O balanço excessivo estava me deixando enjoada. Era um para lá e para cá constante e por algumas vezes, parecia trepidar, como se o chão abaixo de mim estivesse em movimento.
Abrir os olhos nunca foi tão difícil.
Aylena… — Era fraco, mas ainda assim eu pude ouvi-lo me chamar. — Minha menina, acorde!
Usei toda a força que pudesse existir em mim, no entanto, todo o esforço que eu tentava fazer para me levantar, meus músculos reclamavam. Não ousei abrir os olhos, minha cabeça explodia a cada mínimo som, até mesmo o chiado do vento a tornava ainda mais dolorida.
Ay… Ouvi novamente e dessa vez… dessa vez eu pude ouvir o timbre rouco e suave.
— Droga! — resmunguei baixinho sentindo a ânsia queimar.
Acabou, ele não pode mais te machucar. — Me machucar…
Fio a fio, as memórias foram costuradas em minha mente. O som da tosse engasgada e o líquido vermelho escorrendo pelos lábios abertos, aterrorizado, vendo cada um de seus pecados transbordarem e entalarem na garganta.
Egal morreu.
Eu o matei.
O vi sangrar até que o ar fosse inalcançável para ele, um direito roubado, sua vida agora corria em minhas veias.
Eu o matei. — O sussurro se tornou mais forte. — Ninguém toca em você.
Tomei para mim um extenso gole de ar antes de forçar meus músculos e tendões a se moverem, cada uma das minhas articulações doía, meus ossos reclamavam e pareciam pegar fogo.
Eu nunca tinha me permitido usar tanto poder, jamais senti tanta força transbordar antes, nem tanto ódio viajar por minhas veias.
Devagar abri os olhos e a luz do sol me cegou temporariamente. Os raios passavam por grades espessas de ferro, bloqueando parte da luz, e a paisagem ao redor se movia e balançava conforme as grades chacoalhavam comigo dentro. Eu estava presa.
Agarrei nas grades de ferro maciço sentindo falta de ar, estávamos no meio de uma floresta densa e tudo o que eu podia ver pelas grades eram os homens bem armados e as árvores escuras. Cavalos trotavam e relinchavam à medida que subíamos lentamente, estávamos indo para Sthenyan.
— Aylena! — jurei ter ouvido a voz desesperada de Darlen.
Esconda seu medo, menina. — Eu bufei, como eu poderia esconder o medo se era o que eu estava sentindo?
— Aylena! — outro grito, virei o corpo em cima de uma quantidade grande de feno. — Você está viva!
Darlen estava dentro de uma outra jaula, pequena de barras grossas como as que eu estava, seu rosto estava salpicado de sangue e o vestido amarelo claro com manchas escuras onde os joelhos tocavam. Não havia mais jaulas como as nossas, estávamos presas e sozinhas sendo levadas em direção a cidade.
— Por que está aqui!? — murmurei alto o suficiente para que ela pudesse me ouvir.
Os olhos azuis da minha amiga se abaixaram e ela se encolheu dentro da gaiola de ferro, Darlen era uma moça tão bela, com traços tão delicados em seu rosto pálido, que era difícil vê-la entristecida.
— Eu estava indo para a sua casa levar mais vestidos e ouvi os gritos, — ela fungou e olhou diretamente para mim — você estava inconsciente no chão e tinham homens presos em uma nuvem preta, parecia uma fumaça. Egal estava no chão também, morto. Então mais daqueles homens entraram na sua casa e nos jogaram dentro desse lugar — ela chorou e apertou as barras — eu tentei, tentei falar que não fizemos nada! Mas… mas a nuvem se dissipou e os homens presos disseram que… que você matou o sacerdote, e eu… eu não consegui impedir. Não acreditaram que eu era inocente.
Eu me encolhi na minha própria gaiola, os homens ao redor rosnavam de ódio quando eu os olhava. Pela primeira vez eu senti culpa, não por ver Egal engasgar até a morte, senti culpa por ter deixado que Darlen se aproximasse e por tê-la deixado entrar na minha vida.
