Alice Monteiro
Tudo sempre é culpa do maldito Pedro Bittencourt!
Ok, talvez nem tudo, mas absolutamente todos os meus problemas de
hoje são culpa unicamente do mesquinho, sem coração, frio e calculista Pedro
Bittencourt. Logo, qualquer outro problema que eu tenha hoje
automaticamente virará culpa dele. Não dou a mínima, preciso de um culpado
e ele é um ótimo bode expiatório.
O cafajeste é bonito pra porra? Sim, mas também é um tremendo
cretino. O pior tipo de chefe do mundo e tudo bem que só tive dois chefes,
mas certeza que ele é o pior, tipo, o pior de todos os piores chefes da face da
Terra. O cara que merece uma medalha por ser o pior chefe do mundo,
entende?
— Está rosnando como um cachorro furioso — Vivian murmura no
cubículo ao lado e eu tento respirar fundo enquanto continuo colocando
minhas coisas dentro da bolsa. — E acho melhor pegar uma caixa.
— Eu não tenho tanta coisa assim — rebato, ainda que seja visível a
minha mentira e penso no estrago que meu cacto fará ao forro da minha bolsa
parcelada em quatro vezes.
— Posso ficar com isso — Vivi me salva, tomando o cacto da minha
mão e tentando arrumar espaço em sua própria mesa para a planta. — Tem
certeza que não quer ir lá pra casa mais tarde? Eu e você, quatro garrafas de
Casal Garcia Rosé…
— Amanhã é quarta-feira, Vivi — lembro-a, tirando meus olhos do
meu antigo lugar favorito do mundo para fitar os olhos negros da minha
melhor amiga. — Além disso, não podemos pagar por quatro garrafas de
Casal Garcia…
— Pérgola? — ela insiste, me dando seu sorriso fofo.
— E a desempregada aqui sou eu, não você. Precisa estar aqui às oito
amanhã, preferencialmente sem ressaca — continuo, ignorando sua sugestão.
— Também não sei se estou no clima para enfrentar o senhor zangado —
comento, me deixando cair na cadeira dura uma última vez enquanto começo
a vasculhar pelos meus papéis.
— Primeiro, o nome dele é Plínio, não senhor zangado. E ele te
adora! — exalta, esticando-se até apoiar as mãos e o queixo na divisória entre
nossas mesas.
Acho que Vivi e eu temos definições diferentes de adorar. Cinco
arranhões, contando um na ponta do meu nariz, não são considerados adorar
na minha língua, e isso foi em somente uma visita ao seu apartamento. E
outra, mesmo amando minha melhor amiga e sendo grata por todos os vinte
meses dividindo esse espaço pequeno e sendo vizinhas de redação, não quero
obrigá-la a me receber por pena.
Vivian Zhou é minha primeira, e única, amiga verdadeira em São
Paulo. E ela com toda certeza gastaria sua preciosa terça à noite assistindo à
reprise de alguma competição de culinária para me consolar pelo meu recente
desemprego em seu apartamento que deve ter uns trinta metros quadrados,
isso nos melhores e mais organizados dias. Entretanto, posso me afundar em
álcool barato, sorvete barato e pizza de caixinha, também barata, enquanto
atualizo meu currículo e penso em cometer loucuras, tipo tenta aprender a
fazer vodu para espetar a bunda bonita e firme de Pedro Bittencourt repetidas
vezes.
Já minha amiga, com o emprego seguro, precisa estar de pé cedinho
amanhã para enfrentar o dia com pautas demais.
Eu amo o excesso de pautas.
Ok, isso já é romantização do capitalismo, mas o fato é que eu amo
ter um emprego, ou melhor, amo ter uma fonte de renda que pague as minhas
contas.
Deveria ter feito a tal reserva de emergência que todo mundo sempre
fala. Mas como guardar dinheiro quando o que me sobra é dois reais?
Em troco de bala.
Se eu não tivesse comprado essa bolsa, que é linda e irresistível
inclusive, talvez tivesse me sobrado R$249,90 no último mês. Entrar na
Renner sempre faz um terrorismo com a minha carteira. Deveria desconfiar
que uma bolsa que custava mais de duzentos reais não me traria somente
felicidade no futuro.
Tudo é culpa do maldito Pedro Bittencourt!
