Fora da Zona de Conforto
Hoje eu acordei antes do despertador. De novo.
O teto do quarto do abrigo tem algumas manchas que parecem mapas. Tem uma que sempre olho antes de levantar. Parece uma ilha isolada, cercada por nada. Acho que sou essa ilha.
Aqui no centro de acolhimento tudo tem cor neutra, cheiro de limpeza e passos contidos. Ninguém fala alto, ninguém pergunta muito. É um tipo de silêncio que grita de outro jeito. Um silêncio cheio de passados partidos.
Levanto devagar, tento não acordar as outras meninas. Cada uma carrega algo nos olhos que aprendi a reconhecer: o peso de quem já viu demais, sentiu demais, e não teve tempo pra digerir. Eu me encaixo bem aqui. Ou talvez... não.
Sempre tento passar despercebida. Roupas discretas, cabelo preso, passos leves. Mas, de alguma forma, eu sempre acabo sendo notada. Acho que é porque olho nos olhos. Ou porque escuto mais do que falo. Isso incomoda algumas pessoas. Atrai outras.
No caminho até a escola, olho pela janela do ônibus e imagino as vidas das pessoas na rua. Uma mulher apressada com uma sacola furada. Um menino chutando uma garrafa como se fosse uma bola. Gosto de inventar histórias sobre elas. É mais fácil do que encarar as minhas.
Na escola, tudo parece barulhento demais. Risos altos, corredores cheios, conversas cortantes. Eu ando com o olhar baixo, mas sei que alguém me observa. Sempre tem alguém.
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Diálogo
uma jovem do centro — Você sempre fica sozinha? — pergunta uma voz ao meu lado, no pátio.
É a Lin — uma jovem que estáno centro também e, é da mesma turma que eu. Ela tem cabelos encaracolados e sorriso fácil. Já tentou puxar conversa comigo algumas vezes.
Xiaoyu — Eu gosto de observar. — respondo, tentando sorrir sem parecer forçada.
Lin — Você parece tranquila. Diferente. As pessoas notam isso, sabia?
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Suspiro por dentro. Eu sei. E às vezes, isso não é bom.
Na aula de literatura, o professor pede pra escrevermos um texto sobre “um lugar onde nos sentimos seguros”. Meu peito aperta.
Seguro?
Começo a escrever, mas as palavras saem todas erradas. Rasgo a folha e começo outra vez. E de novo. No fim, só consigo escrever:
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"Existe um lugar dentro de mim onde tudo está calmo.
Nele, minha mãe sorri sem medo.
Meu irmão dorme em paz.
Meu pai não precisa ir embora para se proteger.
E eu... sou só uma menina.
Não uma ilha."
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Dobro o papel e não entrego.
Na saída da escola, vejo um grupo cochichando e olhando na minha direção. Não me surpreende. Uma das meninas, Tao Mei, me encara com desprezo discreto.
Ela já tentou provocar-me antes. Disse que “pessoas como eu” se acham superiores só porque ficam caladas. Como se o meu silêncio fosse um julgamento.
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Mas hoje, algo nela me incomoda diferente. Ela passa por mim e murmura:
Diálogo
Tao Mei — Deve ser fácil fugir dos problemas quando se tem pra onde correr.
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Congelo. As palavras batem fundo. Meu coração dispara.
Não respondo. Não posso. Se eu abrir a boca agora, vou gritar. Ou chorar. E não quero nenhum dos dois.
Volto pro centro de acolhimento com a garganta fechada. Subo direto pro quarto e me deito na cama. A mancha no teto me observa em silêncio.
Pego meu caderno e começo a escrever. Palavras soltas. Sentimentos sem filtro.
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"Não escolhi fugir.
Eu era só uma criança.
E mesmo assim, tentei proteger todo mundo.
Até minha mãe, que devia ter me protegido.
E agora carrego uma culpa que não é minha.
Mas que me acompanha como sombra."
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Fecho o caderno.
Alguns minutos depois, alguém bate na porta. É Lin. De novo.
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Diálogo
Lin — Você tá bem?
Quero dizer "sim". Mas algo em mim cansa de fingir.
Xiaoyu — Às vezes não. Mas eu aprendi a parecer.
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Ela entra e senta na cama ao meu lado. Em silêncio.
É estranho. Mas bom. Alguém sentar ao meu lado sem tentar consertar nada. Só ficar.
E pela primeira vez em muito tempo, eu não me sinto completamente sozinha. Só um pouco. Mas já é um começo.
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Atualizado até capítulo 47
Comments
Dayra Malay
Continua escrevendo! 👏
2025-04-09
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