-Dante - O Poder das Sombras
...“Eu a encontrei no meio da minha mais profunda escuridão, e ela me levou aos céus outra vez.”...
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Para mim, o caminho parecia se abrir conforme eu caminhava para cima da montanha. Os arbustos de galhos retorcidos chacoalharam-se agitados por causa do vento que batia insistente contra eles.
Era uma noite limpa de lua cheia, embora eu soubesse que a grande esfera brilhante e poderosa estivesse quase no meio do céu, as árvores que se conectavam no topo escondiam a luz prateada do luar.
Uma visão realmente ameaçadora se não conhecesse o caminho que existia adiante, mata fechada cercava os arredores até a descida para o litoral. Ninguém tinha coragem de se aventurar por ali, pelo menos não à noite. Trilhei meu caminho como fazia todas as noites de lua cheia, enquanto ela fazia o próprio caminho para encontrar o topo do céu. Era um dia extremamente especial onde as pessoas se escondiam dentro de suas casas e contavam histórias assustadoras sobre o alto da colina.
Meu corpo era um receptáculo de poder e minha pele parecia queimar com a chegada do meio da noite quando, a lua flutuava lentamente para o seu precioso lugar. Mesmo escondida por aquele lindo arco de galhos e folhas, eu conseguia vê-la em sua própria trajetória. Eu também podia sentir o poder emergindo do fundo do meu ventre pronto para irradiar por todo o meu ser. Mais uma vez.
Tracei silenciosamente meus dedos sobre a madeira dos galhos que se retorceram até o chão com o tempo, arranhando minha pele como uma carícia maldosa e ainda assim, era tão delicioso quanto o que eu estava prestes a fazer. Então me deixei ser conduzida, guiada, subindo e subindo até o meu destino final.
De um jeito dolorosamente lento, o poder que compartilhava do meu corpo começou a vazar e derreter para o chão, deixando um rastro de ônix pegajoso para trás. As sombras adoravam aquele ritual, adoravam a força bruta e antiga que a lua entregava nas noites que estava completamente cheia, adoravam a profundidade da solidão que ela transbordava. Então as deixei que me guiassem, me levando como um condutor até o alto da colina onde as pedras quase polidas foram agrupadas quase que milimetricamente formando um semicírculo.
O terreno elevado que me chamou durante anos a fio era um altar. Um campo vazio e plano se estendia a céu aberto por todos os lados até que acabavam onde árvores altas e antigas bloqueavam a visão e o caminho, uma parte de algo feito por muito mais que miseráveis mãos humanas. Era composto pelas pedras lisas que formavam um círculo no centro daquele altar, onde fuligem e poeira eram abrigados por um fenda natural entre as pedras.
Era um lindo lugar onde nem mesmo os homens mais poderosos tinham coragem de conhecer, era o lugar onde eu atiçava o fogo e queimava por dentro.
Prossegui então, para o meio do círculo. Suspirei lentamente tentando absorver mais do que a brisa fresca daquela noite fria, tentando puxar para mim o poder que me rondava ansioso pela consumação do que eu iria entregar.
Com um simples exalar elas se chocaram formando uma explosão negra, onde fuligem e vestígios de fogo flutuavam em seu interior. Juntei todo esse poder fazendo com que o que restou dentro de mim revirasse jorrando para fora, cinzas e clarões dentro do ônix foram direcionados a fenda das pedras e o fogo nasceu de dentro dela.
Meus ossos batiam entre si e tremi em cada uma das minhas células antes das sombras relaxarem e sobrevoarem o campo com delicadeza.
Era um lugar de entrega, de adoração.
Um lugar de sacrifício.
Meu lugar de sacrifício.
O poder ondulou dentro de mim quando a lua finalmente se pôs no ponto mais alto do céu, o fogo que chiava dançando no meio das pedras, reclamava pela falta de combustível, e isso fazia com que as chamas chicoteassem exigindo aquilo que eu havia me preparado para entregar a ele, o sacrifício da lua cheia, o sangue e o poder que eu havia roubado naquele mesmo dia mais cedo.
