A casa estava vazia, mas não em silêncio. Havia algo no ar, algo que sussurrava histórias nas paredes, como se o tempo tivesse ficado preso entre os azulejos partidos e os rodapés gastos pelo tempo. Helena caminhava devagar, os passos ecoando no chão de madeira antiga. Ela observava cada detalhe como quem lê um diário íntimo, procurando sentidos ocultos nas rachaduras do teto, nos vitrais quebrados, nas molduras que já foram douradas um dia.
Ela amava esse tipo de solidão. A que não sufoca, mas abraça. Era sua forma de respirar depois de tudo. A perda da mãe, o fim de um relacionamento que deveria ter sido amor e não foi, e os dias cinzas que se acumulavam como folhas no outono.
O casarão tinha sido encomendado para restauração por uma fundação de preservação histórica, e ela, como restauradora, seria responsável por devolver à casa a dignidade que o tempo tinha levado. Helena se sentia em casa ali — não por conhecer aquele lugar, mas por entender seu cansaço.
Sentou-se num degrau da escada em caracol e abriu o caderno de anotações. Rabiscou algo sobre o vitral principal da sala, depois desenhou um contorno do corrimão esculpido. Cada detalhe era uma história esperando para ser contada.
Foi quando ouviu o barulho da porta se abrindo. Seu coração acelerou — o tipo de reação automática que não se desaprende mesmo quando se mora sozinha por anos. Mas não era ameaça. Era apenas ele. O homem com olhar de inverno.
Gabriel Nogueira entrou sem dizer nada. Seus olhos percorreram o ambiente com a exatidão de alguém que sabe exatamente o que procura, mas ainda assim se permite observar. Ele tinha algo em seu jeito — firme, preciso, e ao mesmo tempo... distante.
— Você é a restauradora? — perguntou, com a voz baixa, mas firme.
Helena assentiu. Seus olhos se encontraram por um segundo. Um segundo só, mas suficiente para acender algo — não uma faísca, ainda, mas talvez um reconhecimento. Como se dois espelhos tivessem se encarado.
— Gabriel Nogueira, arquiteto-chefe do projeto. — Estendeu a mão, e ela a apertou, sentindo a firmeza e o frio.
— Helena Duarte.
Ele não sorriu. Ela também não. Era como se o ambiente ao redor exigisse respeito. A casa parecia observar os dois, silenciosa e atenta.
Gabriel olhou em volta, o cenho levemente franzido.
— Não parece apenas uma casa velha pra você?
Helena fechou o caderno devagar, apoiando-o no colo.
— Não. Casas velhas têm histórias. É só saber escutar.
Ele soltou um leve suspiro e se aproximou de uma parede com um afresco apagado pelo tempo.
— Escutar histórias de fantasmas?
— Não exatamente. — Ela sorriu de leve, o primeiro esboço de expressão mais suave desde que se viram. — Fantasmas falam de dor. Eu escuto a saudade. O que ficou impregnado aqui não é o fim, é o eco.
Gabriel tocou a parede, com os dedos longos e cuidadosos.
— Nunca pensei assim. Para mim, tudo é estrutura. Concreto, madeira, umidade. Peso e cálculo. Se eu errar um milímetro em um pilar, tudo pode desabar.
— E se eu errar num traço, posso apagar a memória de alguém — disse ela, quase num sussurro. — A diferença é que, se seu erro mata o corpo da casa, o meu mata a alma.
Ele virou o rosto para ela, surpreso com a profundidade da fala. Seus olhos eram de um castanho frio, quase cinza sob a luz fraca que entrava pelas janelas sujas.
— Você fala como se a casa fosse viva.
— Talvez seja.
Silêncio.
Lá fora, o vento balançava folhas secas no jardim abandonado. Dentro, havia uma quietude que só existe entre pessoas que, mesmo estranhas uma para a outra, carregam a mesma solidão.
— Posso te fazer uma pergunta? — ela disse, erguendo os olhos para ele.
