Romântico Anônimo

                                             Alice

Rolo na cama e preciso me equilibrar para não acabar caindo no chão,

ainda me habituando com o tamanho minúsculo da minha nova morada. Se

eu falasse sobre a virada, de ponta-cabeça, que a minha vida deu nos últimos

dois dias, seria nesse momento que os espectadores fariam sons tristonhos do

outro lado da TV enquanto o câmera daria um zoom em mim, tirando o

repórter do foco.

Seria para uma edição do meio-dia do jornal local, em algum bairro

esburacado, com falta de água, energia ou abandonado pela prefeitura? Sim,

mas preciso dizer que existe algo sobre o jornalismo apelativo que sempre

mereceu ser estudado com atenção, afinal, as pessoas seguem sintonizando

nesses canais dia após dia, mesmo que seja somente para ver a desgraça

alheia e uma senhorinha chorando.

Vejo a mensagem de Vivi, perguntando se quero uma pizza

compartilhada e sorrio de canto quando abro a foto da minha melhor amiga

com uma pilha de trabalhos em sua mesa da cozinha, dividindo espaço com

uma caixa da pizzaria da esquina, que é a única que conseguimos arcar uma

vez por semana. Não significa que seja menos saborosa, mas as comemos

ontem e Vivian tem alta tolerância a essa pizza.

Eu ainda não.

Declino o convite, mentindo que já comi. Ela me pergunta se já desfiz

as malas e olho para as minhas coisas atoladas no único canto possível da

kitnet, falando que comecei.

Talvez eu esteja relutante para aceitar minha nova vida, mas não me

culpe por tirar alguns dias para chorar. Estamos passando pela pior fase de

todas, nem mesmo uma coluna policial poderia prever todo esse desastre e

assassinato da minha vida em menos de quarenta e oito horas.

Sinto meu celular vibrar novamente e ignoro a mensagem, pensando

que é Vivian me incentivando a arrumar minhas coisas. Ela acha que, para

um novo começo, devo iniciar com as coisas no lugar e talvez um corte de

cabelo. Entretanto, o aparelho vibra mais duas vezes e não contenho a

curiosidade.

Número desconhecido: mensagem apagada.

Número desconhecido: Gostaria de te agradecer por ontem.

Número desconhecido: E gostaria de retribuir o favor.

Franzo a testa. Que comunicação ruim é essa?

Estou prestes a abrir a foto de perfil quando uma nova mensagem

chega.

Número desconhecido: É o Pedro Bittencourt, editor-chefe do Diário

da Paulista.

Nem fodendo. Resmungo, pensando que realmente joguei chiclete na

cruz. Achei que esse homem já fosse página passada, jurei e rezei para que

nunca mais precisasse falar com ele na vida e agora esse ser abominável está

me mandando mensagens. Para agradecer? É trote, certeza.

Olho a foto de perfil e faço uma careta. Filho da puta bonito pra

cacete. Como pode o coisa ruim ter a aparência de um deus grego? Pedro

Bittencourt veio ao mundo com o propósito de ensinar a todos nós que

aparências enganam, só pode, porque só por isso uma pessoa tão ruim como

ele poderia ser bonito desse jeito. Com o rosto todo bem desenhado, os olhos

claros, os músculos… não, não mesmo, nem vamos começar a falar dos

músculos.

Eu cuspi o meu chiclete na cruz para precisar lidar com isso.

Independente da boa aparência, ele ainda é o maior cretino da face da

Terra e causador de todas as desgraças que me aconteceram ontem. Depois de

me deixar no olho da rua, não sem antes me fazer passar por toda a

humilhação em sua sala com a presença ilustre de Ricardo Dias, bem, depois

dali, minha vida deslanchou.

Ladeira abaixo.

Cheguei em casa não querendo nada além de um banho relaxante, um

pote de sorvete e me afundar na tristeza por algumas horas até pensar em

soluções. O problema é que Dania, minha agora ex-companheira de

apartamento, estava me esperando com notícias incríveis!

