Eles estão perto. — As sombras murmuraram novamente.
Fechei ainda mais aquela capa de pele, fazendo ela virar um manto que descia até os pés. O arco já tinha chegado ao fim e as casas apareceram tomando todo o meu campo de visão.
Caminhei com a cabeça erguida, como sempre. Seguindo a rua de terra seca até o fim da aldeia, tentando não ligar para os olhares amedrontados e os olhares de nojo que me percorriam o corpo, afinal, tudo o que eles viam em mim, era uma bruxa pecadora.
Você é apenas uma mulher poderosa. — Ri com escárnio.
— Silêncio — calei a maldita voz insistente.
Essa voz mental e ondulante, petulante, se intrometia em meus pensamentos constantemente. Dizendo coisas ridículas e desnecessárias, tentando se fazer cada vez mais presente.
Um infortúnio.
Desde que todo esse poder se apossou do meu corpo, essa voz tem me assombrado dia e noite. Dizendo o que fazer, escolhendo suas vítimas e mostrando em imagens terríveis o que cada um que foi escolhido fez ou ainda iriam fazer. Me mostrava com detalhes os horrores que passavam por dentro dos olhos de cada um deles.
Era uma benção e uma maldição, pois as imagens dificilmente saíam de dentro da minha cabeça e demoravam dias para que eu conseguisse superar cada uma delas.
Ignorei os cochichos que sempre começavam quando eu passava pelo meio de Lyth, um presente que o poder me deu: conseguir finalmente ignorar o que diziam ou pensavam de mim.
— Você demorou essa manhã, Aylena. — suspirei tentando não revirar os olhos.
— Não devia estar aqui. — sibilei encarando Darlen de frente.
— Essa noite eu consegui ver as pontas das chamas de cima da minha casa, claro que meu pai me forçou a descer logo em seguida, mas...
— Mas você não deveria falar comigo a essa hora do dia e com tantas pessoas em volta. Por favor, Darlen, não quero ter que fazer seus pais como exemplo de novo.
Ela deixou escapar um sorriso malicioso tirando os cabelos dourados e compridos do pescoço esguio.
— Não me parece uma má ideia, eles têm merecido.
Parei minha caminhada para deixar que ela visse minha má vontade.
— Não comece.
— Por favor! — ela implorou subindo alguns terços de sua voz melodiosa e juntou as mãos — Me ensina, você prometeu. — apertei minhas mãos nas pontas da capa que ainda estava sobre mim e voltei a caminhar.
— Esqueça.
Deixe-me dar poder a ela.
Não. — Calei a voz insistente em minha cabeça.
— Eu não quero me casar! — Darlen gritou e pelos poucos anos que a conhecia sabia discernir o tom de desespero na voz aguda. — Será na próxima lua cheia e... Aylena... eu não estou pronta. — ela finalmente suspirou deixando os ombros caírem. — Quero ser como você.
— Não, você não quer! — Falei ainda mais alto, Darlen não sabia nem da metade das coisas que eu tenho que suportar apenas por abrigar essa coisa dentro de mim.
— Você não pode decidir por mim, isso não é justo!
Ela tinha razão, eu não podia decidir o que ela deveria ou não fazer de sua vida, mas dar essa maldição a ela... eu não podia fazer isso. Não quando ela tinha um teto e não precisava se rebaixar para ter comida em sua mesa, seus pais eram um dos poucos que tinham comércio naquele lugar. Vendiam carne seca e diversos tipos de pele, Darlen dizia que o pai dela comprava aquelas carcaças quando subia até Sthenyan de um caçador barateiro — o que sempre me surpreendia, peles não eram uma coisa tão barata nesse fim de mundo e ainda mais dentro daquela cidade.
— Não é mesmo justo, Darlen. — parei meu caminho antes de chegar em casa — Não foi justo para mim também e você, mais do que ninguém sabe disso — ela se calou e me virei para encará-la. — Se eu pudesse... se eu sequer tivesse tido algum tipo de escolha, eu não teria escolhido isso.