— Pode.
— Você acredita no amor?
Gabriel demorou para responder. Passou a mão pelo cabelo escuro, cortado rente, um tique involuntário de quem pensa demais.
— Já acreditei.
— E o que aconteceu?
Ele hesitou. Depois disse, com uma dureza suave:
— A vida.
Helena não desviou o olhar. Ela reconhecia aquela resposta. Era a mesma que dava a si mesma toda vez que lembrava do que já perdeu.
— Eu ainda acredito — disse, sem precisar justificar. Como se afirmar aquilo já fosse, por si só, resistência.
Gabriel a olhou de novo. E pela primeira vez, havia algo quebrando na expressão dele. Uma fissura. Uma rachadura fina na fachada sólida que construíra em torno de si.
— Então talvez esse lugar tenha mais chance com você do que comigo.
— Ou talvez... — ela disse, levantando-se com o caderno contra o peito — ...talvez esse lugar precise de nós dois.
Ela passou por ele devagar, quase sem tocá-lo, mas deixando um rastro de presença, como perfume que se sente depois que alguém se vai.
Gabriel a acompanhou com os olhos até ela desaparecer por um dos corredores. Ele ficou ali mais um tempo, ouvindo o eco dos próprios pensamentos. Pela primeira vez em anos, se perguntou se aquela mulher — com olhos de quem já viu demais — poderia ser o ponto de virada de alguma coisa dentro dele.
Ou, no mínimo, uma boa razão para voltar no dia seguinte.
Os dias seguintes chegaram como páginas em branco. O céu variava entre nuvens e um azul opaco, e a casa parecia acordar lentamente sob o toque de cada mão cuidadosa. Gabriel passava as manhãs supervisionando os engenheiros e avaliando os danos estruturais, enquanto Helena se refugiava nos salões internos, pincelando memórias com solventes e paciência.
Ao contrário do que ambos imaginavam, passaram a se cruzar mais vezes do que o necessário. Às vezes, era no corredor estreito entre a biblioteca e a sala de estar; outras, na cozinha antiga onde o cheiro de madeira molhada parecia morar. E toda vez que se viam, havia aquele breve instante de pausa — como se o tempo puxasse o freio para deixar que eles se notassem, mesmo que sem dizer nada.
Na quinta-feira, Gabriel chegou mais cedo. Encontrou Helena sentada no chão da sala principal, rodeada por fotografias antigas, ferramentas de restauração e xícaras de café empilhadas.
— Você mora aqui agora? — ele perguntou, com aquele tom seco que ela já começava a decifrar como provocação disfarçada de interesse.
Ela levantou os olhos devagar, com um meio sorriso nos lábios.
— Se eu disser que sim, você me expulsa?
— Não sei. Depende do quanto bagunça o meu projeto.
— Só desorganizo aquilo que merece ser refeito.
Gabriel riu — baixo, inesperado, como se o som escapasse por engano.
— Você fala como uma artista.
— Talvez porque eu sou. — Ela esticou uma foto na direção dele. — Sabe quem é esse?
Ele se aproximou, abaixando-se ao lado dela. A imagem mostrava um casal jovem, sorrindo em frente à casa, muitos anos antes de ela ruir com o tempo. A mulher usava um vestido de verão. O homem tinha as mãos firmes na cintura dela, como quem segura o que mais ama.
— Os primeiros donos? — arriscou.
— Sim. Ana e Vicente. Achei um diário dela em um compartimento escondido na parede do antigo escritório.
— E o que ela dizia?
— Que essa casa foi construída com promessas.
Gabriel observou a fotografia por mais tempo do que precisava. Parecia distante, como se a imagem o levasse para um lugar que ele não queria visitar.
— Você ainda não me contou por que deixou de acreditar no amor — Helena disse, sem encará-lo diretamente, mas o suficiente para fazer a pergunta entrar como vento por fresta.
— E você ainda não me perguntou o que eu fazia antes de ser arquiteto.
