Mentira tem perna curta

                                                          Pedro

Seria um crime não atender a própria mãe?

Gostaria de não considerar isso um crime, afinal, assim seria mais

fácil recusar a terceira chamada seguida da minha mãe. Ela nunca ligava no

horário de trabalho, sempre cuidava para não me atormentar nos finais de

semana à noite, contanto que eu fosse bom filho o suficiente para vê-la ao

menos uma vez por semana. Isso não era um sacrifício, então, pelo bem da

família Bittencourt, eu o fazia.

Meus pais não são pais ruins, não podia reclamar disso, mas enquanto

meu pai era aleatório a qualquer coisa que não seus negócios e acreditava que

Laura e eu vivíamos bem a ponto de não precisar mais cuidar de nós, minha

mãe era a parte intrometida. Ela gostava de ligações longas e mandar

mensagens com emojis demais.

Laura: É melhor atender a mamãe ou ela irá morrer antes dos 60 por

sua causa.

Leio a mensagem da minha irmã sentindo uma veia pulsar em minha

testa, indicando o início de outra dor de cabeça. Passo os dedos pelos olhos,

respirando fundo antes de fechar o notebook e encaro São Paulo pelas janelas

bem limpas do meu escritório. As luzes da cidade correm de um lado para o

outro e prefiro observá-las por alguns instantes antes que outra mensagem da

minha irmã mais nova vibre em minha mão.

Laura: Está mesmo noivo?

Preciso dar credibilidade à ruindade de Dias, afinal, ele demorou um

dia e meio para fazer com que a notícia se espalhasse e a minha dor de cabeça

começa a latejar enquanto pairo com os dedos no teclado do celular.

Deveria ter dado mais credibilidade a ele e não duvidado da sua

capacidade de espalhar a história. Porque, ao deitar minha cabeça no

travesseiro ontem à noite sem nenhuma fofoca espalhada sobre o meu

noivado inexistente, cogitei que ele tivesse aprendido a fechar a boca e cuidar

da própria vida. Que logo essa história seria esquecida, me dando tempo o

suficiente para elaborar uma boa desculpa para colocar toda a situação como

uma grande piada feita com a cara dele sem parecer muito infantil no meio do

caminho.

Posso admitir algumas coisas e confessar que inventar um noivado

falso somente para provocá-lo e provar um ponto foi uma atitude bem juvenil

da minha parte, isso é algo que posso admitir. Chego perto de ser perfeito,

mas não sou.

Passaram mais de vinte e quatro horas e não dei a atenção devida à

minha mentira, o que significa que, mesmo que Dias tenha demorado para

espalhar tudo, não pensei em boas justificativas.

Pedro: É complicado.

Respondo a minha irmã e antes de abrir as infinitas mensagens da

minha mãe que não param de chegar, puxo a aba de notificações e solto um

grunhido quando vejo minha caixa de entrada do e-mail e minhas mensagens

diretas do Instagram com felicitações como “parabéns pelo noivado”,

“felicidades ao casal” e “estamos ansiosos para conhecê-la”.

Que merda eu me meti.

Laura: Seja mais objetivo quando a mamãe te perguntar isso.

Laura: Complicado é a resposta errada.

Laura: Então está mesmo noivo.

A afirmação deixa um arrepio pelas minhas costas. Falar que estava

noivo para me livrar de Ricardo foi mesmo a ideia mais brilhante que tive

esse ano. De longe, a melhor ideia.

A ligação da minha mãe aparece na tela e olho pelas paredes

transparentes que separam meu escritório do restante da redação, ainda há

alguns funcionários por aqui, mas estão concentrados demais em suas tarefas,

por isso não me dou ao trabalho de levantar para fechar a porta quando tomo

ar e finalmente atendo a ligação. É hora de começar a lidar com as

consequências.

— Não acredito que fez isso comigo! — Dona Heloísa grita em meu

ouvido. Murmuro um “mãe”, que não é ouvido, enquanto ela prossegue: —

Não acredito que o meu menino ficou noivo e eu tive que descobrir isso

através da Helena!

Ah, agora eu entendi o motivo da sua frustração. O problema não é a

minha mentira, mas sim que descobriu através da mãe de Morgana. Minha

mãe nunca foi com a cara da minha ex-sogra e, mesmo nunca dizendo isso

em voz alta, eu deveria ter dado ouvidos a ela quando me aconselhou, lá no

começo, que achava que todo o meu relacionamento não era uma boa ideia.

Teria me poupado alguns anos.

— Mãe… — tento outra vez.

— Sim, sim, é melhor começar a me explicar isso agora mesmo,

Pedro — exaspera e aperto a ponte do nariz, pensando na minha resposta. —

Helena disse que Morgana falou que o Ricardo comentou sobre a beleza da

moça, uma morena de respeito.

Tenho quase certeza que “morena de respeito” não foi o comentário

do Dias, e, se foi, ele deveria ter mais respeito sobre a noiva dos outros.

E com a própria esposa que tanto idolatra.

E eu não falaria que Ana é uma morena de respeito. Ricardo e eu

temos concepções diferentes de beleza, porém isso é algo que ficou bem

evidente ao longo dos anos, ainda que ele tenha acabado com a minha ex.

Minha não-noiva atual é, no máximo, com esforço e talvez roupas melhores,

bonitinha.

— Estávamos mantendo tudo o mais discreto possível. Sabe como os

sites de fofoca são. — Tento contornar a situação e me detesto a cada nova

mentira que me prende nessa história bizarra, todavia, meu cérebro cansado

não consegue pensar em uma saída melhor do que seguir acrescentando

pontos a essa trama.