— Repetir isso não fará seu emprego voltar. — Vivian me traz de
volta à realidade e pisco algumas vezes antes de fitá-la. — Sim, disse isso em
voz alta — responde minha pergunta silenciosa. — Mas está bem, ao invés de
enchermos a cara hoje, podemos fazer isso no final de semana. Cici disse que
encontrou um bar novo lá na Vila Mariana.
Cici é apelido para Aparecida, a nova estagiária do jornal, e eu a
entendo. Cici parece uma pessoa de vinte anos, diferente de Cida.
— Adolescentes são…
— Iludidos e pagam bebida — ela complementa para mim, me dando
um sorriso convincente e tentando me dizer que isso é, sim, uma boa ideia.
Solto um resmungo que soa como uma afirmação. — Ótimo, iremos no
sábado e poderemos falar abertamente sobre o maldito Pêzinho.
— Pêzinho dá mesmo uma ideia errada pra coisa toda — murmuro,
perdida em pensamentos quando separo uma pilha de folhas que considero
importantes.
— É impossível que ele… — ela cochicha, inclinando o queixo na
direção da porta fechada do meu antigo chefe — seja um pêzinho —
continua, indicando um comprimento pequeno entre os dois indicadores.
— Nunca gastei meu tempo pensando nisso — retruco, revirando os
olhos.
Uma mentira do tamanho do estado do Pará.
— Você já botou coisas bem estranhas na boca, não vem pagar de boa
samaritana. Ele pode ser o nosso diabo particular, mas é um homem bonito.
Seria desperdício se fosse um zinho — ela continua a divagação, inclinando a
cabeça para o lado e mordendo a ponta da caneta.
Seria mesmo.
— Está bem, chega de falar desse infeliz. É hora de ir — falo,
levantando da minha, oficialmente, ex-cadeira e pegando o montante de
folhas, assim como penduro minha bolsa na dobra do cotovelo.
— Não acredito que ele fez isso com você — Vivi resmunga pela
décima vez na última meia hora e ofereço meu melhor sorriso em sua direção.
— Irei pedir para Thais mandar qualquer vaga que possa surgir por lá —
comenta, citando sua amiga de faculdade, atual jornalista da concorrência.
Ir para o Jornal da Avenida seria uma boa vingança. O concorrente
direto do Diário da Paulista, chefiado pelo arquirrival do maldito Pedro
Bittencourt.
Não que ele fosse se doer, longe disso. Imagino que ele nem sequer
saiba meu nome para perceber a mudança de redação. Um babaca de marca
maior.
— Irei deixar esses papéis aqui na sala dele, são alguns dados sobre as
pautas das minhas próximas reportagens que consegui descobrir. Sabe-se lá
quem será entupido ainda mais com pautas e pegará as minhas, o Pedro que
se vire — digo, juntando os caquinhos do que restou do meu orgulho ao
longo dos anos.
— Posso entregar para você — sugere, mas logo vê o olhar
determinado que carrego. — Ok, entendi, precisa fazer isso antes de ir
embora — constata baixinho. — Boa sorte!
— Obrigada — replico, recebendo uma piscada radiante dela.
Não fiz muitas caminhadas da vergonha, porém essa com certeza é a
pior de todas. E eu nem mesmo estou nua, ou acabei de gozar. Se bem que
nem todas as caminhadas da vergonha foram antecedidas por orgasmos, o
que transforma a vergonha ainda maior. Por ter perdido o meu precioso
tempo. De qualquer forma, a caminhada até o escritório do meu agora exchefe é vergonhosa.
É como se todos os meus antigos colegas já estivessem mais do que
cientes da minha demissão, mas eles não estão, sei que não estão nem mesmo
me olhando. Todos por aqui tem trabalho demais para fazer para se preocupar
com a demissão de um colega, apesar de eu saber que amanhã irão se lembrar
de mim quando minhas demandas forem repassadas, aumentando a pilha de
pautas no canto de suas mesas. Não só as minhas, como a de outros três
jornalistas.
Estamos sendo deixados para trás para que o jornal agregue
assinaturas renomadas no mercado. Alice Monteiro não é ninguém, mas
Patrícia Ruiz é, a bonitona que acabou de chegar do doutorado na Suécia, excolega de faculdade de Pedro. Ele está lutando duro para trazer alguns
jornalistas pomposos para a redação e, por isso, precisa se livrar de alguns
salários.