Ela virou o rosto. Esperava respostas, mas não esperava perguntas de volta.
— Então me conta.
Gabriel olhou para a janela embaçada. Passou a mão pelos próprios joelhos, como se o movimento o ajudasse a lembrar.
— Eu quase fui pianista.
— Quase?
— Eu tinha talento. Dedos longos, ouvidos bons. Cheguei a fazer concertos pequenos, estudar fora. Mas meu pai achava que música não pagava contas. “Homem de verdade constrói, não sonha”, ele dizia.
Helena o encarou. Nos olhos dele havia um brilho que não era saudade. Era aquilo que fica depois que a saudade passa: um tipo de aceitação silenciosa, e um pouco amarga.
— Então você constrói casas, mas ainda sonha com o piano?
— Às vezes, quando estou sozinho. — Ele sorriu de canto. — E você? O que teria sido se não restaurasse o passado?
— Perdida.
Silêncio. Mas era um silêncio confortável agora. Um que se sentava entre os dois como um amigo antigo.
— Posso te mostrar uma coisa? — ela perguntou, levantando-se e pegando o diário.
Abriu em uma página marcada com uma fita vermelha. Estendeu para Gabriel e apontou.
“Vicente me prometeu um lar onde eu nunca precisasse esconder quem sou. Cada parede dessa casa é um pedaço do nosso silêncio. Aqui, mesmo sem palavras, eu escuto o amor dele.”
Gabriel leu devagar, como se as palavras pesassem mais do que papel.
— Bonito. Triste também.
— As melhores coisas são, não acha?
Ele fechou o diário com cuidado.
— Talvez.
Os dias continuaram, como se a rotina ganhasse um novo ritmo — o ritmo dos dois. Eles dividiam almoços em silêncio, risadas discretas durante pausas, e eventualmente começaram a trocar confidências sem perceber.
Helena descobriu que Gabriel odiava açúcar no café, mas comia chocolate amargo como se fosse vício. Ele descobriu que ela colecionava pedaços de cerâmica quebrada que achava em lugares abandonados. “É como catar fragmentos de vidas”, ela dizia.
Cada detalhe virava ponte. Cada conversa, uma escada entre os mundos internos dos dois.
E naquela sexta-feira, quando o dia começava a escurecer, Gabriel se aproximou dela de novo, segurando algo nas mãos.
— Achei isso no porão. É antigo, mas parece seu.
Era uma caixa de música de madeira, com a tampa arranhada. Ele a entregou com cuidado.
Helena a abriu. A melodia era doce, melancólica. Pequena. Inacabada.
Ela não disse nada. Apenas olhou para ele. E ele, por fim, sorriu — não como quem se protege, mas como quem se permite.
E naquele instante, no meio de uma casa em ruínas, algo começou a nascer. Não era amor ainda. Mas era o silêncio entre as notas. A parte mais importante de qualquer melodia.
O sol atravessava os vitrais quebrados, projetando sombras manchadas nas paredes como pinturas em decomposição. A casa, com seus corredores estreitos e janelas altas, tinha o cheiro de madeira antiga, mofo leve e saudade acumulada.
Helena subia lentamente a escada de pedra que levava ao terceiro andar, onde, segundo antigos registros, ficava o quarto do casal original. Era a parte menos explorada do casarão, um lugar que o tempo parecia ter
Guardado com mais zelo — ou medo.
Gabriel vinha logo atrás, os passos calculados, mas sem pressa. Desde o dia anterior, quando ela abrira a caixa de música e o fitara em silêncio, algo mudara entre eles. Não diziam, mas sentiam.
No topo da escada, havia uma porta de madeira maciça com uma maçaneta enferrujada. Helena tentou girá-la, mas ela resistiu.
— Acho que o tempo fechou por dentro — murmurou, empurrando com o ombro.
Gabriel se aproximou, analisando o encaixe da madeira.
— Cuidado com essas dobradiças. Estão frágeis.