Notas para a ironia.

Sabia que o valor do aluguel era bom demais para ser verdade, mas

depois de dois anos você acaba confiando, não é mesmo? Pagava barato

porque o apartamento era dos pais de Dania e ela queria uma grana extra,

então topou alugar o segundo quarto. Eu tinha um quarto e um banheiro para

mim, Dania tinha péssimos hábitos de limpeza, mas era a quinze minutos,

andando, do trabalho. Eu poderia lidar com suas tentativas de intoxicação

alimentar e criar uma nova pandemia.

O problema é que Dania começou a namorar e ela e Pablo estavam

afim de dar um novo passo no relacionamento. Ele se mudaria para o

apartamento e, mesmo sendo de humanas, nessa conta, ficou óbvio que eu

sobrei. Cronometrei, tive uma hora e vinte para arrumar meu quartinho,

deixar as chaves e sair do apartamento que foi meu lar, um lar perturbado e

sujo, por basicamente dois anos.

Com três malas e duas caixas.

Pelo menos, eu não tinha muita coisa.

Na verdade, eu não tinha nada, se formos pensar. Desempregada e

sem teto. Tudo culpa do maldito Pedro Bittencourt!

Vivian me acolheu, mas antes mesmo que eu precisasse entender

como caberíamos as duas em sua kitnet, com minhas malas e seu gato

demoníaco, um anúncio brilhou em frente aos meus olhos quando estava

chegando no prédio da minha melhor amiga e, voilà!, somos as mais novas

vizinhas de São Paulo. Separadas por quatro andares, mas são detalhes.

E eu deveria ter pensando que, em um lugar como esse, contratos

eram dispensados pela senhoria. Assim como inspeções e manutenções após

o último inquilino. Mas não estamos em situação de reclamar, não é mesmo?

Mamãe sempre me dizia para pensar no lado positivo e aqui estou eu, há um

dia pensando.

Ela nunca falou em quanto tempo eu acharia o tal lado positivo, mas

sou esperançosa.

Número desconhecido: ???

Número desconhecido: Esse ainda é o número de Alice Monteiro,

certo?

Estou entendiada, e deveria continuar minha busca por empregos que

não está indo nada bem, porém não podem me julgar por zombar com a cara

de um passador de trote. Ainda mais porque está na cara que é um. Nunca

que Pedro Bittencourt teria tamanha humildade.

Alice: O prazer foi todo meu.

Alice: Depois de tantos meses de trabalho prestado, o mínimo que

poderia fazer era ajudar.

As mensagens são visualizadas no mesmo instante e em seguida

recebo uma ligação do número desconhecido. Pondero se atendo ou não, mas

para quem já entrevistou pessoas realmente condenadas por crimes reais, o

que é conversar com um cidadão que possivelmente quer me arrancar o

dinheiro que nem mesmo tenho? O máximo que irá acontecer é que ele fique

com pena de mim.

Estou na típica situação que, se eu contasse dela, o bandido me daria

cinco reais para ajudar.

— Alô? — digo assim que atendo.

— Sou realmente eu, Alice — sua voz ressoa pelo aparelho e antes

que eu possa conter, um arrepio percorre a minha espinha quando ouço o

grave do tom rouco. — É mesmo o Pedro aqui — reforça. — E eu realmente

queria te agradecer pela ajuda de ontem — fala, mas parece mais a

contragosto do que qualquer coisa.

— Poderia ter falado obrigado ontem — rebato, sentando na minha

cama. — Tanto pelos serviços prestados quanto pela ajuda — friso, ainda

com o ego magoado por ter saído de lá com uma mão na frente e a outra

atrás, e nem mesmo um mísero obrigado.

— Estou falando hoje.

— Ainda não ouvi um obrigado — cantarolo, virando de barriga para

baixo e balançando as pernas no ar.

