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-Dante - O Poder das Sombras

Um

...“Eu a encontrei no meio da minha mais profunda escuridão, e ela me levou aos céus outra vez.”...

......................

Para mim, o caminho parecia se abrir conforme eu caminhava para cima da montanha. Os arbustos de galhos retorcidos chacoalharam-se agitados por causa do vento que batia insistente contra eles.

Era uma noite limpa de lua cheia, embora eu soubesse que a grande esfera brilhante e poderosa estivesse quase no meio do céu, as árvores que se conectavam no topo escondiam a luz prateada do luar.

Uma visão realmente ameaçadora se não conhecesse o caminho que existia adiante, mata fechada cercava os arredores até a descida para o litoral. Ninguém tinha coragem de se aventurar por ali, pelo menos não à noite. Trilhei meu caminho como fazia todas as noites de lua cheia, enquanto ela fazia o próprio caminho para encontrar o topo do céu. Era um dia extremamente especial onde as pessoas se escondiam dentro de suas casas e contavam histórias assustadoras sobre o alto da colina.

Meu corpo era um receptáculo de poder e minha pele parecia queimar com a chegada do meio da noite quando, a lua flutuava lentamente para o seu precioso lugar. Mesmo escondida por aquele lindo arco de galhos e folhas, eu conseguia vê-la em sua própria trajetória. Eu também podia sentir o poder emergindo do fundo do meu ventre pronto para irradiar por todo o meu ser. Mais uma vez.

Tracei silenciosamente meus dedos sobre a madeira dos galhos que se retorceram até o chão com o tempo, arranhando minha pele como uma carícia maldosa e ainda assim, era tão delicioso quanto o que eu estava prestes a fazer. Então me deixei ser conduzida, guiada, subindo e subindo até o meu destino final.

De um jeito dolorosamente lento, o poder que compartilhava do meu corpo começou a vazar e derreter para o chão, deixando um rastro de ônix pegajoso para trás. As sombras adoravam aquele ritual, adoravam a força bruta e antiga que a lua entregava nas noites que estava completamente cheia, adoravam a profundidade da solidão que ela transbordava. Então as deixei que me guiassem, me levando como um condutor até o alto da colina onde as pedras quase polidas foram agrupadas quase que milimetricamente formando um semicírculo.

O terreno elevado que me chamou durante anos a fio era um altar. Um campo vazio e plano se estendia a céu aberto por todos os lados até que acabavam onde árvores altas e antigas bloqueavam a visão e o caminho, uma parte de algo feito por muito mais que miseráveis mãos humanas. Era composto pelas pedras lisas que formavam um círculo no centro daquele altar, onde fuligem e poeira eram abrigados por um fenda natural entre as pedras.

Era um lindo lugar onde nem mesmo os homens mais poderosos tinham coragem de conhecer, era o lugar onde eu atiçava o fogo e queimava por dentro.

Prossegui então, para o meio do círculo. Suspirei lentamente tentando absorver mais do que a brisa fresca daquela noite fria, tentando puxar para mim o poder que me rondava ansioso pela consumação do que eu iria entregar.

Com um simples exalar elas se chocaram formando uma explosão negra, onde fuligem e vestígios de fogo flutuavam em seu interior. Juntei todo esse poder fazendo com que o que restou dentro de mim revirasse jorrando para fora, cinzas e clarões dentro do ônix foram direcionados a fenda das pedras e o fogo nasceu de dentro dela.

Meus ossos batiam entre si e tremi em cada uma das minhas células antes das sombras relaxarem e sobrevoarem o campo com delicadeza.

Era um lugar de entrega, de adoração.

Um lugar de sacrifício.

Meu lugar de sacrifício.

O poder ondulou dentro de mim quando a lua finalmente se pôs no ponto mais alto do céu, o fogo que chiava dançando no meio das pedras, reclamava pela falta de combustível, e isso fazia com que as chamas chicoteassem exigindo aquilo que eu havia me preparado para entregar a ele, o sacrifício da lua cheia, o sangue e o poder que eu havia roubado naquele mesmo dia mais cedo.

Ergui as mãos com uma longa respiração acima do peito e lancei essa mesma respiração em direção do fogo, ele brilhou e consumiu o último suspiro do sacrifício. Puxei a ponta da capa que cobria meu corpo completamente nu debaixo do tecido, deixei ela cair ao meu lado e girei nas pontas dos pés deixando sair cada um dos movimentos que foram feitos pelo meu corpo.

As sombras que agora tinham formado uma espessa nuvem ao redor do espaço, voltaram e se chocaram contra minha pele, consumindo e procurando onde havia cada um dos toques que absorvi, que permiti antes de roubar as forças da minha última vítima. A nuvem girou me tocando e absorvendo todo o prazer sofrido que o sacrifício me deu.