Parece que o meu foi o sorteado da vez, afinal, tenho certeza que o
chefinho nem mesmo sabe meu nome ou conhece alguma das reportagens
que já fiz. Ele deve ter jogado nossos nomes em sua xícara cara, nem se dado
ao trabalho de misturar, e arrancado o emprego de quatro de nós lá de dentro.
Repetindo, um puta babaca do caralho.
Pelo menos agora não precisarei mais conter meus xingamentos para
ele e admito que construí uma invejável lista de xingamentos ao longo dos
meus quase dois anos trabalhando no Diário da Paulista. Pedro sempre foi o
inferno pessoal de todos os funcionários daqui, a única parte odiável desse
emprego.
Essa é a pior parte, eu adoro esse local, adoro as mesas apertadas, o
cheiro de papel, o barulho de várias teclas sendo clicadas simultaneamente, o
cheiro de café que é passado o tempo todo. Adoro a visão da Paulista aos
nossos pés, com as pessoas em tamanho de formiguinhas andando apressadas
de um lado para o outro enquanto contamos alguma história, ou várias, daqui
de cima.
Um suspiro me escapa dos lábios e, mesmo se houvesse alguma coisa
que não é culpa do maldito Pedro Bittencourt, nesse momento, enquanto me
preparo para bater em sua porta, tentando fazer malabarismo com os papéis e
minha bolsa abarrotada, penso que tudo é culpa dele.
Ele é o homem que me deu os meus sonhos para alguns anos depois
simplesmente arrancá-los dos meus braços e amassá-los com suas mãos
gigantescas e sua carranca emburrada.
Mesmo sabendo que sinto um ódio profundo por ele, nutrido ao longo
dos últimos vinte meses, quando ergo minha mão em punho, sinto que ainda
há espaço para mais ódio no meu pequeno coraçãozinho. Seu potencial de
fazer cagadas é enorme e eu sei que ele irá fazer e falar a coisa errada no
momento que abrir a porta.
Estou triste, pobre, solteira, carente, na seca, com um cartão que não
sei como irei pagar e desempregada.
E tudo é culpa do maldito Pedro Bittencourt.
Pedro
Quando sinto minha têmpora gelada ao ouvir mais um longo
monólogo de Ricardo Dias, eu compreendo melhor o porquê o porte de armas
realmente é algo ruim para a sociedade.
Definitivamente, odiaria passar alguns dias na cadeia, mas também
não sou um tipo barato de assassino.
Então, usaria a arma para dar um tiro em mim mesmo e acabar com
meu sofrimento enquanto ouço sobre seu feliz casamento pela terceira vez no
dia. O casamento com a minha ex-noiva.
Posso ouvir minha mãe sussurrando no meu ouvido que isso é a
minha punição por ter deixado a moça tomando chá de cadeira por alguns
anos. Ela cansou, terminou nosso noivado e, meses depois, estava casada com
meu maior rival.
Nada me tira da cabeça que Morgana fez isso para me atingir.
E minha mãe nem mesmo gostava dela o suficiente para ter fingido
tristeza quando contei a novidade.
Em minha defesa, eu não queria me casar, só me senti pressionado a
fazer o maldito pedido para agradar minha antiga namorada. O que há de
errado com namoros de longa data? Por que tudo precisa se transformar em
casamento?
Agora é Benício, um dos meus melhores amigos, que se infiltra em
minha mente, mas prefiro o discurso dele sobre casamento do que o de
Ricardo. Especialmente quando Dias só veio do seu escritório até o meu para
me atormentar e especular sobre as demissões recentes que aconteceram no
Diário. Se ele ao menos calasse a boca, talvez tivesse a oportunidade de ouvir
alguma coisa ou descobrir uma informação que eu pudesse deixar escapar.
Não que eu seja idiota a ponto de deixar escapar algo, mas ele
simplesmente não cala a boca. E já faz meia hora!
