quê acordou
Eri
Mas alguém precisa lembrar
Eri
Alguém precisa contar a última história e parece que dessa vez... é você
Ele encarou a torre mais uma vez. Sentiu o sangue ferver.
Por alguma razão, as palavras de Eri não pareciam absurdas. Algo dentro dele se mexia. Como se um baú esquecido começasse a se abrir, cheio de ecos antigos e promessas que ele nunca fez.
Deu o primeiro passo para dentro da torre.
Comments
✿MISS SHY✿
oieeee... 🤗
amei... /Chuckle//Rose/
2025-04-18
2
༒︎-𝙺𝚒𝚛𝚊 💍
Primeira vez lendo
Expectativa: 94%
Bateria: 65%
14:58
18/04
2025-04-19
2
➷✥KᎯᎶUᎽᎯ OᏆЅUᏆЅUᏦℐ✥➷
Primeira vez lendo
Expectativa: 60
20/04/2025
08:40
2025-04-20
1