— Como corações antigos — ela respondeu, sem pensar, e corou logo depois.
Ele sorriu. De novo aquele sorriso raro, pequeno, mas verdadeiro.
Com um empurrão mais firme, a porta cedeu, revelando um quarto escuro e abafado. O cheiro era mais denso ali — poeira, tinta seca e algo que Helena não soube nomear. O ar parecia mais grosso, como se contivesse lembranças suspensas.
A luz entrou aos poucos quando abriram as janelas. Cortinas rasgadas balançaram, e
Móveis cobertos por lençóis antigos se revelaram: uma penteadeira de espelho trincado, uma poltrona virada de lado, uma cama de ferro com o colchão torto.
— Aqui era o quarto de Ana — disse Helena, caminhando devagar, como se não quisesse acordar nada.
Gabriel olhava em volta com atenção, mas dessa vez, com olhos de quem escutava.
— É estranho... parece que ela ainda mora aqui.
— Talvez more.
Ele a olhou, e não havia sarcasmo. Apenas curiosidade. Ele já não ria de suas crenças;
Agora, as considerava possibilidades.
No canto do quarto, uma porta menor, quase escondida. Helena se aproximou, com o coração batendo mais rápido. Gabriel estava perto, atento.
— Um armário? — ele perguntou.
— Ou algo mais...
Abriu devagar. Era uma saleta minúscula, como um refúgio secreto. Havia prateleiras, algumas caixas, e no meio delas, um diário ainda fechado.
Helena o pegou com cuidado. Era de couro escuro, com letras douradas quase apagadas.
— Outro? — Gabriel perguntou.
Ela assentiu.
— Esse está intacto. Deve ser o último. Talvez contenha a despedida.
Houve um silêncio carregado. Helena se sentou no chão de madeira, cruzando as pernas, enquanto folheava as primeiras páginas. Gabriel sentou-se ao lado, mais próximo do que o necessário.
Ela lia em voz alta, as palavras dançando entre os dois:
Vicente adoeceu. A casa, antes viva, começou a respirar tristeza. Eu ando pelos corredores e ouço os passos dele mesmo quando está dormindo. Acho que o amor também adoece com o tempo. Mas não morre. Nunca morre.”
Helena parou de ler. Seus olhos estavam marejados. Gabriel percebeu, mas não disse nada. Apenas estendeu a mão, devagar, e tocou o joelho dela. Um gesto simples. Um gesto raro. Um gesto suficiente.
— Helena...
Ela virou o rosto para ele. Seus olhos se encontraram, e havia uma tensão ali — não de confronto, mas de descoberta. Como se algo
Dentro dos dois dissesse: é agora.
— O que você está procurando aqui? — ele perguntou.
— Você quer dizer na casa?
— Não. Aqui. Comigo.
Ela respirou fundo. O ar parecia pesar mais ali.
— Acho que... estou tentando entender se ainda posso amar alguém. E se é seguro mostrar quem eu sou. Sem medo de não caber na vida do outro.
Gabriel ficou em silêncio por alguns segundos.
— E você está descobrindo?
Ela olhou pra ele, séria.
— Estou. Aos poucos.
O olhar dele era intenso agora. Quente. Diferente.
— E você? Por que voltou a tocar piano depois de tantos anos?
Gabriel hesitou. Sua mão ainda tocava o joelho dela, agora com mais firmeza.
— Porque você me fez lembrar que a vida precisa de algo além de estruturas.
E então, o momento. Não houve pressa. Nem promessas. Apenas a inclinação lenta dos
Corpos, o toque suave dos lábios, o beijo que não pedia licença, mas também não exigia garantia.
Foi um beijo calmo, mas cheio. Como se houvesse anos de silêncio guardado ali. Quando se afastaram, estavam diferentes. Respiravam mais devagar. Como quem sabe que está começando algo que pode mudar tudo.
Do lado de fora, o vento passava pelas janelas abertas, fazendo as cortinas dançarem. A casa parecia respirar aliviada.
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