Às vezes me questiono se o maior feito da vida de Ricardo não foi ter
conseguido se casar com minha ex-noiva. Não porque Morgana pode ser uma
mulher legal, mas porque ela tem o título de ser minha ex. Odeio dar razão a
Eduardo, a terceira parte do meu grupo de amigos, porque o deixa ainda mais
presunçoso do que o habitual, mas porra, Ricardo poderia ser um pouco
menos apaixonado por mim.
Reviro os olhos enquanto ele continua, virando de costas para mim e
continuando seu sapateado em meu escritório.
Deveria ter sido um pouco mais… gentil, com minhas últimas três
tentativas de assistentes. Uma assistente teria evitado que ele entrasse sem
permissão em minha sala e solucionado meus problemas sem que eu nem
mesmo precisasse me envolver. Não tenho culpa que as últimas cinco
funcionárias que o R.H. me mandou fossem desajeitadas e lerdas demais.
E não aguentassem a pressão de um dia na redação.
As duas primeiras cederam em menos de cinco horas de trabalho, as
outras três… prefiro não falar sobre meu possível envolvimento no pedido de
demissão delas.
— É, talvez os rumores sejam verdadeiros e o seu problema tenha
sido outro — Ricardo pondera, voltando seus olhos para mim e comprimo o
suspiro, não querendo dá-lo o sabor de saber que está esgotando minha
paciência. — Honestamente, Pedro, eu não quis acreditar quando me falaram,
afinal, sei de toda a sua ética no trabalho, mas eles estão dizendo por aí que o
seu maior problema é abuso de poder e que está dormindo com suas
funcionárias, por isso precisa demiti-las em seguida.
Como é que é?
Isso chama minha atenção o suficiente para que me incline na mesa,
repousando meus cotovelos e fitando Ricardo com as sobrancelhas franzidas.
Era só o que me faltava ouvir fofocas que o meu problema é que não
consigo manter meu pau dentro da porra da minha calça.
— É, eu sei como isso pode parecer péssimo, por isso achei que seria
importante vir te falar sobre essas fofocas — diz e percebo que minha
expressão deve dizer muito sobre a minha indignação.
Torno-a impassível novamente, respirando fundo e me colocando de
pé.
— Sabemos que ainda não superou bem o término com a Morgana, e
nosso casamento também foi um grande golpe para você…
— Isso não tem nada a ver com o meu antigo relacionamento com
Morgana — interrompo-o, controlando um riso que arranha minha garganta.
Não me importo com o caralho do casamento deles.
— Não precisa mentir para mim, Pedro — comenta, como se
fôssemos amigos. — Somos amigos — Porra, não somos não! —, faz um
ano e nunca mais foi visto com ninguém. Morgana e eu sabemos que não
conseguiu lidar bem com tudo o que aconteceu e queremos proteger sua
imagem de fofocas como essas. Podem destruir sua carreira, sabe? Toda essa
história de estar comendo funcionárias e demitindo-as depois…
— Primeiro; não sou anti-ético — pontuo, cortando toda a sua
baboseira. — Segundo; não é porque não fui visto com ninguém, que não
tenho estado com outras pessoas. — Posso ouvir a risada de Eduardo ecoando
em minha mente, debochando da forma como eu saio do controle por causa
do babaca do Dias a ponto de querer ficar me comprovando. Mas não irei
deixar que ele saia daqui achando que sou um chefe babaca ou um pau mole.
— E, se não tiver nada de realmente relevante para fazer aqui, eu tenho
algumas edições para fazer. Alguns de nós fazem o próprio trabalho —
murmuro entredentes, começando a me encaminhar até a porta, pronto para
chutá-lo para fora.
— Ah, Bittencourt, vai me dizer agora que está namorando? Sabemos
que não é muito bom fazendo isso — ele me provoca, claramente me
provoca.
E eu me odeio, porque deixo meu sangue ferver e caio na provocação
dele.
Um tiro realmente resolveria tudo.
— Só porque eu não quis que desse certo com a Morgana, não
significa que não posso querer fazer dar certo atualmente — rebato,
conseguindo fazer metade do caminho até a saída do meu escritório com ele
me seguindo.
— Então está mesmo namorando? — pergunta incrédulo, parando no
meio da sala e quero grunhir em frustração.
— Sim — respondo antes de perceber a cagada que acabei de falar.
Porra, se ele já estivesse longe daqui, meus pensamentos estariam em ordem.