A chama chiou quando as sombras se afastaram do meu corpo para chocar contra ela, entregando a penúltima parte daquele simples ritual.

Enfim caminhei até as chamas vivas que giravam em torno de si própria, deixei que meus joelhos encontrasse o chão arenoso e deu um outro longo suspiro. Cortei com minha própria unha a ponta do meu indicador e não demorou para que o sangue fluísse por aquela fina fenda na minha pele. Olhei em volta chamando para dentro de mim novamente as sombras que me acompanhavam desde jovem e deixei que elas me invadissem antes das chamas reivindicarem o sangue, a última parte do ritual.

Um pequeno e fino tornado se moveu dentro da fogueira e direcionou a ponta para mim, eu já sabia o que fazer, elas sempre pediam o sangue que eu dava de bom grado em troca da sua força. Estiquei as mãos deixando as gotas escorrerem por meus dedos até que o redemoinho de fogo tocasse a ponta do meu dedo. O fogo subiu até o alto recebendo o que eu entregava e aos poucos as gotas de sangue encontraram a saída do meu corpo por aquela pequena fissura. O cheiro de cobre queimado subiu e a dor aguda acertou meu baixo ventre, uma pontada como se eu tivesse sido apunhalada por uma longa lança.

Meu corpo tremeu eu gritei.

O ritual estava feito.

Então apaguei.

...✸...

Sua entrega foi aceita.

Minha mente apitou. Era sempre assim, todos os meses eu era obrigada a subir para entregar um sacrifício que as sombras exigiam, e era sempre doloroso demais.

Eu não tinha muita escolha, sequer havia algo a não ser dar o que elas queriam. Todos os meses minha consciência me levava a violar a honra de algum humano, de quem quer que mostrasse algum tipo de poder. Quem sequer pensasse em virar os olhos em minha direção. Era como se aquele poder que reverberava dentro de mim decidisse e escolhesse o que queria, como se conseguisse sentir o sabor do sangue que gotejava das minhas veias.

Busquei a capa que estava jogada ao meu lado e me vesti, não foi uma escolha minha estar nua e sozinha no topo de uma baixa colina. Mas era impossível não gostar de todo o poder que eu sentia fluir pelas minhas veias, era como um líquido viscoso e prateado, como se fosse prata derretida e incandescente escorrendo por baixo da minha pele.

Respirei algumas vezes antes de voltar ao caminho que tomei para subir, um fôlego necessário para conter a energia e cultivar um pouco de paciência para encarar a realidade que me cercava.

Sthenyan ficava abaixo das colinas, entre dois picos salpicados por folhagens e se estendia por todo o continente, mas ali, onde as colinas formavam uma rara e singular fenda quase verdejante, era o pequeno coração dessa cidade.

Onde nasci e ainda assim não era meu lar.

A descida para a minha aldeia era tão cansativa quanto a subida, meus ossos rangiam pelo frio da manhã e isso tornava difícil se movimentar vestida apenas por uma capa.

Ao menos não era tão difícil quanto a máscara que usava e o próprio sacrifício que fazia, mas era necessário; tão necessário quanto o ódio que fervilhava dentro de mim. Era uma troca de favores, minha raiva tocava sutilmente aquele poder e ele se alimentava dos sacrifícios que eu entregava. Por mais que eu odiasse isso, essa moeda de troca me permitia me vingar e me deliciar com isso até a última gota.

Gotas de gritos.

Gotas de desespero.

Gotas de um prazer insano ao ver suas vidas sendo sugadas para dentro do meu ser.

O arco de folhas começavam a se abrir conforme a caminhada até Lyth diminuía, e todo esse trajeto sempre me trazia a memória como eu tinha perdido minha vida para essa tortuosa escuridão, como aquela noite tempestuosa de dor e desespero me trouxeram o poder que agora habita em mim.

Você foi escolhida. — O líquido de poder ondulou sussurrando.

Afastei aquela voz sibilante da minha cabeça, ela costumava me instigar e escolher suas próprias vítimas, me contando seus pecados, mostrando o quanto eram ruins; tão ruins quanto aquele homem no dia da grande tempestade.

Lyth era o gatilho, aquela aldeia dentro de Sthenyan era o ponto central das minhas dores e doces loucuras.

Todos os ciclos eram os mesmos, todo despontar de lua cheia trazia à tona todas as minhas dores. Minha mente trazia de volta cada uma das sensações que me tocaram naquela noite e talvez por isso eu tivesse forças para subir a colina e derramar meu sangue diante daquele ritual, aos pés do fogo incandescente.

Um passo após o outro e uma lembrança após a outra.

Viver ali… era o que eu tinha.