Ergui as mãos com uma longa respiração acima do peito e lancei essa mesma respiração em direção do fogo, ele brilhou e consumiu o último suspiro do sacrifício. Puxei a ponta da capa que cobria meu corpo completamente nu debaixo do tecido, deixei ela cair ao meu lado e girei nas pontas dos pés deixando sair cada um dos movimentos que foram feitos pelo meu corpo.
As sombras que agora tinham formado uma espessa nuvem ao redor do espaço, voltaram e se chocaram contra minha pele, consumindo e procurando onde havia cada um dos toques que absorvi, que permiti antes de roubar as forças da minha última vítima. A nuvem girou me tocando e absorvendo todo o prazer sofrido que o sacrifício me deu.
A chama chiou quando as sombras se afastaram do meu corpo para chocar contra ela, entregando a penúltima parte daquele simples ritual.
Enfim caminhei até as chamas vivas que giravam em torno de si própria, deixei que meus joelhos encontrasse o chão arenoso e deu um outro longo suspiro. Cortei com minha própria unha a ponta do meu indicador e não demorou para que o sangue fluísse por aquela fina fenda na minha pele. Olhei em volta chamando para dentro de mim novamente as sombras que me acompanhavam desde jovem e deixei que elas me invadissem antes das chamas reivindicarem o sangue, a última parte do ritual.
Um pequeno e fino tornado se moveu dentro da fogueira e direcionou a ponta para mim, eu já sabia o que fazer, elas sempre pediam o sangue que eu dava de bom grado em troca da sua força. Estiquei as mãos deixando as gotas escorrerem por meus dedos até que o redemoinho de fogo tocasse a ponta do meu dedo. O fogo subiu até o alto recebendo o que eu entregava e aos poucos as gotas de sangue encontraram a saída do meu corpo por aquela pequena fissura. O cheiro de cobre queimado subiu e a dor aguda acertou meu baixo ventre, uma pontada como se eu tivesse sido apunhalada por uma longa lança.
Meu corpo tremeu eu gritei.
O ritual estava feito.
Então apaguei.
...✸...
Sua entrega foi aceita.
Minha mente apitou. Era sempre assim, todos os meses eu era obrigada a subir para entregar um sacrifício que as sombras exigiam, e era sempre doloroso demais.
Eu não tinha muita escolha, sequer havia algo a não ser dar o que elas queriam. Todos os meses minha consciência me levava a violar a honra de algum humano, de quem quer que mostrasse algum tipo de poder. Quem sequer pensasse em virar os olhos em minha direção. Era como se aquele poder que reverberava dentro de mim decidisse e escolhesse o que queria, como se conseguisse sentir o sabor do sangue que gotejava das minhas veias.
Busquei a capa que estava jogada ao meu lado e me vesti, não foi uma escolha minha estar nua e sozinha no topo de uma baixa colina. Mas era impossível não gostar de todo o poder que eu sentia fluir pelas minhas veias, era como um líquido viscoso e prateado, como se fosse prata derretida e incandescente escorrendo por baixo da minha pele.
Respirei algumas vezes antes de voltar ao caminho que tomei para subir, um fôlego necessário para conter a energia e cultivar um pouco de paciência para encarar a realidade que me cercava.
Sthenyan ficava abaixo das colinas, entre dois picos salpicados por folhagens e se estendia por todo o continente, mas ali, onde as colinas formavam uma rara e singular fenda quase verdejante, era o pequeno coração dessa cidade.
Onde nasci e ainda assim não era meu lar.
A descida para a minha aldeia era tão cansativa quanto a subida, meus ossos rangiam pelo frio da manhã e isso tornava difícil se movimentar vestida apenas por uma capa.