— Quer dizer, não, eu… — recomeço, colocando as mãos nos bolsos da
calça social e tentando manter minha postura sem precisar dizer a ele que
perdi a razão a ponto de não ter o controle sobre minha própria língua.
Ricardo solta uma risada debochada, plantando as mãos na cintura em
uma posição irônica enquanto me olha como se tivesse conseguido alcançar
seu objetivo: me ver falhar.
— Não precisa mentir para mim, Pedro — repete essas palavrinhas
que estão me tirando do sério, se deliciando com o momento e quero me
jogar das janelas largas da minha sala por ter caído na dele. — Não precisa
inventar uma namorada de mentira só para fingir que conseguiu superar tudo.
Está tudo bem ainda…
Porra, voltamos a essa merda de superação?
— Estou noivo, na verdade — afirmo e falei essas duas palavras por
tantos anos que é quase como se fosse natural ouvi-las saindo pela minha
boca, com exceção de que, atualmente, são uma grande mentira.
Que merda eu acabei de falar?
— Noivo? — indaga surpreso e percebo que tirei toda a sua
presunção da droga da sua cara, então repito.
— Noivo.
Aparentemente, estou tão desesperado para que Ricardo me deixe em
paz que não me importo mais com qualquer porra que ele saia daqui
pensando. Só o quero fora da minha sala o mais rápido possível.
Não sou dado a impulsividades, mas prefiro pensar que esse é um
plano meticulosamente calculado, afinal, vendo por um lado, se ele acreditar
que estou noivo, talvez isso me dê alguns meses de folga dos discursos sobre
seu casamento com Morgana e como ainda não superei que ela terminou
comigo. Honestamente, não é um plano tão ruim assim, pensando bem.
— E quem é a sortuda?
— Infelizmente, não poderá conhecê-la hoje. Pouco antes de chegar,
ela me disse que estava de saída da redação e tenho mesmo muito trabalho
para fazer — repito, olhando para o relógio. — Tenho uma entrevista
marcada para daqui a quarenta minutos e preciso ir me encontrar com a fonte
— minto, minha nova especialidade.
— Ah, claro, somos homens muito ocupados. — Eu sou, ele não,
afinal, está matando meu tempo com seu ócio. — Mal posso esperar para
contar para Morgana que está namorando!
Não digo mais nada, talvez o silêncio fosse o melhor plano de escape
e eu acabei falhando nisso. Deveria ter me mantido calado enquanto ele
divagava sobre a minha vida como se a sua dependesse disso. Talvez não
teria chegado aqui, com uma noiva inexistente. Puxo a ar, tocando a
maçaneta da porta e finalmente Ricardo entende que é a sua deixa para ir
embora.
Entretanto, quando empurro-a para baixo, puxando a porta para
frente, não tenho tempo para tentar inventar outra mentira sobre como
agradeço a visita de Ricardo e todas as suas especulações sobre o porquê o
Diário da Paulista está passando por uma onda de demissões, porque no
momento que a porta se abre, uma morena vem parar nos meus pés.
Não estou acostumado com a forma literal da expressão de ter
mulheres caindo aos meus pés, então só consigo fazer uma careta enquanto
fito a garota desorganizada de joelhos no chão, cercada por papéis espalhados
e…
Por que ela carrega uma mini taça de silicone na bolsa?
— Porra — pragueja antes de levantar os olhos e a reconheço.
Ela é a última jornalista iniciante que demiti hoje, a que mais
choramingou sobre a injustiça disso e daquilo e como essa firma deveria ser
mais grata pelos seus serviços prestados nos últimos anos e muito mais bláblá-blá que não me dei ao trabalho de realmente ouvir.
— Achei que estivesse ansiosa para sair daqui o mais rápido possível.
O que ainda está fazendo na redação? — pergunto, afinal, ela saiu pisoteando
da minha sala falando que, uma vez que saísse por aquela porta, eu poderia
me rastejar, mas que o Diário da Paulista nunca mais veria seus textos.
Ela é uma dramática Classe A.
Ricardo limpa a garganta ao meu lado, nos lembrando da sua infeliz
presença. Esse cara já deveria ter ido para longe de mim.