Tudo o que eu poderia ter desde que meu pai decidiu que eu não lhe servia mais e que me dar a um homem sem nome seria mais proveitoso, claro que sim, os recursos eram poucos e nada, nem mesmo toda a riqueza que ele pudesse querer faria com que me deixasse ficar em casa.

Foi nessa mesma noite que perdi minha inocência e dignidade, foi exatamente nesse mesmo dia que ganhei meus poderes.

A tempestade já tinha dado um sútil aviso de que naquela noite, traria o caos, eu só não sabia que seria tão poderosa assim.

Os ventos derrubaram casas e raios caíram em diversos pontos, tanto em Sthenyan quanto em Syth. Minha casa foi um desses lugares.

Enquanto eu me debatia e gritava, meus pais morriam queimados. Enquanto eu tentava desesperadamente sair debaixo daquele homem, me perguntando diversas vezes o que eu havia feito de errado, meus pais tinham a pele queimada até a morte.

Por sorte eu consegui fugir, não antes de deixar meu orgulho manchado naqueles lençóis sujos ou de me sentir tão suja quanto o barro dos porcos.

Mas consegui, e foi para a colina que recorri, o lugar onde até mesmo meus ancestrais temiam falar. Corri por esse mesmo caminho pedroso, onde o arco ainda não tinha florescido. Debaixo da chuva intensa da tempestade, até cair sobre os joelhos de frente para o núcleo de rochas.

Ele percebeu minha ausência de alguma forma naquela noite, mesmo debaixo do barulho daquela chuva, e me seguiu. Mas eu já havia aceitado meu destino, com as roupas sujas do chão misturadas com meu próprio sangue. Quando ele chegou à colina, eu já havia sido consumida pelas sombras, pela dor, pelo ódio que fervia dentro de mim. Então ele foi o primeiro. O primeiro a ser lançado ao fogo como um grande pedaço de carne, observei ele queimar e sua pele derreter até que sobrasse apenas queimaduras logo depois das sombras se enroscarem nele como uma serpente. Ele gritou quando começou a ser arrastado até as chamas que queimavam firmes mesmo debaixo da chuva.

Então, eu me libertei na mesma noite em que perdi tudo.

Dois

Eles estão perto. — As sombras murmuraram novamente.

Fechei ainda mais aquela capa de pele, fazendo ela virar um manto que descia até os pés. O arco já tinha chegado ao fim e as casas apareceram tomando todo o meu campo de visão.

Caminhei com a cabeça erguida, como sempre. Seguindo a rua de terra seca até o fim da aldeia, tentando não ligar para os olhares amedrontados e os olhares de nojo que me percorriam o corpo, afinal, tudo o que eles viam em mim, era uma bruxa pecadora.

Você é apenas uma mulher poderosa. — Ri com escárnio.

— Silêncio — calei a maldita voz insistente.

Essa voz mental e ondulante, petulante, se intrometia em meus pensamentos constantemente. Dizendo coisas ridículas e desnecessárias, tentando se fazer cada vez mais presente.

Um infortúnio.

Desde que todo esse poder se apossou do meu corpo, essa voz tem me assombrado dia e noite. Dizendo o que fazer, escolhendo suas vítimas e mostrando em imagens terríveis o que cada um que foi escolhido fez ou ainda iriam fazer. Me mostrava com detalhes os horrores que passavam por dentro dos olhos de cada um deles.

Era uma benção e uma maldição, pois as imagens dificilmente saíam de dentro da minha cabeça e demoravam dias para que eu conseguisse superar cada uma delas.

Ignorei os cochichos que sempre começavam quando eu passava pelo meio de Lyth, um presente que o poder me deu: conseguir finalmente ignorar o que diziam ou pensavam de mim.

— Você demorou essa manhã, Aylena. — suspirei tentando não revirar os olhos.

— Não devia estar aqui. — sibilei encarando Darlen de frente.

— Essa noite eu consegui ver as pontas das chamas de cima da minha casa, claro que meu pai me forçou a descer logo em seguida, mas...

— Mas você não deveria falar comigo a essa hora do dia e com tantas pessoas em volta. Por favor, Darlen, não quero ter que fazer seus pais como exemplo de novo.

Ela deixou escapar um sorriso malicioso tirando os cabelos dourados e compridos do pescoço esguio.

— Não me parece uma má ideia, eles têm merecido.

Parei minha caminhada para deixar que ela visse minha má vontade.

— Não comece.

— Por favor! — ela implorou subindo alguns terços de sua voz melodiosa e juntou as mãos — Me ensina, você prometeu. — apertei minhas mãos nas pontas da capa que ainda estava sobre mim e voltei a caminhar.

— Esqueça.

Deixe-me dar poder a ela.

Não. — Calei a voz insistente em minha cabeça.

— Eu não quero me casar! — Darlen gritou e pelos poucos anos que a conhecia sabia discernir o tom de desespero na voz aguda. — Será na próxima lua cheia e... Aylena... eu não estou pronta. — ela finalmente suspirou deixando os ombros caírem. — Quero ser como você.

