Uma Linda Mentira
Alice Monteiro
Tudo sempre é culpa do maldito Pedro Bittencourt!
Ok, talvez nem tudo, mas absolutamente todos os meus problemas de
hoje são culpa unicamente do mesquinho, sem coração, frio e calculista Pedro
Bittencourt. Logo, qualquer outro problema que eu tenha hoje
automaticamente virará culpa dele. Não dou a mínima, preciso de um culpado
e ele é um ótimo bode expiatório.
O cafajeste é bonito pra porra? Sim, mas também é um tremendo
cretino. O pior tipo de chefe do mundo e tudo bem que só tive dois chefes,
mas certeza que ele é o pior, tipo, o pior de todos os piores chefes da face da
Terra. O cara que merece uma medalha por ser o pior chefe do mundo,
entende?
— Está rosnando como um cachorro furioso — Vivian murmura no
cubículo ao lado e eu tento respirar fundo enquanto continuo colocando
minhas coisas dentro da bolsa. — E acho melhor pegar uma caixa.
— Eu não tenho tanta coisa assim — rebato, ainda que seja visível a
minha mentira e penso no estrago que meu cacto fará ao forro da minha bolsa
parcelada em quatro vezes.
— Posso ficar com isso — Vivi me salva, tomando o cacto da minha
mão e tentando arrumar espaço em sua própria mesa para a planta. — Tem
certeza que não quer ir lá pra casa mais tarde? Eu e você, quatro garrafas de
Casal Garcia Rosé…
— Amanhã é quarta-feira, Vivi — lembro-a, tirando meus olhos do
meu antigo lugar favorito do mundo para fitar os olhos negros da minha
melhor amiga. — Além disso, não podemos pagar por quatro garrafas de
Casal Garcia…
— Pérgola? — ela insiste, me dando seu sorriso fofo.
— E a desempregada aqui sou eu, não você. Precisa estar aqui às oito
amanhã, preferencialmente sem ressaca — continuo, ignorando sua sugestão.
— Também não sei se estou no clima para enfrentar o senhor zangado —
comento, me deixando cair na cadeira dura uma última vez enquanto começo
a vasculhar pelos meus papéis.
— Primeiro, o nome dele é Plínio, não senhor zangado. E ele te
adora! — exalta, esticando-se até apoiar as mãos e o queixo na divisória entre
nossas mesas.
Acho que Vivi e eu temos definições diferentes de adorar. Cinco
arranhões, contando um na ponta do meu nariz, não são considerados adorar
na minha língua, e isso foi em somente uma visita ao seu apartamento. E
outra, mesmo amando minha melhor amiga e sendo grata por todos os vinte
meses dividindo esse espaço pequeno e sendo vizinhas de redação, não quero
obrigá-la a me receber por pena.
Vivian Zhou é minha primeira, e única, amiga verdadeira em São
Paulo. E ela com toda certeza gastaria sua preciosa terça à noite assistindo à
reprise de alguma competição de culinária para me consolar pelo meu recente
desemprego em seu apartamento que deve ter uns trinta metros quadrados,
isso nos melhores e mais organizados dias. Entretanto, posso me afundar em
álcool barato, sorvete barato e pizza de caixinha, também barata, enquanto
atualizo meu currículo e penso em cometer loucuras, tipo tenta aprender a
fazer vodu para espetar a bunda bonita e firme de Pedro Bittencourt repetidas
vezes.
Já minha amiga, com o emprego seguro, precisa estar de pé cedinho
amanhã para enfrentar o dia com pautas demais.
Eu amo o excesso de pautas.
Ok, isso já é romantização do capitalismo, mas o fato é que eu amo
ter um emprego, ou melhor, amo ter uma fonte de renda que pague as minhas
contas.
Deveria ter feito a tal reserva de emergência que todo mundo sempre
fala. Mas como guardar dinheiro quando o que me sobra é dois reais?
Em troco de bala.
Se eu não tivesse comprado essa bolsa, que é linda e irresistível
inclusive, talvez tivesse me sobrado R$249,90 no último mês. Entrar na
Renner sempre faz um terrorismo com a minha carteira. Deveria desconfiar
que uma bolsa que custava mais de duzentos reais não me traria somente
felicidade no futuro.
Tudo é culpa do maldito Pedro Bittencourt!
— Repetir isso não fará seu emprego voltar. — Vivian me traz de
volta à realidade e pisco algumas vezes antes de fitá-la. — Sim, disse isso em
voz alta — responde minha pergunta silenciosa. — Mas está bem, ao invés de
enchermos a cara hoje, podemos fazer isso no final de semana. Cici disse que
encontrou um bar novo lá na Vila Mariana.
Cici é apelido para Aparecida, a nova estagiária do jornal, e eu a
entendo. Cici parece uma pessoa de vinte anos, diferente de Cida.
— Adolescentes são…
— Iludidos e pagam bebida — ela complementa para mim, me dando
um sorriso convincente e tentando me dizer que isso é, sim, uma boa ideia.
Solto um resmungo que soa como uma afirmação. — Ótimo, iremos no
sábado e poderemos falar abertamente sobre o maldito Pêzinho.
— Pêzinho dá mesmo uma ideia errada pra coisa toda — murmuro,
perdida em pensamentos quando separo uma pilha de folhas que considero
importantes.
— É impossível que ele… — ela cochicha, inclinando o queixo na
direção da porta fechada do meu antigo chefe — seja um pêzinho —
continua, indicando um comprimento pequeno entre os dois indicadores.