— Eu estava saindo, mas resolvi voltar e entregar algumas das minhas
últimas pesquisas — ela sibila, me olhando do chão com raiva enquanto tenta
juntar suas tralhas. Uma das suas sobrancelhas se arqueia, como se me
perguntasse se não vou ajudá-la e, mesmo contra todas as minhas vontades,
me abaixo, pegando alguns papéis enquanto ela lida com a infinidade de
gloss labial e a mini taça de silicone.
— Estava saindo? — Ricardo murmura consigo quando finalmente
volto a me pôr de pé, com a morena descabelada ao meu lado e percebo onde
a mente dele está indo.
É por isso que ele é um dos piores jornalistas existentes. Ou talvez
seja porque nem ao menos tem a porra de um diploma para exercer a minha
profissão, mas mesmo assim o faz. O conselho deveria mesmo insistir na
obrigatoriedade do diploma.
Controlo um grunhido enquanto olho para a garota. Ela não é feia,
só… passa bem longe de ser o meu tipo. Muito magra, muito sem graça,
muito… pouco.
Mas eu poderia pegar ela.
Irei matar Ricardo Dias, essa é uma sentença oficial de morte. Irei
matá-lo por me obrigar a fazer o que faço agora, quando vejo seus olhos
alternando de mim para a morena com um brilho fantasioso no olhar. Deveria
ter me jogado das janelas quando ainda era tempo.
— Ah! Você deve ser…
— Minha noiva — complemento por ele, passando o braço livre pela
cintura minúscula dela e trazendo-a até seu quadril colar no meu. — Ela é a
minha noiva.
Alice
Deveria ter ouvido minha mãe quando ela dizia que o uso, indevido e
exacerbado, de cotonete prejudicaria minha audição porque tenho certeza que
eu ouvi errado.
Tento olhar ao redor, mas existe uma mão firme em minha cintura,
apertando minha carne, que me impede de completar o movimento. Quero me
certificar de que não há mais ninguém nessa sala para ocupar a posição que o
demônio acabou de falar, ou que não há nenhuma câmera escondida que me
fará aparecer na hora da risada de algum programa do domingo à noite.
Ele não pode estar falando de mim. Não existe a mínima chance. É
uma coisa tão remota que chega a ser cômica, afinal, não faz sentido algum.
E outra, quero olhar ao redor para saber quem é a pobre coitada que é noiva
desse sem coração, porque duvido que ela esteja fazendo isso por livre e
espontânea vontade. Ela deve estar precisando de socorro urgente.
Entretanto, como não tenho a oportunidade de procurar, somente
retorno meu olhar para os dois homens se encarando como se estivessem em
uma batalha de gladiadores histórica. Homens são tão medievais que às vezes
juro que encontrarei um na rua, gravando alguma passagem histórica nas
paredes de São Paulo usando uma pedra e se comunicando com urros e
grunhidos ao invés de palavras.
Pedro me aperta ainda mais para perto dele e quase deixo tudo cair
novamente, mas não irei permitir que ele fique observando de novo o meu
coletor menstrual, já foi embaraçoso o suficiente da primeira vez. Limpo a
garganta, como se tentasse lembrá-los de que estou aqui, mesmo que tudo o
que eu mais deseje no momento seja dar o fora.
Isso que dá ser uma boa pessoa. Se eu tivesse pegado minhas
pesquisas sobre as próximas reportagens que tinham sido designadas para
mim e jogado-as fora, ao invés de querer ser legal e trazer tudo para o meu
ex-chefe babaca, já estaria perambulando pela Paulista, tentando achar o novo
rumo da minha vida, não aqui, sendo abraçada pelo diabo de terno caro. Fui
demitida e ainda quis ajudar a redação, o que ganhei de retorno?
Bem, isso é algo que eu ainda não quero descobrir.
— Noiva — Ricardo Dias, editor chefe do Jornal da Avenida e
arquirrival de Bittencourt, repete como se essa fosse uma palavra recémdescoberta pelos dois. — Sua noiva — diz, olhando para mim e antes que eu
possa me desvincular de Pedro, esclarecendo a situação que não, não sou eu a
sua noiva e, sim, qualquer outra mulher bem mais infeliz do que eu por aí, o
poste de um metro e noventa que eu chamava de patrãozinho me encara,
tentando me dar um sorriso que deveria ser afetuoso, mas parece que ele
acabou de comer um kiwi bem ruim.
