O pior sim da minha vida

                                                           Alice 

Deveria ter ouvido minha mãe quando ela dizia que o uso, indevido e

exacerbado, de cotonete prejudicaria minha audição porque tenho certeza que

eu ouvi errado.

Tento olhar ao redor, mas existe uma mão firme em minha cintura,

apertando minha carne, que me impede de completar o movimento. Quero me

certificar de que não há mais ninguém nessa sala para ocupar a posição que o

demônio acabou de falar, ou que não há nenhuma câmera escondida que me

fará aparecer na hora da risada de algum programa do domingo à noite.

Ele não pode estar falando de mim. Não existe a mínima chance. É

uma coisa tão remota que chega a ser cômica, afinal, não faz sentido algum.

E outra, quero olhar ao redor para saber quem é a pobre coitada que é noiva

desse sem coração, porque duvido que ela esteja fazendo isso por livre e

espontânea vontade. Ela deve estar precisando de socorro urgente.

Entretanto, como não tenho a oportunidade de procurar, somente

retorno meu olhar para os dois homens se encarando como se estivessem em

uma batalha de gladiadores histórica. Homens são tão medievais que às vezes

juro que encontrarei um na rua, gravando alguma passagem histórica nas

paredes de São Paulo usando uma pedra e se comunicando com urros e

grunhidos ao invés de palavras.

Pedro me aperta ainda mais para perto dele e quase deixo tudo cair

novamente, mas não irei permitir que ele fique observando de novo o meu

coletor menstrual, já foi embaraçoso o suficiente da primeira vez. Limpo a

garganta, como se tentasse lembrá-los de que estou aqui, mesmo que tudo o

que eu mais deseje no momento seja dar o fora.

Isso que dá ser uma boa pessoa. Se eu tivesse pegado minhas

pesquisas sobre as próximas reportagens que tinham sido designadas para

mim e jogado-as fora, ao invés de querer ser legal e trazer tudo para o meu

ex-chefe babaca, já estaria perambulando pela Paulista, tentando achar o novo

rumo da minha vida, não aqui, sendo abraçada pelo diabo de terno caro. Fui

demitida e ainda quis ajudar a redação, o que ganhei de retorno?

Bem, isso é algo que eu ainda não quero descobrir.

— Noiva — Ricardo Dias, editor chefe do Jornal da Avenida e

arquirrival de Bittencourt, repete como se essa fosse uma palavra recémdescoberta pelos dois. — Sua noiva — diz, olhando para mim e antes que eu

possa me desvincular de Pedro, esclarecendo a situação que não, não sou eu a

sua noiva e, sim, qualquer outra mulher bem mais infeliz do que eu por aí, o

poste de um metro e noventa que eu chamava de patrãozinho me encara,

tentando me dar um sorriso que deveria ser afetuoso, mas parece que ele

acabou de comer um kiwi bem ruim.

— Sim, essa é a minha noiva — afirma e…

Porra, ele está mesmo falando sobre mim.

Nem fodendo!

Como assim?

Que merda é essa?

Além de demitir, ele também humilha?

Minha Santinha protetora, acho que agora é finalmente a minha hora,

porque vejo pontos pretos na minha frente enquanto assimilo as informações.

Pedro Bittencourt, o culpado de todas as desgraças da minha vida no

dia de hoje, o chefe que acabou de me mandar pra rua, o homem sem coração

que não teve nem mesmo a gentileza de me agradecer pelos meses

trabalhados, está dizendo para Ricardo Dias que eu, Alice Maria Monteiro,

sou sua noiva?

Nem sob ameaça de morte!

Mamãe sempre falava que me faltava alguns parafusos e papai

brincava que eu havia escorregado da mão do médico e dado de cabeça no

chão logo quando nasci, por isso era tão fora da casinha. Mas, nem mesmo

nos meus maiores delírios, eu teria aceitado um pedido de casamento de

Pedro. Não que ele tenha feito um.

Bufo, fechando a cara enquanto vejo a ordem implícita em seu olhar

para que eu entre na onda. Isso mesmo, nem é mesmo uma solicitação, Pedro

quer mandar em mim mesmo depois de tudo o que fez comigo, mesmo

depois de ter destruído a minha vida e me deixado sem emprego. Ok, talvez

isso seja uma dose de drama exagerada, porém nem em um milhão de anos

irei cooperar. Ele que se vire com essa mentira, afinal, só com uma camisa de

força para que eu o ajude e finja ser a sua noiva falsa.

Porque só se eu estivesse bem maluca para que isso acontecesse.

Além do mais, ele é bem grandinho, sabe se virar sozinho.

— E como é o nome dessa adorável noiva? — Ricardo indaga, nos

fazendo quebrar a troca de olhares na qual ele me mandava cooperar e eu

respondia que nem fodendo.

Ele acabou de me demitir! Sem dó, nem piedade.

Arqueio a sobrancelha, afinal, qual é mesmo o meu nome? Tenho

certeza que minha teoria está certa e, além de ser um grande babaca, ele nem

mesmo se lembra disso. Pedro inclina a cabeça para o lado, como se dissesse

para que eu responda à pergunta e, nesse momento, resolvo entrar no papel e

sorrir para ele, mesmo sabendo que devo estar parecendo com o gato da Alice

no País das Maravilhas de tão maquiavélico.

Passo meu braço, depois de acumular meus pertences em uma só mão,

e aperto a cintura dele, abraçando-a com a força que eu queria usar ao redor

do seu pescoço e deito minha cabeça em seu peito. Uma noiva bem feliz que

aguarda seu noivinho falar seu nome para o outro.