— Nunca gastei meu tempo pensando nisso — retruco, revirando os
olhos.
Uma mentira do tamanho do estado do Pará.
— Você já botou coisas bem estranhas na boca, não vem pagar de boa
samaritana. Ele pode ser o nosso diabo particular, mas é um homem bonito.
Seria desperdício se fosse um zinho — ela continua a divagação, inclinando a
cabeça para o lado e mordendo a ponta da caneta.
Seria mesmo.
— Está bem, chega de falar desse infeliz. É hora de ir — falo,
levantando da minha, oficialmente, ex-cadeira e pegando o montante de
folhas, assim como penduro minha bolsa na dobra do cotovelo.
— Não acredito que ele fez isso com você — Vivi resmunga pela
décima vez na última meia hora e ofereço meu melhor sorriso em sua direção.
— Irei pedir para Thais mandar qualquer vaga que possa surgir por lá —
comenta, citando sua amiga de faculdade, atual jornalista da concorrência.
Ir para o Jornal da Avenida seria uma boa vingança. O concorrente
direto do Diário da Paulista, chefiado pelo arquirrival do maldito Pedro
Bittencourt.
Não que ele fosse se doer, longe disso. Imagino que ele nem sequer
saiba meu nome para perceber a mudança de redação. Um babaca de marca
maior.
— Irei deixar esses papéis aqui na sala dele, são alguns dados sobre as
pautas das minhas próximas reportagens que consegui descobrir. Sabe-se lá
quem será entupido ainda mais com pautas e pegará as minhas, o Pedro que
se vire — digo, juntando os caquinhos do que restou do meu orgulho ao
longo dos anos.
— Posso entregar para você — sugere, mas logo vê o olhar
determinado que carrego. — Ok, entendi, precisa fazer isso antes de ir
embora — constata baixinho. — Boa sorte!
— Obrigada — replico, recebendo uma piscada radiante dela.
Não fiz muitas caminhadas da vergonha, porém essa com certeza é a
pior de todas. E eu nem mesmo estou nua, ou acabei de gozar. Se bem que
nem todas as caminhadas da vergonha foram antecedidas por orgasmos, o
que transforma a vergonha ainda maior. Por ter perdido o meu precioso
tempo. De qualquer forma, a caminhada até o escritório do meu agora exchefe é vergonhosa.
É como se todos os meus antigos colegas já estivessem mais do que
cientes da minha demissão, mas eles não estão, sei que não estão nem mesmo
me olhando. Todos por aqui tem trabalho demais para fazer para se preocupar
com a demissão de um colega, apesar de eu saber que amanhã irão se lembrar
de mim quando minhas demandas forem repassadas, aumentando a pilha de
pautas no canto de suas mesas. Não só as minhas, como a de outros três
jornalistas.
Estamos sendo deixados para trás para que o jornal agregue
assinaturas renomadas no mercado. Alice Monteiro não é ninguém, mas
Patrícia Ruiz é, a bonitona que acabou de chegar do doutorado na Suécia, excolega de faculdade de Pedro. Ele está lutando duro para trazer alguns
jornalistas pomposos para a redação e, por isso, precisa se livrar de alguns
salários.
Parece que o meu foi o sorteado da vez, afinal, tenho certeza que o
chefinho nem mesmo sabe meu nome ou conhece alguma das reportagens
que já fiz. Ele deve ter jogado nossos nomes em sua xícara cara, nem se dado
ao trabalho de misturar, e arrancado o emprego de quatro de nós lá de dentro.
Repetindo, um puta babaca do caralho.
Pelo menos agora não precisarei mais conter meus xingamentos para
ele e admito que construí uma invejável lista de xingamentos ao longo dos
meus quase dois anos trabalhando no Diário da Paulista. Pedro sempre foi o
inferno pessoal de todos os funcionários daqui, a única parte odiável desse
emprego.
Essa é a pior parte, eu adoro esse local, adoro as mesas apertadas, o
cheiro de papel, o barulho de várias teclas sendo clicadas simultaneamente, o
cheiro de café que é passado o tempo todo. Adoro a visão da Paulista aos
nossos pés, com as pessoas em tamanho de formiguinhas andando apressadas
de um lado para o outro enquanto contamos alguma história, ou várias, daqui
de cima.
Um suspiro me escapa dos lábios e, mesmo se houvesse alguma coisa
que não é culpa do maldito Pedro Bittencourt, nesse momento, enquanto me
preparo para bater em sua porta, tentando fazer malabarismo com os papéis e
minha bolsa abarrotada, penso que tudo é culpa dele.
Ele é o homem que me deu os meus sonhos para alguns anos depois
simplesmente arrancá-los dos meus braços e amassá-los com suas mãos
gigantescas e sua carranca emburrada.
Mesmo sabendo que sinto um ódio profundo por ele, nutrido ao longo
dos últimos vinte meses, quando ergo minha mão em punho, sinto que ainda
há espaço para mais ódio no meu pequeno coraçãozinho. Seu potencial de
fazer cagadas é enorme e eu sei que ele irá fazer e falar a coisa errada no
momento que abrir a porta.
Estou triste, pobre, solteira, carente, na seca, com um cartão que não
sei como irei pagar e desempregada.
E tudo é culpa do maldito Pedro Bittencourt.
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Atualizado até capítulo 46
Comments
🌹
A história parece que é bastante divertida.
2024-05-15
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