O sol atravessava os vitrais quebrados, projetando sombras manchadas nas paredes como pinturas em decomposição. A casa, com seus corredores estreitos e janelas altas, tinha o cheiro de madeira antiga, mofo leve e saudade acumulada.
Helena subia lentamente a escada de pedra que levava ao terceiro andar, onde, segundo antigos registros, ficava o quarto do casal original. Era a parte menos explorada do casarão, um lugar que o tempo parecia ter
Guardado com mais zelo — ou medo.
Gabriel vinha logo atrás, os passos calculados, mas sem pressa. Desde o dia anterior, quando ela abrira a caixa de música e o fitara em silêncio, algo mudara entre eles. Não diziam, mas sentiam.
No topo da escada, havia uma porta de madeira maciça com uma maçaneta enferrujada. Helena tentou girá-la, mas ela resistiu.
— Acho que o tempo fechou por dentro — murmurou, empurrando com o ombro.
Gabriel se aproximou, analisando o encaixe da madeira.
— Cuidado com essas dobradiças. Estão frágeis.
— Como corações antigos — ela respondeu, sem pensar, e corou logo depois.
Ele sorriu. De novo aquele sorriso raro, pequeno, mas verdadeiro.
Com um empurrão mais firme, a porta cedeu, revelando um quarto escuro e abafado. O cheiro era mais denso ali — poeira, tinta seca e algo que Helena não soube nomear. O ar parecia mais grosso, como se contivesse lembranças suspensas.
A luz entrou aos poucos quando abriram as janelas. Cortinas rasgadas balançaram, e
Móveis cobertos por lençóis antigos se revelaram: uma penteadeira de espelho trincado, uma poltrona virada de lado, uma cama de ferro com o colchão torto.
— Aqui era o quarto de Ana — disse Helena, caminhando devagar, como se não quisesse acordar nada.
Gabriel olhava em volta com atenção, mas dessa vez, com olhos de quem escutava.
— É estranho... parece que ela ainda mora aqui.
— Talvez more.
Ele a olhou, e não havia sarcasmo. Apenas curiosidade. Ele já não ria de suas crenças;
Agora, as considerava possibilidades.
No canto do quarto, uma porta menor, quase escondida. Helena se aproximou, com o coração batendo mais rápido. Gabriel estava perto, atento.
— Um armário? — ele perguntou.
— Ou algo mais...
Abriu devagar. Era uma saleta minúscula, como um refúgio secreto. Havia prateleiras, algumas caixas, e no meio delas, um diário ainda fechado.
Helena o pegou com cuidado. Era de couro escuro, com letras douradas quase apagadas.
— Outro? — Gabriel perguntou.
Ela assentiu.
— Esse está intacto. Deve ser o último. Talvez contenha a despedida.
Houve um silêncio carregado. Helena se sentou no chão de madeira, cruzando as pernas, enquanto folheava as primeiras páginas. Gabriel sentou-se ao lado, mais próximo do que o necessário.
Ela lia em voz alta, as palavras dançando entre os dois:
Vicente adoeceu. A casa, antes viva, começou a respirar tristeza. Eu ando pelos corredores e ouço os passos dele mesmo quando está dormindo. Acho que o amor também adoece com o tempo. Mas não morre. Nunca morre.”
Helena parou de ler. Seus olhos estavam marejados. Gabriel percebeu, mas não disse nada. Apenas estendeu a mão, devagar, e tocou o joelho dela. Um gesto simples. Um gesto raro. Um gesto suficiente.
— Helena...
Ela virou o rosto para ele. Seus olhos se encontraram, e havia uma tensão ali — não de confronto, mas de descoberta. Como se algo
Dentro dos dois dissesse: é agora.
— O que você está procurando aqui? — ele perguntou.
— Você quer dizer na casa?
— Não. Aqui. Comigo.
Ela respirou fundo. O ar parecia pesar mais ali.
— Acho que... estou tentando entender se ainda posso amar alguém. E se é seguro mostrar quem eu sou. Sem medo de não caber na vida do outro.
Gabriel ficou em silêncio por alguns segundos.
— E você está descobrindo?
Ela olhou pra ele, séria.
— Estou. Aos poucos.
O olhar dele era intenso agora. Quente. Diferente.
— E você? Por que voltou a tocar piano depois de tantos anos?
Gabriel hesitou. Sua mão ainda tocava o joelho dela, agora com mais firmeza.
— Porque você me fez lembrar que a vida precisa de algo além de estruturas.
E então, o momento. Não houve pressa. Nem promessas. Apenas a inclinação lenta dos
Corpos, o toque suave dos lábios, o beijo que não pedia licença, mas também não exigia garantia.
Foi um beijo calmo, mas cheio. Como se houvesse anos de silêncio guardado ali. Quando se afastaram, estavam diferentes. Respiravam mais devagar. Como quem sabe que está começando algo que pode mudar tudo.
Do lado de fora, o vento passava pelas janelas abertas, fazendo as cortinas dançarem. A casa parecia respirar aliviada.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 35
Comments
Thiago Lopes
quando se encontra um diário, tretas do passado vêm à tona rsrs
2025-04-30
0