Claro que Dias nos encara, esperando uma resposta e provavelmente

estranhando essa situação bizarra. Pedro terá muito trabalho para reverter sua

mentira depois e não irei facilitar em nada para ele.

— O nome dela é… — começa, cutucando minha cintura e me

contorço um pouco, mas me mantenho calada e, quando percebe que não irei

abrir o bico, ele limpa a garganta. — Eu sempre a chamo de meu docinho —

complementa, me olhando com os olhos semicerrados e controlo meu riso,

porque alguém precisa trazer esse homem de volta aos trinta e poucos, porque

docinho com toda certeza me lembra meus avós.

— Meu docinho… — Ricardo repete. Esse homem é como um

papagaio? Ele repete tudo o tempo todo, é um pouco irritante.

— Sim, muito romântico — murmuro a mentira. — E eu o chamo de

meu azedinho. — O apelido sai pelos meus lábios antes mesmo que eu tenha

controle do que estou dizendo, mas a feição chocada e desgostosa de Pedro

faz valer a pena por alguns milésimos de segundos, até eu perceber o que, de

fato, estou fazendo.

Eu não sou sua noiva.

Docinho e Azedinho são os piores apelidos da face da Terra.

Mentir é errado, e pecado.

Mentir para ajudar o canalha do meu ex-chefe por seja lá qual for o

motivo não reduz em nada o fato de ser algo errado. Ele nem mesmo merece

ajuda.

Começo a me afastar, pronta para desmentir toda a história, mas o

celular de Ricardo toca estridente no ambiente e ele rapidamente o atende,

repetindo palavras como “está bem”, “ok” e “já estou a caminho” antes de

encerrar e nos fitar com um sorriso.

— Bem, foi um prazer te conhecer, mas o dever me chama — brinca,

levantando as mãos no ar. — Morgana realmente ficará muito feliz em saber

que você seguiu em frente e parece tão… feliz, Pedro.

Feliz? Isso é o Pedro expressando felicidade para o Dias? Porque ele é

péssimo demonstrando felicidade se for assim. Estou confusa demais no

momento para assimilar toda a merda que acabou de acontecer e toda a

concretização de pensamentos que já foi formada, afinal, Ricardo está mesmo

acreditando fielmente nessa história de noivado e estou tão tonta que mal

consigo reagir.

— Claro, não nos deixe te impedir de fazer o seu trabalho — Pedro

replica com o deboche pingando em seu tom de voz, mas o outro parece não

notar a ironia, porque somente dá um aceno, olhando mais algumas vezes

para nós dois e percebemos que estamos bloqueando a saída.

Ao invés de me soltar, o homem grudado em mim somente nos gira

até abrirmos passagem e tento manter uma expressão que não seja de

desesperada enquanto observo Ricardo caminhar para fora da redação até que

sua figura suma quando Pedro puxa a sua porta com o pé, fechando-a com

um baque e, então, finalmente me libertando das suas garras.

Acho que estou alguns graus mais traumatizada.

E não estou noiva!

— Você nem mesmo se lembra do meu nome! — falo a primeira

coisa que me vem à mente, colocando o máximo de distância possível entre

nós dois.

— Isso é realmente o ponto mais importante pra você?

— Babaca — murmuro emburrada. — Não estou me importando com

o resto porque é problema seu.

— Problema nosso, docinho — responde com um resmungo,

sentando-se em sua cadeira e nem mesmo se dignando a me olhar enquanto

pega o celular.

— Vai sonhando. Você criou o problema, você resolve. Eu só estava

vindo aqui deixar esses papéis, porque prezo pelo futuro desse jornal, mesmo

depois de você me demitir — sibilo, colocando o restante das folhas que

sobraram na minha mão junto às demais que ele já deixou em sua própria

mesa. — Aqui estão as pesquisas e transcrições de todas as reportagens que

eu fui encarregada essa semana — recito. — E, com isso, meus serviços por

aqui se encerram.

— Não pode simplesmente ir embora — rebate, como se realmente

acreditasse que eu deveria ficar para arrumar a bagunça dele.

— Pois é exatamente isso que eu estou fazendo! — afirmo, batendo

os calcanhares no chão antes de dar meia-volta, pronta para deixar todo esse

sonho biruta dos últimos minutos para trás.

Ora, quem inventa um noivado falso com uma estranha?

— Não é uma estranha — ele responde, me dando uma olhada por

cima do celular antes de terminar de digitar algo e percebo que, de novo,

estou pensando em voz alta.

— Nem mesmo se lembra do meu nome — recordo-o, cruzando os

braços a alguns passos da porta e arqueando a sobrancelha para ele, dando-o

uma última oportunidade de não ser um completo babaca.

— Ana? — Faz sua tentativa e reviro os olhos para a minha

inocência. Nem mesmo temos uma jornalista chamada Ana na redação. —

Ok, eu não me lembro do seu nome — admite.

— É Alice, mas isso nem mesmo importa mais, afinal, não trabalho

mais aqui, então eu lavo as minhas mãos — falo, batendo as palmas uma na

outra como se limpasse as mãos e aprumo minha postura. — Boa sorte

resolvendo seus problemas, seu maluco — digo ao abrir a porta e quase

correr para longe, querendo ir embora o mais rápido possível antes que eu

volte a perceber que isso não foi um sonho e eu realmente acabei de passar

por uma situação na qual fingi ser a noiva do maldito Pedro Bittencourt por

alguns minutos.

Provavelmente devo estar mesmo começando a delirar pela falta

precoce de dinheiro e endividamento pelas parcelas sem fim no meu cartão de

crédito.

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Comments

leitora por amor

leitora por amor

Isso mesmo Alice, deixa ele ferradinho...kkkk

2024-05-15

2

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