Capítulo 4

A reforma avançava como uma dança desequilibrada. Cada dia, um avanço. Cada noite, uma dúvida. A casa mudava, mas não apenas por fora. Gabriel e Helena, antes apenas sombras em cômodos diferentes, agora dividiam conversas, silêncios e olhares que diziam mais do que qualquer relatório técnico.

Mas o tempo — esse velho escultor — também esculpia as diferenças entre eles.

Naquela manhã, o casarão parecia respirar um ar mais leve. O céu estava claro, e o barulho dos trabalhadores enchia o pátio com vida. Helena chegou cedo, com o cabelo preso de qualquer jeito, tinta nos dedos e um brilho nos olhos.

Gabriel, por outro lado, estava mais fechado. Sentado em frente à prancheta, concentrado, quase blindado.

— Bom dia — ela disse, pousando uma caneca de café ao lado dele.

— Bom dia — respondeu, sem levantar os olhos.

Ela esperou. Um segundo. Dois. O silêncio dele agora era diferente. Era um retorno ao antigo Gabriel, o que ela achava que já tinha começado a derreter.

— Aconteceu alguma coisa?

Ele ergueu os olhos, hesitando.

— Tenho uma reunião hoje. Com a fundação. Precisam revisar os custos. Provavelmente vão cortar coisas. Talvez precisemos simplificar algumas partes do projeto.

— Simplificar? — ela arqueou uma sobrancelha. — Mas você mesmo disse que a casa merecia renascimento, não reforma econômica.

— Eu disse isso antes de ver os relatórios finais. Não posso ignorar o que é viável.

Helena cruzou os braços, o corpo assumindo uma postura que Gabriel ainda não conhecia nela.

— Às vezes o que é viável destrói o que é essencial.

Ele fechou o caderno com firmeza. O som seco cortou o ar.

— Você fala como artista. Eu, como engenheiro. Alguém precisa manter os pés no chão.

— E alguém precisa lembrar por que começamos tudo isso.

Eles se olharam. Não como antes. Agora havia faíscas.

— Talvez a gente só veja a casa de formas diferentes — ele disse.

— Talvez a gente veja o mundo de formas diferentes.

Silêncio. O tipo de silêncio que não é conforto, mas tensão.

Antes que qualquer um dissesse algo, uma voz feminina ecoou do corredor.

— Gabriel?

Helena virou-se. Uma mulher de cabelos castanho-escuros, saltos firmes e um vestido elegante estava parada na entrada do cômodo. Tinha um porte de quem entra em qualquer lugar sem pedir licença. Seus olhos foram direto para Gabriel, e então pousaram em Helena, avaliando.

— Bianca — ele disse, levantando-se.

A mulher sorriu, mas havia um veneno sutil no gesto.

— Quanto tempo...

— O que você está fazendo aqui?

— Vim ver a casa. Soube da restauração pelo conselho. E achei que poderia te surpreender.

Helena observava os dois com atenção. Gabriel estava desconfortável. Muito.

— Vocês se conhecem? — Helena perguntou, a voz neutra, mas atenta.

Bianca se virou para ela, com o sorriso mais afiado.

— Fui noiva dele. Por pouco tempo, mas tempo suficiente para conhecer o gosto por ruínas.

— Bianca... — Gabriel advertiu, com a voz tensa.

— Só estou brincando — disse, tocando levemente o braço dele. — Vocês estão trabalhando juntos?

— Sim — disse Helena. — Eu sou a restauradora.

— Ah, claro. A artista. — Bianca disse a palavra como se fosse uma profissão de infância. — Imagino que esse lugar deva parecer mágico pra você. Mas cuidado... Gabriel tem o péssimo hábito de deixar as coisas pela metade.

Helena sentiu um frio atravessar o peito. Mas não respondeu. Não ali. Não ainda.

Bianca se despediu com um beijo no rosto de Gabriel e um olhar silencioso para Helena. Depois saiu, deixando um perfume caro e um vácuo de incômodo.

— Eu não sabia que você tinha sido noivo — Helena disse, quando ficaram sozinhos.

— Não achei que importasse.

— Não importa. Mas o jeito como ela te olhou... importou.