Ela era uma garotinha alegre quando a conheci, questionadora e intrometida. Nos meus primeiros anos sozinha, ela me esperava todos os dias sentada no poço para me contar das suas jornadas. Me contou sobre sua família e também sempre me contou coisas que diziam sobre mim. Darlen tinha pouco menos de dois anos de diferença da minha idade, mais nova, não se importava com o fato de ter me encontrado em um dos meus rituais. Ela me seguiu em uma das noites de lua cheia, nesse dia, eu havia descoberto que um forasteiro tinha cruzado os limites de Lyth em busca de qualquer jovem que o interessasse.
Como eu sabia disso? As sombras e a boca aberta de Darlen me contaram.
Ela me contou sobre o homem que pediu abrigo em sua casa um pouco antes de anoitecer, mesmo que eu a conhecesse pouco na época, não queria que ela passasse pela dor que eu passei. Na verdade, não queria que nenhuma das mulheres chegasse a enfrentar isso. Então invadi a venda de peles e carnes do pai dela e vi aquele homem cruel dormir no chão coberto de sacos de feno.
O poder em mim se revirou em ódio e não demorou nada para que as imagens horríveis do que ele já havia feito inundarem minha mente. Eu sabia que Darlen seria a próxima. Então, no dia seguinte, eu o encontrei seguindo minha jovem amiga e mudei os planos dele, o seduzi e o levei para a colina.
Para que o ritual fosse concretizado, eu precisava que o sacrifício estivesse de guarda baixa, entregue, perdido em qualquer que fosse o encanto que as sombras começaram a me proporcionar desde que me possuiu. E foi tão fácil, ele se entregou a mim e o usei até que seus olhos reviraram para atrás das pálpebras. Em seguida, quando ele estava deitado e nu sobre o chão terroso da colina, extasiado demais para saber o que o aguardava, rasguei sua garganta e o deixei sangrar até que o próprio fogo surgisse no meio do aglomerado de pedras para consumi-lo.
Darlen assistiu todo o ritual e só apareceu no meu campo de visão quando eu já estava vestida, pronta para voltar para casa. Nesse dia contei a ela, disse tudo o que eu fazia e o porque eu fazia. Contei o que havia visto quando olhei para aquele forasteiro dormindo no chão da venda de seus pais e desde então ela implora para que a ensine a ver cada uma das maldades que passam pelas mentes cruéis dos homens, implora para que dê a ela um pouco do poder que queimava em meu baixo ventre. Mas eu sequer sabia como fazer isso.
Agora ela estava ali, presa sem ter como se defender, sem saber se seus pais tinham ideia de onde ela estava. Eles não aprovaram nossa amizade e para poupá-la de ser julgada como eu era todos os dias, eu a ignorava, fingia não lhe dar o mínimo de atenção enquanto estivessem fora da minha casa — que ela invadia constantemente.
Me sentia culpada, por não ter lhe ensinado nada, por não me afastar e prevenir uma situação dessas. Talvez nos queimariam na fogueira no meio da cidade como uma forma de nos fazer de exemplo.
Eu queria desaparecer, tirar Darlen daquela situação e deixar que me levassem, que a esquecessem e tirar toda a culpa que colocaram nela quando a encontraram em casa,
Aylena… — Ele voltou a sussurrar e lentamente um fio de poder começou a derreter em minhas veias, aquecendo meu corpo, amenizando as dores, me dando um acalento que nunca, em todos esses anos que ela permaneceu dentro de mim já me dera. — Permaneça firme.
Eu não sabia o que era aquilo, o que era aquela sensação que me percorria me aquecendo, mas me acalmou, me trouxe novamente para o mundo real onde eu dava a mim mesma para não deixar que outras pessoas sofressem. Esse… esse não era o momento para me perder com medo de não conseguir sair dali, Darlen precisava de mim, precisávamos sobreviver aquela viagem. Eu precisava protegê-la das consequências de se aproximar de mim e do meu destino já traçado.
Agarrei as grades de ferro e sorri calma para a minha amiga chorosa.
— Vamos te tirar daqui — ela soluçou mas assentiu.
Essa é a minha menina. — Ouvi minha mente sussurrar e rir perversa. Sorri para a sensação quente e voltei a me encostar no punhado de feno seco.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 106
Comments