— Sim, essa é a minha noiva — afirma e…
Porra, ele está mesmo falando sobre mim.
Nem fodendo!
Como assim?
Que merda é essa?
Além de demitir, ele também humilha?
Minha Santinha protetora, acho que agora é finalmente a minha hora,
porque vejo pontos pretos na minha frente enquanto assimilo as informações.
Pedro Bittencourt, o culpado de todas as desgraças da minha vida no
dia de hoje, o chefe que acabou de me mandar pra rua, o homem sem coração
que não teve nem mesmo a gentileza de me agradecer pelos meses
trabalhados, está dizendo para Ricardo Dias que eu, Alice Maria Monteiro,
sou sua noiva?
Nem sob ameaça de morte!
Mamãe sempre falava que me faltava alguns parafusos e papai
brincava que eu havia escorregado da mão do médico e dado de cabeça no
chão logo quando nasci, por isso era tão fora da casinha. Mas, nem mesmo
nos meus maiores delírios, eu teria aceitado um pedido de casamento de
Pedro. Não que ele tenha feito um.
Bufo, fechando a cara enquanto vejo a ordem implícita em seu olhar
para que eu entre na onda. Isso mesmo, nem é mesmo uma solicitação, Pedro
quer mandar em mim mesmo depois de tudo o que fez comigo, mesmo
depois de ter destruído a minha vida e me deixado sem emprego. Ok, talvez
isso seja uma dose de drama exagerada, porém nem em um milhão de anos
irei cooperar. Ele que se vire com essa mentira, afinal, só com uma camisa de
força para que eu o ajude e finja ser a sua noiva falsa.
Porque só se eu estivesse bem maluca para que isso acontecesse.
Além do mais, ele é bem grandinho, sabe se virar sozinho.
— E como é o nome dessa adorável noiva? — Ricardo indaga, nos
fazendo quebrar a troca de olhares na qual ele me mandava cooperar e eu
respondia que nem fodendo.
Ele acabou de me demitir! Sem dó, nem piedade.
Arqueio a sobrancelha, afinal, qual é mesmo o meu nome? Tenho
certeza que minha teoria está certa e, além de ser um grande babaca, ele nem
mesmo se lembra disso. Pedro inclina a cabeça para o lado, como se dissesse
para que eu responda à pergunta e, nesse momento, resolvo entrar no papel e
sorrir para ele, mesmo sabendo que devo estar parecendo com o gato da Alice
no País das Maravilhas de tão maquiavélico.
Passo meu braço, depois de acumular meus pertences em uma só mão,
e aperto a cintura dele, abraçando-a com a força que eu queria usar ao redor
do seu pescoço e deito minha cabeça em seu peito. Uma noiva bem feliz que
aguarda seu noivinho falar seu nome para o outro.
Claro que Dias nos encara, esperando uma resposta e provavelmente
estranhando essa situação bizarra. Pedro terá muito trabalho para reverter sua
mentira depois e não irei facilitar em nada para ele.
— O nome dela é… — começa, cutucando minha cintura e me
contorço um pouco, mas me mantenho calada e, quando percebe que não irei
abrir o bico, ele limpa a garganta. — Eu sempre a chamo de meu docinho —
complementa, me olhando com os olhos semicerrados e controlo meu riso,
porque alguém precisa trazer esse homem de volta aos trinta e poucos, porque
docinho com toda certeza me lembra meus avós.
— Meu docinho… — Ricardo repete. Esse homem é como um
papagaio? Ele repete tudo o tempo todo, é um pouco irritante.
— Sim, muito romântico — murmuro a mentira. — E eu o chamo de
meu azedinho. — O apelido sai pelos meus lábios antes mesmo que eu tenha
controle do que estou dizendo, mas a feição chocada e desgostosa de Pedro
faz valer a pena por alguns milésimos de segundos, até eu perceber o que, de
fato, estou fazendo.
Eu não sou sua noiva.
Docinho e Azedinho são os piores apelidos da face da Terra.
Mentir é errado, e pecado.
Mentir para ajudar o canalha do meu ex-chefe por seja lá qual for o
motivo não reduz em nada o fato de ser algo errado. Ele nem mesmo merece
ajuda.
