O Mundo Esquecido
1
Ele não viu a luz primeiro.
Sentiu. Um calor profundo, que não era bem dor, nem exatamente conforto. Como se seu corpo fosse feito de fios emaranhados, e alguém estivesse puxando cada um com paciência cruel. O som ao redor era abafado, como o eco de um sonho submerso — ruídos de vento, farfalhar de algo seco, e um murmúrio que ele não conseguia entender.
Acordar foi como quebrar a superfície de um lago muito escuro. A consciência chegou em pedaços: primeiro o gosto seco da poeira, depois o ardor nos olhos, e por fim, a estranha sensação de que o ar tinha peso.
Elías abriu os olhos. O céu que viu não era azul. Não era nenhum céu que conhecesse. Tinha tons de roxo antigo, dourado, azul profundo — como se fosse pintado por mãos que desconheciam a lógica das cores. O horizonte tremia com o calor. E tudo ao seu redor era areia.
Areia, até onde os olhos podiam alcançar.
Mas havia algo errado com os olhos também.
Ele piscou. Uma, duas vezes. As formas não se organizavam. Tudo parecia esparso, como se o mundo estivesse desfeito em partes, e ele fosse o único que ainda não tinha sido reconstituído.
Seu corpo estava enterrado até a cintura em areia quente. Sentia as pernas formigando, os pulmões exigindo ar, o coração correndo.
Estava confuso, não sabia onde estava e com foi parar lá
Elías estremeceu. A voz surgiu do nada — não falada, não ouvida. Apenas… presente. Como se alguém tivesse falado dentro da sua mente, com o tom exato de quem pergunta algo e já espera uma resposta.
???
Ou só mais um dos ecos?
Ele virou o rosto, esperando ver alguém atrás de si. Ninguém. O deserto era puro vazio, com dunas que pareciam flutuar a cada rajada de vento. Mas a “voz” continuava lá, persistente e casual.
???
Então você é novo mesmo, legal
???
Bem-vindo ao fim do mundo, ou começo de alguma coisa
Ele tentou se levantar. As mãos afundaram na areia quente, e ele forçou o corpo até sair dali. Caiu de joelhos. O suor escorria em rios. Sentia o sol ou o que fosse aquilo batendo em sua nuca como martelo.
Eri
Mas ninguém entende isso no começo
é tipo... um mundo que tá tentando lembrar de si mesmo
A pergunta veio como um sussurro. A garganta arranhava a cada palavra. O som saiu mais frágil do que ele queria.
Eri
Mas isso não importa tanto aqui
Eri
So o que importa é o que você lembra e o que você escreve
Ele não entendeu. Ainda não. O calor fazia a cabeça latejar. Mas a voz dela — essa Eri — era curiosamente calma. Quase familiar, como se ela já tivesse lendo essa história em outro tempo
Os sentidos começaram a se ajustar. O vento era carregado de cheiro de ferro e lavanda seca. A areia tinha tons acinzentados, e não dourados como ele pensava. E havia sons — distantes — de passos, mesmo que ele estivesse sozinho.
Uma lembrança veio, súbita e nítida:
O trem.
A estação.
O barulho dos freios.
A queda.
A dor que não teve tempo de doer.
Sim. Ele tinha morrido.
E agora... estava aqui.
Elías
Isso não faz sentido
eu era um bibliotecário
nunca fiz mal a ninguém
Eri
Os cronistas antigos também achavam que tinham morrido à toa
Eri
Mas lur chama quem escuta histórias no silêncio
Eri
E você parece escutar bastante
Aquela palavra — cronista — soava com peso. Como uma chave que ele ainda não sabia onde encaixava.
Aos poucos, o horizonte mudou.
Lá, à frente, uma estrutura surgia. Meia enterrada na areia, feita de pedra escura, como carvão envernizado. Altíssima, mas inclinada — uma torre tombada, rachada no meio, coberta por símbolos em espiral que brilhavam e se apagavam como vaga-lumes.
