Os dias seguintes chegaram como páginas em branco. O céu variava entre nuvens e um azul opaco, e a casa parecia acordar lentamente sob o toque de cada mão cuidadosa. Gabriel passava as manhãs supervisionando os engenheiros e avaliando os danos estruturais, enquanto Helena se refugiava nos salões internos, pincelando memórias com solventes e paciência.
Ao contrário do que ambos imaginavam, passaram a se cruzar mais vezes do que o necessário. Às vezes, era no corredor estreito entre a biblioteca e a sala de estar; outras, na cozinha antiga onde o cheiro de madeira molhada parecia morar. E toda vez que se viam, havia aquele breve instante de pausa — como se o tempo puxasse o freio para deixar que eles se notassem, mesmo que sem dizer nada.
Na quinta-feira, Gabriel chegou mais cedo. Encontrou Helena sentada no chão da sala principal, rodeada por fotografias antigas, ferramentas de restauração e xícaras de café empilhadas.
— Você mora aqui agora? — ele perguntou, com aquele tom seco que ela já começava a decifrar como provocação disfarçada de interesse.
Ela levantou os olhos devagar, com um meio sorriso nos lábios.
— Se eu disser que sim, você me expulsa?
— Não sei. Depende do quanto bagunça o meu projeto.
— Só desorganizo aquilo que merece ser refeito.
Gabriel riu — baixo, inesperado, como se o som escapasse por engano.
— Você fala como uma artista.
— Talvez porque eu sou. — Ela esticou uma foto na direção dele. — Sabe quem é esse?
Ele se aproximou, abaixando-se ao lado dela. A imagem mostrava um casal jovem, sorrindo em frente à casa, muitos anos antes de ela ruir com o tempo. A mulher usava um vestido de verão. O homem tinha as mãos firmes na cintura dela, como quem segura o que mais ama.
— Os primeiros donos? — arriscou.
— Sim. Ana e Vicente. Achei um diário dela em um compartimento escondido na parede do antigo escritório.
— E o que ela dizia?
— Que essa casa foi construída com promessas.
Gabriel observou a fotografia por mais tempo do que precisava. Parecia distante, como se a imagem o levasse para um lugar que ele não queria visitar.
— Você ainda não me contou por que deixou de acreditar no amor — Helena disse, sem encará-lo diretamente, mas o suficiente para fazer a pergunta entrar como vento por fresta.
— E você ainda não me perguntou o que eu fazia antes de ser arquiteto.
Ela virou o rosto. Esperava respostas, mas não esperava perguntas de volta.
— Então me conta.
Gabriel olhou para a janela embaçada. Passou a mão pelos próprios joelhos, como se o movimento o ajudasse a lembrar.
— Eu quase fui pianista.
— Quase?
— Eu tinha talento. Dedos longos, ouvidos bons. Cheguei a fazer concertos pequenos, estudar fora. Mas meu pai achava que música não pagava contas. “Homem de verdade constrói, não sonha”, ele dizia.
Helena o encarou. Nos olhos dele havia um brilho que não era saudade. Era aquilo que fica depois que a saudade passa: um tipo de aceitação silenciosa, e um pouco amarga.
— Então você constrói casas, mas ainda sonha com o piano?
— Às vezes, quando estou sozinho. — Ele sorriu de canto. — E você? O que teria sido se não restaurasse o passado?
— Perdida.
Silêncio. Mas era um silêncio confortável agora. Um que se sentava entre os dois como um amigo antigo.
— Posso te mostrar uma coisa? — ela perguntou, levantando-se e pegando o diário.
Abriu em uma página marcada com uma fita vermelha. Estendeu para Gabriel e apontou.
“Vicente me prometeu um lar onde eu nunca precisasse esconder quem sou. Cada parede dessa casa é um pedaço do nosso silêncio. Aqui, mesmo sem palavras, eu escuto o amor dele.”
Gabriel leu devagar, como se as palavras pesassem mais do que papel.
— Bonito. Triste também.
— As melhores coisas são, não acha?
Ele fechou o diário com cuidado.
— Talvez.
Os dias continuaram, como se a rotina ganhasse um novo ritmo — o ritmo dos dois. Eles dividiam almoços em silêncio, risadas discretas durante pausas, e eventualmente começaram a trocar confidências sem perceber.
Helena descobriu que Gabriel odiava açúcar no café, mas comia chocolate amargo como se fosse vício. Ele descobriu que ela colecionava pedaços de cerâmica quebrada que achava em lugares abandonados. “É como catar fragmentos de vidas”, ela dizia.
Cada detalhe virava ponte. Cada conversa, uma escada entre os mundos internos dos dois.
E naquela sexta-feira, quando o dia começava a escurecer, Gabriel se aproximou dela de novo, segurando algo nas mãos.
— Achei isso no porão. É antigo, mas parece seu.
Era uma caixa de música de madeira, com a tampa arranhada. Ele a entregou com cuidado.
Helena a abriu. A melodia era doce, melancólica. Pequena. Inacabada.
Ela não disse nada. Apenas olhou para ele. E ele, por fim, sorriu — não como quem se protege, mas como quem se permite.
E naquele instante, no meio de uma casa em ruínas, algo começou a nascer. Não era amor ainda. Mas era o silêncio entre as notas. A parte mais importante de qualquer melodia.
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Atualizado até capítulo 35
Comments
Thiago Lopes
eu tbm sou assim, mas em relação ao esporte tênis.
2025-04-30
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