Entre as Estações do Amor

Entre as Estações do Amor

Capítulo 1

A casa estava vazia, mas não em silêncio. Havia algo no ar, algo que sussurrava histórias nas paredes, como se o tempo tivesse ficado preso entre os azulejos partidos e os rodapés gastos pelo tempo. Helena caminhava devagar, os passos ecoando no chão de madeira antiga. Ela observava cada detalhe como quem lê um diário íntimo, procurando sentidos ocultos nas rachaduras do teto, nos vitrais quebrados, nas molduras que já foram douradas um dia.

Ela amava esse tipo de solidão. A que não sufoca, mas abraça. Era sua forma de respirar depois de tudo. A perda da mãe, o fim de um relacionamento que deveria ter sido amor e não foi, e os dias cinzas que se acumulavam como folhas no outono.

O casarão tinha sido encomendado para restauração por uma fundação de preservação histórica, e ela, como restauradora, seria responsável por devolver à casa a dignidade que o tempo tinha levado. Helena se sentia em casa ali — não por conhecer aquele lugar, mas por entender seu cansaço.

Sentou-se num degrau da escada em caracol e abriu o caderno de anotações. Rabiscou algo sobre o vitral principal da sala, depois desenhou um contorno do corrimão esculpido. Cada detalhe era uma história esperando para ser contada.

Foi quando ouviu o barulho da porta se abrindo. Seu coração acelerou — o tipo de reação automática que não se desaprende mesmo quando se mora sozinha por anos. Mas não era ameaça. Era apenas ele. O homem com olhar de inverno.

Gabriel Nogueira entrou sem dizer nada. Seus olhos percorreram o ambiente com a exatidão de alguém que sabe exatamente o que procura, mas ainda assim se permite observar. Ele tinha algo em seu jeito — firme, preciso, e ao mesmo tempo... distante.

— Você é a restauradora? — perguntou, com a voz baixa, mas firme.

Helena assentiu. Seus olhos se encontraram por um segundo. Um segundo só, mas suficiente para acender algo — não uma faísca, ainda, mas talvez um reconhecimento. Como se dois espelhos tivessem se encarado.

— Gabriel Nogueira, arquiteto-chefe do projeto. — Estendeu a mão, e ela a apertou, sentindo a firmeza e o frio.

— Helena Duarte.

Ele não sorriu. Ela também não. Era como se o ambiente ao redor exigisse respeito. A casa parecia observar os dois, silenciosa e atenta.

Gabriel olhou em volta, o cenho levemente franzido.

— Não parece apenas uma casa velha pra você?

Helena fechou o caderno devagar, apoiando-o no colo.

— Não. Casas velhas têm histórias. É só saber escutar.

Ele soltou um leve suspiro e se aproximou de uma parede com um afresco apagado pelo tempo.

— Escutar histórias de fantasmas?

— Não exatamente. — Ela sorriu de leve, o primeiro esboço de expressão mais suave desde que se viram. — Fantasmas falam de dor. Eu escuto a saudade. O que ficou impregnado aqui não é o fim, é o eco.

Gabriel tocou a parede, com os dedos longos e cuidadosos.

— Nunca pensei assim. Para mim, tudo é estrutura. Concreto, madeira, umidade. Peso e cálculo. Se eu errar um milímetro em um pilar, tudo pode desabar.

— E se eu errar num traço, posso apagar a memória de alguém — disse ela, quase num sussurro. — A diferença é que, se seu erro mata o corpo da casa, o meu mata a alma.

Ele virou o rosto para ela, surpreso com a profundidade da fala. Seus olhos eram de um castanho frio, quase cinza sob a luz fraca que entrava pelas janelas sujas.

— Você fala como se a casa fosse viva.

— Talvez seja.

Silêncio.

Lá fora, o vento balançava folhas secas no jardim abandonado. Dentro, havia uma quietude que só existe entre pessoas que, mesmo estranhas uma para a outra, carregam a mesma solidão.

— Posso te fazer uma pergunta? — ela disse, erguendo os olhos para ele.

— Pode.

— Você acredita no amor?

Gabriel demorou para responder. Passou a mão pelo cabelo escuro, cortado rente, um tique involuntário de quem pensa demais.

— Já acreditei.

— E o que aconteceu?

Ele hesitou. Depois disse, com uma dureza suave:

— A vida.

Helena não desviou o olhar. Ela reconhecia aquela resposta. Era a mesma que dava a si mesma toda vez que lembrava do que já perdeu.

— Eu ainda acredito — disse, sem precisar justificar. Como se afirmar aquilo já fosse, por si só, resistência.

Gabriel a olhou de novo. E pela primeira vez, havia algo quebrando na expressão dele. Uma fissura. Uma rachadura fina na fachada sólida que construíra em torno de si.

— Então talvez esse lugar tenha mais chance com você do que comigo.

— Ou talvez... — ela disse, levantando-se com o caderno contra o peito — ...talvez esse lugar precise de nós dois.

Ela passou por ele devagar, quase sem tocá-lo, mas deixando um rastro de presença, como perfume que se sente depois que alguém se vai.

Gabriel a acompanhou com os olhos até ela desaparecer por um dos corredores. Ele ficou ali mais um tempo, ouvindo o eco dos próprios pensamentos. Pela primeira vez em anos, se perguntou se aquela mulher — com olhos de quem já viu demais — poderia ser o ponto de virada de alguma coisa dentro dele.

Ou, no mínimo, uma boa razão para voltar no dia seguinte.

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!