Ele não sabia por que, mas seus pés se moveram. Primeiro trêmulos, depois decididos. Cada passo afundava um pouco mais na areia, mas algo o puxava adiante. Como se aquela torre o chamasse por um nome que ele ainda não sabia que tinha.
Eri
Claro que você foi parar aí
Eri
Vocês cronistas sempre acabam entrando em coisa estranha logo no primeiro dia
Eri
É tipo… uma biblioteca
Eri
Mas ela também sente e às vezes sangra
Eri
Só… tenta não mentir lá dentro
A pedra estava quente e pulsava, quase impercetivelmente, como a pele de um animal adormecido. As inscrições tremiam sob seus dedos. De repente, ele sentiu uma pontada na nuca. E então — visões.
Imagens explodiram dentro da sua cabeça:
Homens feitos de tinta.
Livros que engoliam gritos.
Céus se partindo como vidro.
E, no centro de tudo, uma figura de olhos cobertos, escrevendo com uma pena feita de ossos.
Ele recuou. Ofegante. Suando.
Eri
Ela tá te reconhecendo
Eri
Mnêmora só mostra o passado para quem tem que mudar o fim
Elías
Eu não quero mudar nada
Elías
Eu só quero entender onde estou e o que está acontecendo comigo
Uma sombra passou acima dele. Quando olhou, viu o céu mudar de tom — do roxo para o cinza-pálido. Um som agudo ecoou entre as nuvens, como uma música sem instrumentos.
O ar ficou denso. E Elías soube, mesmo sem provas, que algo estava vindo.
Algo que esperava por ele.
Algo que talvez o conhecesse melhor do que ele mesmo.
Elías
O que está acontecendo?
Elías
Por que sinto que algo está vindo?
Eri
Você é aquele que escreve quando os deuses esquecem
Eri
O que nomeia o que está se apagando
Eri
O que decide o que vai ficar depois que tudo cair
falou assustado, não entendia nada desde quê acordou
Eri
Mas alguém precisa lembrar
Eri
Alguém precisa contar a última história e parece que dessa vez... é você
Ele encarou a torre mais uma vez. Sentiu o sangue ferver.
Por alguma razão, as palavras de Eri não pareciam absurdas. Algo dentro dele se mexia. Como se um baú esquecido começasse a se abrir, cheio de ecos antigos e promessas que ele nunca fez.
Deu o primeiro passo para dentro da torre.
Ecos da Torre
Não viva como um ser que respira — mas como um lugar que sente. Cada passo que Elías dava sobre as pedras escuras, sentia o eco reverberar em suas costelas. O chão murmurava. As paredes suspiravam. Era como andar pelo interior de uma lembrança que não era sua.
O corredor era largo, curvo, com inscrições luminosas que ondulavam como água quando ele passava. Não havia janelas, mas uma luz azulada parecia flutuar no ar, feita de poeira e calor. Às vezes, surgiam vultos à beira da visão — silhuetas sem rosto, sentadas lendo, escrevendo, ou chorando.
Eri
Não olha direto pra eles
Eri
São só restos de gente que esqueceu como sair
Elías
Então isso é tipo um... labirinto?
Eri
É tipo um diário com pesadelos presos dentro
Eri
Mas você vai se acostumar
Ele caminhou por mais alguns minutos — ou horas? O tempo era estranho ali dentro. Não sentia fome, nem sede, apenas o pulsar da torre como uma segunda respiração.
Elías
Isso não é normal. Isso não é... real.
Elías
Eu devia estar morto. Eu tô morto.
Elías
Por que eu ainda penso, ainda ando?
Eri
Porque o que morre é o corpo
Eri
Mas o eco... o eco continua
Elías parou. Um arrepio percorreu a nuca.
Elías
Você tá na minha cabeça?