Ao menos não era tão difícil quanto a máscara que usava e o próprio sacrifício que fazia, mas era necessário; tão necessário quanto o ódio que fervilhava dentro de mim. Era uma troca de favores, minha raiva tocava sutilmente aquele poder e ele se alimentava dos sacrifícios que eu entregava. Por mais que eu odiasse isso, essa moeda de troca me permitia me vingar e me deliciar com isso até a última gota.
Gotas de gritos.
Gotas de desespero.
Gotas de um prazer insano ao ver suas vidas sendo sugadas para dentro do meu ser.
O arco de folhas começavam a se abrir conforme a caminhada até Lyth diminuía, e todo esse trajeto sempre me trazia a memória como eu tinha perdido minha vida para essa tortuosa escuridão, como aquela noite tempestuosa de dor e desespero me trouxeram o poder que agora habita em mim.
Você foi escolhida. — O líquido de poder ondulou sussurrando.
Afastei aquela voz sibilante da minha cabeça, ela costumava me instigar e escolher suas próprias vítimas, me contando seus pecados, mostrando o quanto eram ruins; tão ruins quanto aquele homem no dia da grande tempestade.
Lyth era o gatilho, aquela aldeia dentro de Sthenyan era o ponto central das minhas dores e doces loucuras.
Todos os ciclos eram os mesmos, todo despontar de lua cheia trazia à tona todas as minhas dores. Minha mente trazia de volta cada uma das sensações que me tocaram naquela noite e talvez por isso eu tivesse forças para subir a colina e derramar meu sangue diante daquele ritual, aos pés do fogo incandescente.
Um passo após o outro e uma lembrança após a outra.
Viver ali… era o que eu tinha.
Tudo o que eu poderia ter desde que meu pai decidiu que eu não lhe servia mais e que me dar a um homem sem nome seria mais proveitoso, claro que sim, os recursos eram poucos e nada, nem mesmo toda a riqueza que ele pudesse querer faria com que me deixasse ficar em casa.
Foi nessa mesma noite que perdi minha inocência e dignidade, foi exatamente nesse mesmo dia que ganhei meus poderes.
A tempestade já tinha dado um sútil aviso de que naquela noite, traria o caos, eu só não sabia que seria tão poderosa assim.
Os ventos derrubaram casas e raios caíram em diversos pontos, tanto em Sthenyan quanto em Syth. Minha casa foi um desses lugares.
Enquanto eu me debatia e gritava, meus pais morriam queimados. Enquanto eu tentava desesperadamente sair debaixo daquele homem, me perguntando diversas vezes o que eu havia feito de errado, meus pais tinham a pele queimada até a morte.
Por sorte eu consegui fugir, não antes de deixar meu orgulho manchado naqueles lençóis sujos ou de me sentir tão suja quanto o barro dos porcos.
Mas consegui, e foi para a colina que recorri, o lugar onde até mesmo meus ancestrais temiam falar. Corri por esse mesmo caminho pedroso, onde o arco ainda não tinha florescido. Debaixo da chuva intensa da tempestade, até cair sobre os joelhos de frente para o núcleo de rochas.
Ele percebeu minha ausência de alguma forma naquela noite, mesmo debaixo do barulho daquela chuva, e me seguiu. Mas eu já havia aceitado meu destino, com as roupas sujas do chão misturadas com meu próprio sangue. Quando ele chegou à colina, eu já havia sido consumida pelas sombras, pela dor, pelo ódio que fervia dentro de mim. Então ele foi o primeiro. O primeiro a ser lançado ao fogo como um grande pedaço de carne, observei ele queimar e sua pele derreter até que sobrasse apenas queimaduras logo depois das sombras se enroscarem nele como uma serpente. Ele gritou quando começou a ser arrastado até as chamas que queimavam firmes mesmo debaixo da chuva.
Então, eu me libertei na mesma noite em que perdi tudo.
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Atualizado até capítulo 106
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