Começo a me afastar, pronta para desmentir toda a história, mas o
celular de Ricardo toca estridente no ambiente e ele rapidamente o atende,
repetindo palavras como “está bem”, “ok” e “já estou a caminho” antes de
encerrar e nos fitar com um sorriso.
— Bem, foi um prazer te conhecer, mas o dever me chama — brinca,
levantando as mãos no ar. — Morgana realmente ficará muito feliz em saber
que você seguiu em frente e parece tão… feliz, Pedro.
Feliz? Isso é o Pedro expressando felicidade para o Dias? Porque ele é
péssimo demonstrando felicidade se for assim. Estou confusa demais no
momento para assimilar toda a merda que acabou de acontecer e toda a
concretização de pensamentos que já foi formada, afinal, Ricardo está mesmo
acreditando fielmente nessa história de noivado e estou tão tonta que mal
consigo reagir.
— Claro, não nos deixe te impedir de fazer o seu trabalho — Pedro
replica com o deboche pingando em seu tom de voz, mas o outro parece não
notar a ironia, porque somente dá um aceno, olhando mais algumas vezes
para nós dois e percebemos que estamos bloqueando a saída.
Ao invés de me soltar, o homem grudado em mim somente nos gira
até abrirmos passagem e tento manter uma expressão que não seja de
desesperada enquanto observo Ricardo caminhar para fora da redação até que
sua figura suma quando Pedro puxa a sua porta com o pé, fechando-a com
um baque e, então, finalmente me libertando das suas garras.
Acho que estou alguns graus mais traumatizada.
E não estou noiva!
— Você nem mesmo se lembra do meu nome! — falo a primeira
coisa que me vem à mente, colocando o máximo de distância possível entre
nós dois.
— Isso é realmente o ponto mais importante pra você?
— Babaca — murmuro emburrada. — Não estou me importando com
o resto porque é problema seu.
— Problema nosso, docinho — responde com um resmungo,
sentando-se em sua cadeira e nem mesmo se dignando a me olhar enquanto
pega o celular.
— Vai sonhando. Você criou o problema, você resolve. Eu só estava
vindo aqui deixar esses papéis, porque prezo pelo futuro desse jornal, mesmo
depois de você me demitir — sibilo, colocando o restante das folhas que
sobraram na minha mão junto às demais que ele já deixou em sua própria
mesa. — Aqui estão as pesquisas e transcrições de todas as reportagens que
eu fui encarregada essa semana — recito. — E, com isso, meus serviços por
aqui se encerram.
— Não pode simplesmente ir embora — rebate, como se realmente
acreditasse que eu deveria ficar para arrumar a bagunça dele.
— Pois é exatamente isso que eu estou fazendo! — afirmo, batendo
os calcanhares no chão antes de dar meia-volta, pronta para deixar todo esse
sonho biruta dos últimos minutos para trás.
Ora, quem inventa um noivado falso com uma estranha?
— Não é uma estranha — ele responde, me dando uma olhada por
cima do celular antes de terminar de digitar algo e percebo que, de novo,
estou pensando em voz alta.
— Nem mesmo se lembra do meu nome — recordo-o, cruzando os
braços a alguns passos da porta e arqueando a sobrancelha para ele, dando-o
uma última oportunidade de não ser um completo babaca.
— Ana? — Faz sua tentativa e reviro os olhos para a minha
inocência. Nem mesmo temos uma jornalista chamada Ana na redação. —
Ok, eu não me lembro do seu nome — admite.
— É Alice, mas isso nem mesmo importa mais, afinal, não trabalho
mais aqui, então eu lavo as minhas mãos — falo, batendo as palmas uma na
outra como se limpasse as mãos e aprumo minha postura. — Boa sorte
resolvendo seus problemas, seu maluco — digo ao abrir a porta e quase
correr para longe, querendo ir embora o mais rápido possível antes que eu
volte a perceber que isso não foi um sonho e eu realmente acabei de passar
por uma situação na qual fingi ser a noiva do maldito Pedro Bittencourt por
alguns minutos.
Provavelmente devo estar mesmo começando a delirar pela falta
precoce de dinheiro e endividamento pelas parcelas sem fim no meu cartão de
crédito.
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