Eri
Estou em todo lugar onde a torre toca
A cada curva, a torre mudava. Os caminhos não eram fixos. Tudo parecia respirar. Uma porta se abriu sozinha ao lado dele, com um estalo úmido.
Elías
Eu não quero entrar.
Elías
Isso parece... errado.
Elías
Parece um sonho ruim que eu não consigo acordar.
Eri
É só um lugar entre um fim e um começo
Dentro da sala, as paredes se abriram como páginas virando. Livros flutuavam no centro, suas capas se dobrando ao vento inexistente. Um deles voou até Elías e parou no ar, bem diante de seu rosto.
Capa de couro marrom, arranhada.
Sem título.
As páginas viraram sozinhas
Primeira página:
"Elías morreu em uma terça-feira cinza. Ninguém percebeu o trem parar."
Ele recuou. O livro estava escrevendo sobre ele. Com precisão. Com dor.
Elías recuou, tropeçando.
Elías
Não, isso... isso é sobre mim.
Elías
Então ela tá dentro da minha cabeça?
Elías
Isso aqui tá dentro de mim?!
Ele bateu a palma contra a capa e tentou fechar o livro — mas as páginas continuavam virando sozinhas. Ele começou a ver.
O trilho. O vagão. Seu corpo caído. A mulher que gritou. O menino que nem olhou para trás.
Elías tapou os olhos com força.
Elías
Eu não quero ver isso!
Elías
Eu já sei o que aconteceu!
Eri
Mas você ainda tenta negar
Eri
Aceitar o fim é o único jeito de escrever o próximo capítulo
Eri
Porque ainda tem coisas que só você pode contar
Eri
E a torre só chama quem ainda pode escrever
Elías respirou fundo. Soluçou. Depois, com as mãos tremendo, abriu o livro novamente. Leu. Engoliu cada linha com os olhos ardendo.
"Mas o eco não sumiu. Ele virou palavra. E as palavras nunca morrem por completo."
A névoa se dissipou.
A sala ficou fria. Silenciosa.
Ele se encostou numa pilastra e deslizou até o chão, o corpo pequeno, encolhido, como se quisesse caber dentro de si mesmo.
Elías
Eu não quero escrever nada.
Elías com a voz trémula disse
Elías
Isso é invasivo... é horrível...
Queria fugir. Mas seu corpo não se moviam. A névoa novamente começou a encher a sala, saindo das frestas do chão.
E então, ele viu. De novo, a mesma cena
Elías
Não... não quero ver isso de novo
Elías
Pra que mostrar de novo?
Eri
A torre vai mostrar até você aceitar verdadeiramente que morreu
Elías
eu nem tive chance de me despedir...
Elías
Nem lembro a última coisa que eu disse pra minha mãe
Ele apertou os olhos. Respirou fundo. E abriu o livro outra vez. Leu tudo. Até a última linha.
Depois de horas vendo repetidamente a cena da sua própriamorte, ele finalmente aceitou.
Elías
Eu só queria... não sentir mais isso.
Eri
Eles geralmente desmaiam nessa parte
Eri fala tentando o animar
Elías
Não sei se foi coragem
Elías
Eu não sei se quero continuar
Elías
Isso tudo parece um castigo...
Elías
Como se morrer fosse o começo do sofrimento, e não o fim
Eri
Você escolhe o que vai ser
O silêncio voltou. Só que agora... reconfortante.
De longe, ouviu um barulho de passos. Mas não eram dele.
Ele se levantou, atento. Os corredores pareciam ter mudado de novo. Uma passagem surgiu entre duas estantes de pedra. E lá, no final, uma luz vermelha pulsava, fraca, como um coração cansado.
A nova sala era menor. No centro, havia um espelho trincado. Seu reflexo aparecia dividido em três partes: em uma, ele estava mais velho; em outra, ferido; e na última, sorrindo com alguém ao lado que não conseguia identificar.