Gabriel esfregou o rosto, cansado.

— Foi uma história complicada. Terminamos há quase dois anos. Mas ela aparece quando quer. E sempre traz confusão.

Helena assentiu, sem dizer nada. Guardou seus pincéis. Seus cadernos. Suas perguntas.

E desceu as escadas devagar, como quem sente o coração pesar um pouco mais a cada degrau.

A tarde caiu pesada sobre os telhados. O vento, antes fresco, agora soprava seco e inquieto, arrastando folhas pelo jardim como pensamentos soltos. Helena caminhava pela lateral da casa, onde uma estufa quebrada deixava passar a luz do entardecer em feixes dourados. Ali, o silêncio era mais denso, como se nem os pássaros ousassem cantar.

Ela se sentou no chão de cimento rachado e abriu o diário de Ana mais uma vez. Tentava se concentrar nas palavras da mulher que vivera ali décadas antes, mas sua mente voltava ao rosto de Bianca. Ao jeito como ela o tocava. Como conhecia partes dele que Helena ainda nem imaginava.

Você sabia no que estava se metendo, ela disse a si mesma. Ele nunca prometeu nada.

Mas ainda assim, doía.

Lembrava-se do beijo. Daquela conexão muda. Dos olhos dele olhando os dela como se encontrassem alguma espécie de lar. Mas e agora? Teria sido só mais um instante entre ruínas?

No diário, Ana escrevia:

“Mesmo quando a casa parecia desabar, Vicente olhava para mim como quem segura as colunas. Mas um dia, percebi que o que nos unia já não era promessa, era hábito. E o hábito é uma casa sem janelas.”

Helena fechou o caderno com força. Não queria o hábito. Não queria virar sombra de uma história mal resolvida.

Na mesma hora, Gabriel descia as escadas em passos duros. Procurava por ela. Tinha tentado voltar ao trabalho, mas cada linha no projeto o lembrava do jeito que ela o olhou após a visita de Bianca. Aquilo não podia terminar assim.

A encontrou na estufa, sentada entre vidros quebrados e silêncio. Parou na porta, hesitando.

— Posso entrar?

Ela não respondeu, mas também não o expulsou.

Ele se aproximou devagar. O cheiro de poeira misturado ao cheiro dela o atingiu como um golpe brando.

— Eu devia ter te contado sobre a Bianca.

— Devia — ela respondeu, sem olhar. — Mas acho que o problema não é ela. É o que ela representa.

— O quê?

— Um mundo que eu não entendo. Pessoas que vestem máscaras sem parecerem falsas. Relações que não acabam de verdade. Gente que acha graça em ferir com elegância.

Gabriel suspirou, e se sentou ao lado dela. Não muito perto. Mas perto o suficiente.

— Eu nunca fui bom com pessoas. Fui treinado pra obedecer, pra construir, pra não sentir demais. Bianca era perfeita no papel. Sabia o que dizer, como se portar, como agradar o mundo.

— Mas não te conhecia de verdade.

Ele assentiu.

— E você... você me viu de um jeito que ninguém tinha visto. E isso assusta.

— Por quê?

— Porque eu não sei o que fazer com isso.

Helena virou o rosto para ele.

— Você não precisa fazer nada. Só não finja que não sente. Porque eu sinto. Mesmo tentando não sentir. Mesmo com medo.

A tensão entre eles se dissolveu lentamente. Como tinta na água.

Gabriel estendeu a mão, e dessa vez ela a segurou.

— Eu não quero repetir erros — ele disse.

— Nem eu.

— Mas talvez... a gente precise aprender a ser diferente juntos.

Ela sorriu, cansada.

— Então me mostra teu mundo. E deixa eu te mostrar o meu.

Ele assentiu.

— Amanhã. Te levo num lugar.

— Onde?

— Um lugar onde eu toco piano.

Ela riu, com ternura.

— Isso parece perigoso.

— É. Mas talvez seja o risco certo.

A noite desceu sobre o casarão com mais suavidade. E, mesmo com tantas diferenças, medos e fantasmas, algo entre eles continuava crescendo. Como as raízes de uma árvore teimosa, insistindo em nascer entre pedras.

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