Não finja que não gosta...
NÃO! —Empurrei novamente aquela maldita voz para o fundo da minha mente, ela grunhiu para mim mas se calou.
— Ele vai acabar me matando...
— Então fuja — respondi com firmeza tentando não me deixar levar pela sombra de medo e dor que passou pelos olhos da minha única amiga dentro daquele lugar — arrume suas coisas e fuja para a cidade, tenho certeza que encontrará algo melhor lá, aqui... aqui não resta nada a você além de um casamento forçado e obrigações de uma esposa obediente.
Darlen fungou e expirou lentamente antes de fingir que não havíamos tido aquela conversa.
— Você deveria correr. — ela sorriu — O sacerdote está furioso.
Eu finalmente sorri antes de segurar a fechadura da porta da minha casa, pelo menos ela era desde que os donos fugiram para o outro lado das montanhas, acima do lago negro dizendo que eu acabaria destruindo Lyth algum dia. Talvez estivessem certos.
— Deixe que venham... — eu sorri com escárnio. — Tenho uma surpresa para ele.
Darlen sorriu e correu para o centro da vila, por um momento, enquanto via os cabelos dourados balançarem nas costas esguias dela, por esse breve momento eu cogitei, apenas pensei e nesse mesmo momento o poder ondulou dentro de mim querendo sair e senti o desejo aumentar para possuir a mente dela também.
Fechei a porta com força, não daria essa maldita dor a ela.
...✸...
Foram questões de minutos para que minha paz fosse arrancada de mim com batidas insistentes na minha porta e gritaria rouca, enlouquecida que demonstrava puro ódio e desprezo.
O sacerdote era apenas um homem religioso que me condenou no mesmo dia em que matei o homem que me machucou, dizendo que eu era uma mulher louca, uma feiticeira e bruxa que arrancaria os homens de suas casas e mulheres, que eu trazia o desgosto e desonra de sua Lyth querida. O homem velho que possuía pouco mais que o templo em que morava e alguns pelos brancos em sua barba comprida e espessa.
Ninguém tinha medo dele, nem mesmo os fiéis que diziam acreditar em suas palavras terríveis e deturpadas.
As batidas continuaram com desespero e raiva, eu podia sentir. Eu podia sentir cada um dos desejos e sentimentos que rondavam cada um dos homens que sequer pensassem em mim, de um jeito ou de outro, nem que fossem apenas pensamentos de ódio ou um simples olhar desinteressado. Eu conseguia descobrir o que se passava em seus corações perdidos e cheios de enganos, egoístas e desprezíveis.
Era exatamente o que eu sentia vindo daquele homem que se dizia puro, enviado por um deus que eu não conhecia, que não aceitava a minha existência de forma alguma. Um deus que desprezou minhas dores e as culpou e condenou. Talvez ele fosse um louco.
— AYLENA! — ouvi os gritos dos fundos de casa, pelo jeito tinham invadido por todos os lados dessa vez.
Era tão comum quanto os dias chuvosos, o sacerdote reunia alguns de seus fiéis e vinham até a minha casa para testar a minha paciência e meus poderes apenas para que pudessem provar que eu era uma bruxa maligna influenciada pelo demônio.
Senti as sombras rirem no fundo da minha mente com o pensamento. Mate-os. Ela cantarolou derramando uma generosa quantidade de poder em minhas veias. Ri com deboche, eu realmente podia matá-los, fazê-los sonhar noite após noite com seus maiores e piores pesadelos. Ou, poderia fazer com que seus maiores desejos, aqueles que eles escondem e tanto abominam nas outras pessoas se tornassem seus medos.
— Maldita bruxa! — bateram na porta.
Eu apenas suspirei e não me movi, minha pequena casa no fim da vila ficava próxima do litoral, do cheiro de água salgada. Fiquei sentada na cadeira torta, feita com galhos firmes e amarrados com corda tecida.