— Obrigado — ele murmura o rosnado e sorrio contente, apesar de

ter vontade de pedir para que repita, estou em uma posição onde me contento

com o pouco. — Peguei o seu contato na sua ficha, mas o endereço de lá

estava desatualizado. Queria te mandar algo em retribuição.

— Meu emprego de volta seria uma boa. — Quem não arrisca, não

petisca, não é mesmo? Escuto um som do outro lado e cogito que Pedro possa

ter esboçado algum tipo de risada pela minha fala. — Me mudei ontem, por

isso está desatualizado — comento, só por ser uma tagarela nata e não porque

quero compartilhar partes da minha história com esse ogro.

Estou no fundo do poço, mas existe uma linha entre continuar

cavando-o e me humilhar ao contar minhas desgraças para Pedro.

— Que tipo de retribuição? — indago, pensando em como posso

extorquir meu ex-chefinho. — E saiba que rosas estão ultrapassadas —

zombo, ainda que nunca tenha ganhado um buquê de rosas. O silêncio segue

na ligação, me fazendo soltar um suspiro. — Está mesmo meio fodido, não é

mesmo? A ponto de querer me agradecer por ter te ajudado ontem. Na

verdade, deve estar fodido demais só pelo fato de ter precisado inventar

aquela mentira — divago, somente ouvindo o som da sua respiração do outro

lado e me odiando por ser tão boazinha nesse momento. Mamãe deve estar

orgulhosa do meu bom coração lá do céu. — Pague meu jantar essa noite e

estamos quites, irei pegar leve com você. Um combinado de comida

japonesa, de umas sessenta peças com bastante itens com salmão, vários

gukans, sem calda, e nada daquelas coisas de vegetais, como Califórnia ou

Kani. Ah, e uma Coca, é claro.

Completo meu pedido e sinto minha barriga roncar. Estou morrendo e

matando por um japa há semanas, mas sem chances de gastar mais de cem

reais em uma única refeição. São alguns luxos que não posso me dar, mas

que a conta bancária do Bittencourt provavelmente nem sentirá cócegas em

pagar. Posso me deliciar com minha comida e ainda guardar metade para o

almoço de amanhã. E sem julgamentos, se não morri até hoje fazendo isso,

não será hoje que morrerei.

Se bem que, comer algo que Pedro comprar para mim não deve ser

uma boa ideia. Novamente, não estou em condições de recusar a boa vontade

do Pêzinho, ainda mais quando isso envolve comida.

— Mais algum pedido, madame? — ironiza.

— Achei que estivesse se sentindo bem grato — rebato emburrada na

cama e reviro os olhos.

Estou tomando a melhor decisão mesmo com meu pedido simples. Se

Deus quiser, irei comer na conta de Pedro hoje e amanhã, e nunca mais

precisarei lidar com esse homem na vida. Acho que não posso mais suportar

seu mau-humor, ainda mais sem o salário.

— Me mande seu endereço — ele fala por fim, quando eu já estava

acreditando que iria desistir da ideia e ser o babaca de sempre. — Estará aí

em breve.

— De nada — respondo com empolgação e, antes mesmo que eu

possa falar mais alguma coisa, a ligação é encerrada. — Grosso — murmuro

para sua falta de educação, mas mesmo assim, digito meu mais novo

endereço na nossa conversa. Ele visualiza, mas não responde.

Nem mesmo reage com um joinha.

Alguém precisa mesmo ensinar esse homem a se comunicar melhor,

nem parece que ele é formado em uma das melhores faculdades do país e

ainda tem um mestrado lindo para exibir e chamar de seu. Mas, por hoje, não

irei reclamar sobre os modos e cavalheirismo precário de Pedro.

Por hoje, só irei aceitar seu surto de boa vontade e comer às suas

custas. Amanhã, Pedro Bittencourt será assunto do passado na vida de Alice

Maria.

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