— Pois conseguiram! Foi discreto a ponto de nem mesmo a sua

própria mãe saber, isso é ultrajante! — comenta, fazendo com que eu me

sinta um pouquinho pior pela mentira. Ela podia ser um pouco menos

dramática e não me colocar na posição de pior filho do mundo a cada

instante, ajudaria.

Talvez eu até mesmo tivesse coragem de contar a verdade.

Não, sem chance. Pela quantidade de mensagens que recebi, isso se

espalhou o suficiente para que, nem em um milhão de anos, irei sair por aí

falando que é uma mentira. Não irei manchar minha imagem e virar um

mentiroso, frouxo e que ainda sofre pela ex a ponto de inventar uma história

de noiva falsa. Precisarei resolver de outra forma. Sou um dos melhores

jornalistas que existe nessa cidade atualmente, não irei me render à facilidade

de sair da situação só admitindo minha mentira.

Posso ser um ótimo contador de histórias, ainda que sempre tenha

preferido as factuais.

Alice!

O nome dela é Alice, não Ana.

— Nós íamos contar — digo, querendo suavizar a chateação da minha

mãe. — Nesse final de semana — continuo, sem controle.

Virei um mentiroso compulsivo, que ótimo!

— Não invente histórias só para minimizar sua culpa, Pedro. Uma

ova que ia me contar, ia continuar me escondendo e, quem sabe, eu só

descobriria através de um desses sites de fofoca. Ou pior, quando fosse

chamada para o casamento!

Só a palavra já me causa um arrepio assustador.

— Mãe, não é bem assim — resmungo, voltando a parecer um

adolescente. — Tínhamos planejado um almoço lá em casa no domingo para

contarmos. — Minha mãe murmura um “uhum”, ainda desconfiada.

Acho que ser pego na mentira pela minha mãe seria pior do que ser

descoberto por qualquer outra pessoa, afinal, ela se lembraria disso para o

resto da vida e provavelmente ficaria magoada por não ter sido inclusa no

plano. Se preciso provar que a minha mentira é uma verdade para alguém,

esse alguém é a minha mãe, mesmo que isso faça de mim um homem adulto

que mais parece um garotinho.

Ninguém aqui precisou lidar com a mágoa de Heloísa Duarte

Bittencourt, ela teria sido mesmo uma ótima atriz de novela das nove. Talvez

por isso que eu não calo a porra da minha boca e continuo falando em total

descontrole da minha mente e racionalidade.

— O nome dela é Alice, ela é jornalista e trabalhava aqui no Diário,

por isso queríamos discrição. A galera sabe ser maldosa e não queria

prejudicar a carreira dela — conto, o que é uma mentira crível se pensarmos

bem. O pessoal é maldoso, eu sou o chefe do jornal, ela era uma funcionária

até ontem à tarde.

Mas, a melhor parte de tudo isso, é que simplesmente envolvi uma

completa desconhecida na minha história e não sei absolutamente nada a

respeito dela que não as informações que acabei de passar para minha mãe,

como o seu nome e sua formação. Nem mesmo tenho um sobrenome e, na

maioria das vezes que me recordo dela, ainda erro seu nome.

— É, os boatos são bem desagradáveis mesmo — minha mãe

concorda comigo e quase solto um suspiro aliviado pelo tom mais dócil de

sua voz. É como dominar um leão, ainda que eu tenha que lidar com outros

dez assim que eu finalizar essa ligação. — Então… almoço no domingo?

— Sim — respondo, tentando não parecer como um cara prestes a ir

para a forca. — Almoço no domingo — confirmo, como se fosse um plano

feito há semanas. Estou tirando de letra essa coisa de mentir. — Avise ao

papai e mandarei uma mensagem para Laura — peço, soando natural como

um cara que realmente tem uma noiva.

O Pedro de daqui a cinco minutos pensará sobre isso, o atual está com

problemas demais depois de ser emboscado pela própria mãe.

— Parece perfeito, querido. — Viu só, foi só prometer um almoço e

já virei o “querido” de novo. Minha mãe pode ser comprada com almoços

com uma noiva inexistente e bolsas caras. Bem, a noiva existe, só precisarei

achá-la novamente, e também descobrir como convencê-la a continuar

mentindo por mim. Fácil. — Irei deixá-lo voltar para as suas coisas agora,

só liguei para saber sobre as novidades.

— Claro — digo com ironia, mas minha mãe já deve estar fantasiando

demais sobre o meu noivado de fadas para perceber e repreender meu tom.

— Tchau, meu filho. Nos vemos no domingo.

— Até — respondo antes de desligar a chamada e relaxar meu tronco

contra a cadeira confortável.

Passo um cumprido. Consegui fazer minha mãe acreditar na minha

mentira e não virei um contador de histórias baratas para a minha própria

matriarca.

O passo dois é um pouco mais complicado, afinal, diz respeito a

manter essa mentira em pé, uma vez que decidi continuar contando-a como

um falador sem controle, algo que não sou, só para deixar claro. E, para

conseguir concluir essa etapa, precisarei de alguns esforços adicionais.

Abro a terceira gaveta da minha mesa e pego a pasta que joguei ali

ontem, depois de terminar de demitir Alice e os outros três que vieram antes

dela. Espalho as cópias dos currículos na mesa até encontrar a que preciso e

torço o nariz para a foto 3x4 da garota à minha frente. Sua formação não é

nada mal, os estágios são interessantes, o currículo foi bem redigido.

Viro a página, buscando pela ficha do R.H. e abro o teclado numérico

em meu celular, digitando o contato dela antes que eu possa voltar a pensar

direito e recobre minha consciência sobre como tudo isso é uma péssima

ideia.

Maldito seja Ricardo Dias por ser um papagaio ambulante e ter tempo

de sobra para me incomodar em plena terça-feira à tarde.

Maldito seja eu por ter falado aquela porra de sim.

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