Acordei com uma sensação que não sabia nomear. Era como um abraço apertado demais por dentro — uma mistura de medo, saudade e um aperto que começava no peito e descia até o estômago.
Hoje é o dia em que volto para casa.
Não para morar. Apenas para o fim de semana. A primeira saída liberada desde que entrei no centro de acolhimento. Todos pareciam ver isso como um avanço. Menos eu.
Voltar para o lugar onde tudo aconteceu — onde tudo ainda acontece — parece menos uma conquista e mais uma ferida aberta.
No carro, o caminho parecia o mesmo. As mesmas ruas, o mesmo mercado da esquina, o mesmo portão enferrujado de sempre. Mas dentro de mim, tudo era diferente. Cada passo em direção àquela porta era como andar sobre vidro.
Bati duas vezes. A campainha não funcionava, como sempre.
Foi meu irmão quem abriu. Mais alto, o rosto mais magro. O tempo passou pra ele também, mas os olhos... os olhos continuavam com aquele brilho infantil que ele nunca deixou de ter.
Ele sorriu, meio sem graça. E, por um segundo, quase esqueci de todo o resto.
Toy— Xiaoyu...
Foi tudo o que ele disse. E tudo o que eu consegui ouvir antes de ele me puxar pra um abraço tímido. Demorei um pouco pra corresponder. Não porque não queria. Mas porque meu corpo ainda estava tentando entender se era seguro.
Minha mãe apareceu logo depois. Vinha da cozinha, as mãos sujas de farinha. O avental manchado, o cabelo preso com um lápis. Os olhos, como sempre, cheios demais de tudo: de raiva, de cansaço, de um amor torto e doído que ela nunca soube expressar direito.
Ela não disse nada. Nem "oi". Só me olhou. Um olhar demorado, como se estivesse tentando reconhecer quem eu era agora. Talvez ela não tenha gostado do que viu. Ou talvez só não soubesse por onde começar.
Filipa(mae)— Fiz bolinhos de arroz. — ela disse, voltando pra cozinha.
Me sentei na sala. O sofá era o mesmo. Os buracos no estofado, as molas afundadas, o pano cobrindo a mancha de molho. Tudo igual. Mas o ar... o ar estava mais pesado do que eu lembrava.
A televisão estava ligada, mas ninguém assistia. O som era só pano de fundo para silêncios que diziam demais.
O almoço aconteceu quase em silêncio. Meu irmão tentava puxar conversa de vez em quando sobre a escola, um jogo, coisas leves. Minha mãe corrigia alguma coisa ou suspirava alto, como se tudo fosse incômodo.
Eu não sabia onde colocar as mãos. Nem os pensamentos.
Depois do almoço, fui até meu quarto antigo. A porta rangia. As paredes tinham os mesmos cartazes que colei anos atrás. Minhas letras ainda estavam na madeira da cama. Era como se o tempo tivesse parado ali... só que tudo estava mais vazio. E eu também.
Me deitei um pouco. Fechei os olhos. Mas era impossível descansar.
...----------------...
"Estar aqui é como reviver um filme que eu odeio, mas que conheço de cor.
Cada canto dessa casa carrega uma lembrança. E nem todas são ruins.
Mas as boas também doem. Porque me lembram do que poderia ter sido."
Mais tarde, minha mãe me chamou para ajudar com o jantar. Por impulso, fui.
Ela não olhava muito nos meus olhos. Dava ordens simples, como sempre. "Corta isso." "Põe aquilo no fogo." E eu obedecia, como se ainda tivesse dez anos.
...****************...
Diálogo
Filipa — Você está diferente. — ela disse, sem me encarar.
Não soube se era elogio ou crítica.
Xiaoyu— Cresci. — respondi.
...****************...
Ela não disse mais nada.
O jantar foi rápido. À noite, me tranquei no quarto. Escrevi no caderno, com a luz do abajur fraca e o coração meio fora do lugar.
...----------------...
"A dor não é só o que aconteceu.
É o que ainda acontece.
É perceber que parte de mim ainda quer o abraço que nunca veio.
E que mesmo sabendo de tudo, ainda amo minha mãe.
Mesmo com a raiva.
Mesmo com o medo."
...----------------...
No domingo, fui embora cedo. Meu irmão me abraçou com mais força dessa vez. E sussurrou:
Toy — Queria ir contigo.
Não soube o que responder. Então só segurei sua mão por um momento mais longo.
Minha mãe ficou na porta. Não chorou. Nem sorriu. Só acenou, com a mesma expressão cansada de sempre.
No carro de volta, chorei. Baixinho, quase sem som.
Voltar não foi o que imaginei. Não trouxe paz. Nem resposta.
Mas me mostrou que eu ainda tenho feridas abertas. E que talvez... só talvez... esteja pronta pra começar a cuidar delas.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 47
Comments