Elías
Esses são meus futuros?
Eri
Essa sala mostra os caminhos
Elías
E se eu não quiser nenhum desses?
Eri
Então a torre vai escrever por você
Eri
E isso geralmente termina feio
Elías estendeu a mão e tocou o espelho. Sentiu algo, como um calor sob a pele. Como se um nome quisesse escapar de dentro dele — mas ele não sabia qual.
Uma voz ecoou.
Grossa. Raspada. Desprezo puro.
???
Outro rato perdido nas páginas...
Elías se virou, ofegante. A sala estava vazia.
Eri
Alguém chegou antes de você
Eri
Ele não gostou muito da ideia de dividir o título de cronista
Elías
Outro que... morreu também?
Eri
Ele veio de outro mundo
Eri
Mas o coração dele ficou preso no seu antigo mundo
Elías
E ele... é perigoso?
Eri
E gente solitária demais... às vezes vira perigoso
A sala escureceu por um segundo, o espelho rachou mais uma vez. A imagem do Elías sorrindo desapareceu.
Ele levou a mão ao peito.
Elías
Era a única imagem que eu queria acreditar
Eri
Você ainda pode reescrever isso
Eri
Mas precisa sair da torre
Eri
Tá na hora de ver o que existe fora das páginas
Ele assentiu. Não queria mais ficar ali.
Seguiu o corredor até uma porta de pedra que apareceu diante dele como um suspiro. Ao tocá-la, ela se abriu com um som oco.
Do lado de fora, o céu tinha mudado de novo
Agora era cor de âmbar, com nuvens em espiral e o som distante de água.
Meio destruída, meio reconstruída. Feita de metal e pedra antiga, com pontes que se ligavam como teias e torres inclinadas cobertas por plantas de cor púrpura. Criaturas voavam entre os prédios — algumas aladas, outras flutuantes. E pessoas caminhavam com roupas esquisitas, olhos marcados por símbolos, e sorrisos tensos.
korr Enai
Eri
A cidade dos que lembram demais
Elías
Mas também... assustador.
Elías
Eu não sei se consigo viver aqui.
Eri
Você não precisa viver
Eri
Só precisa continuar escrevendo
Elías desceu por um caminho de pedra irregular. Estava cansado, mas algo nele se acendia: um desejo de entender. De ouvir. De escrever.
Eri
Vou sumir por um tempo
Eri
Mas você vai conhecer gente interessante aí
Elías
Não sei se consigo viver aqui sozinho
Elías
Não conheço esse mundo
Eri
quando precisar de mim
Eri
e eu volto no mesmo instante
E Elías estava finalmente sozinho.
Mas, pela primeira vez… não sentia medo.
Ele seguiu pelas ruas de Korr Enai, observando os mercados flutuantes, os guardas com capas feitas de páginas arrancadas, os gatos com olhos humanos.
Ninguém o olhava estranho. Era como se sua presença fosse esperada.
Em uma praça, havia um homem tocando um instrumento feito de espinhos. A música era linda e triste. Elías se sentou no chão e fechou os olhos por um instante.
Quando abriu, havia uma criança na sua frente.
???
Você é o novo que caiu da areia?
Elías
Sou... eu acho que sou
Ela entregou a pena. Era branca, mas com a ponta manchada de vermelho. Leve como ar. Pesada como promessa.
Elías
O que eu faço com isso?
???
Ou o mundo esquece você também
A criança correu e sumiu entre as barracas.
Ele segurou a pena com força. E, naquele instante, sentiu algo diferente.
Não era só um visitante. Nem só um sobrevivente.
Era parte daquele mundo agora.
E Lur… o aceitava.
Mas também o desafiava.
A voz do estranho que o havia provocado dentro da torre ainda ecoava em sua cabeça. E Elías sabia: aquele encontro estava marcado.
Só não sabia quando.
Ou o que o esperava do outro lado.
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