Não troquei de roupa quando cheguei, depois do aviso de Darlen, montei no rosto minha melhor máscara de coragem e deboche. Era o que eu vinha mostrando a todos ali desde que eles mesmos me deram essa função.
O sacerdote finalmente conseguiu abrir a porta depois de tanto bater contra ela, fazendo-a ranger pelo esforço.
— O que você fez ontem a noite, maldita? — ele gritou, eufórico e tomado por uma coragem de me enfrentar quase inacreditável.
— Nada demais — sorri colocando meus pés descalços sobre a mesa redonda que ficava no centro da casa.
— Não minta! — exigiu. — Ou farei com que seja queimada antes que consiga fazer mais um de seus feitiços.
Mesmo que todas aquelas palavras me doessem a alma, mesmo que me machucassem e me quebrassem em pedaços por dentro, eu não podia demonstrar, eu não podia deixar que vissem a maldita dor que me perseguia. Então puxei o laço da capa que a segurava no lugar e me levantei, deixei que ela caísse sobre meus pés.
O sacerdote arregalou os olhos enquanto seus seguidores murmuravam e soltavam palavras de repreensão, seguindo caminhando lentamente pela madeira desgastada que formava o chão da minha casa em direção a ele.
— Não fiz nada do que eu já não tivesse feito antes, Egal. — sorri enquanto o sacerdote se afastava.
Não fiz questão de me vestir quando Darlen me avisou sobre a ira dele, não iria adiantar fingir que nada aconteceu, Egal era um sacerdote esperto demais para ser passado para trás e eu realmente não queria ter que lidar com ele mais tarde.
Eu ainda estava nua e isso fez com que ele me olhasse da cabeça aos pés, inconformado com minha coragem.
— Se afaste! — ele gritou e eu apenas continuei me aproximando até que ele estivesse tão próximo da porta que faltava apenas um passo para sair de dentro da minha casa.
— Achei que queria saber o que eu fiz ontem, caro Egal... — sorri com deboche para ele. — Deixe-me te mostrar... — dei um passo ainda maior, fechando a distância entre nós.
Eu pude vê-lo puxar o ar para os pulmões com rapidez e seu rosto ficar de um vermelho quase brilhante.
— Saia de perto dele! — um de seus fiéis ajudantes gritou, ele estava com a voz levemente trêmula e dava para perceber por causa do silêncio que tomou minha casa quando eu estava tão perto de Egal que a ponta dos meus seios tocavam em sua túnica.
— Sa... saia, louca! — Egal ofegou.
Raspei minhas unhas em sua túnica desbotada, sorrindo perversa enquanto ele tremia. Egal tentou puxar mais uma lufada de ar antes que eu colasse ainda mais meu corpo contra o dele, fazendo meus seios apertarem contra o tecido poroso.
— Não quer mesmo saber o que eu fiz ontem, Egal? — murmurei me aproximando de seu ouvido enquanto eu puxava uma das mechas do meu cabelo para brincar entre os dedos — Talvez... talvez se eu realmente te mostrasse, esse seu mau humor finalmente fosse embora.
Fingi um riso tímido ainda brincando com as mechas laranjas quase como o cobre que meus cabelos tinham.
— Egal... — ronronei seu nome e ele caiu porta afora da minha casa quando tentou se livrar da minha presença.
Pare. — As sombras rosnaram em minha mente e eu as afastei.
— VOCÊ VAI QUEIMAR AYLENA! — Egal gritou e correu, seguido dos fiéis companheiros — MALDITA!
Eu apoiei o ombro na porta rindo, enquanto eles fugiam pelo caminho de volta ao centro da vila.
Minha... — Ouvi novamente no fundo da minha mente.
E não, eu não pertencia a essa maldição, toda essa dor que me perseguia não era para mim. Afoguei os rosnados do poder no mais profundo da minha mente antes de voltar para dentro de casa e bater a porta logo atrás de mim, eu estava cansada demais para lutar contra mim mesma.
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Atualizado até capítulo 106
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