— Não, você não quer! — Falei ainda mais alto, Darlen não sabia nem da metade das coisas que eu tenho que suportar apenas por abrigar essa coisa dentro de mim.

— Você não pode decidir por mim, isso não é justo!

Ela tinha razão, eu não podia decidir o que ela deveria ou não fazer de sua vida, mas dar essa maldição a ela... eu não podia fazer isso. Não quando ela tinha um teto e não precisava se rebaixar para ter comida em sua mesa, seus pais eram um dos poucos que tinham comércio naquele lugar. Vendiam carne seca e diversos tipos de pele, Darlen dizia que o pai dela comprava aquelas carcaças quando subia até Sthenyan de um caçador barateiro — o que sempre me surpreendia, peles não eram uma coisa tão barata nesse fim de mundo e ainda mais dentro daquela cidade.

— Não é mesmo justo, Darlen. — parei meu caminho antes de chegar em casa — Não foi justo para mim também e você, mais do que ninguém sabe disso — ela se calou e me virei para encará-la. — Se eu pudesse... se eu sequer tivesse tido algum tipo de escolha, eu não teria escolhido isso.

Não finja que não gosta...

NÃO! —Empurrei novamente aquela maldita voz para o fundo da minha mente, ela grunhiu para mim mas se calou.

— Ele vai acabar me matando...

— Então fuja — respondi com firmeza tentando não me deixar levar pela sombra de medo e dor que passou pelos olhos da minha única amiga dentro daquele lugar — arrume suas coisas e fuja para a cidade, tenho certeza que encontrará algo melhor lá, aqui... aqui não resta nada a você além de um casamento forçado e obrigações de uma esposa obediente.

Darlen fungou e expirou lentamente antes de fingir que não havíamos tido aquela conversa.

— Você deveria correr. — ela sorriu — O sacerdote está furioso.

Eu finalmente sorri antes de segurar a fechadura da porta da minha casa, pelo menos ela era desde que os donos fugiram para o outro lado das montanhas, acima do lago negro dizendo que eu acabaria destruindo Lyth algum dia. Talvez estivessem certos.

— Deixe que venham... — eu sorri com escárnio. — Tenho uma surpresa para ele.

Darlen sorriu e correu para o centro da vila, por um momento, enquanto via os cabelos dourados balançarem nas costas esguias dela, por esse breve momento eu cogitei, apenas pensei e nesse mesmo momento o poder ondulou dentro de mim querendo sair e senti o desejo aumentar para possuir a mente dela também.

Fechei a porta com força, não daria essa maldita dor a ela.

...✸...

Foram questões de minutos para que minha paz fosse arrancada de mim com batidas insistentes na minha porta e gritaria rouca, enlouquecida que demonstrava puro ódio e desprezo.

O sacerdote era apenas um homem religioso que me condenou no mesmo dia em que matei o homem que me machucou, dizendo que eu era uma mulher louca, uma feiticeira e bruxa que arrancaria os homens de suas casas e mulheres, que eu trazia o desgosto e desonra de sua Lyth querida. O homem velho que possuía pouco mais que o templo em que morava e alguns pelos brancos em sua barba comprida e espessa.

Ninguém tinha medo dele, nem mesmo os fiéis que diziam acreditar em suas palavras terríveis e deturpadas.

As batidas continuaram com desespero e raiva, eu podia sentir. Eu podia sentir cada um dos desejos e sentimentos que rondavam cada um dos homens que sequer pensassem em mim, de um jeito ou de outro, nem que fossem apenas pensamentos de ódio ou um simples olhar desinteressado. Eu conseguia descobrir o que se passava em seus corações perdidos e cheios de enganos, egoístas e desprezíveis.

Era exatamente o que eu sentia vindo daquele homem que se dizia puro, enviado por um deus que eu não conhecia, que não aceitava a minha existência de forma alguma. Um deus que desprezou minhas dores e as culpou e condenou. Talvez ele fosse um louco.

— AYLENA! — ouvi os gritos dos fundos de casa, pelo jeito tinham invadido por todos os lados dessa vez.

Era tão comum quanto os dias chuvosos, o sacerdote reunia alguns de seus fiéis e vinham até a minha casa para testar a minha paciência e meus poderes apenas para que pudessem provar que eu era uma bruxa maligna influenciada pelo demônio.

Senti as sombras rirem no fundo da minha mente com o pensamento. Mate-os. Ela cantarolou derramando uma generosa quantidade de poder em minhas veias. Ri com deboche, eu realmente podia matá-los, fazê-los sonhar noite após noite com seus maiores e piores pesadelos. Ou, poderia fazer com que seus maiores desejos, aqueles que eles escondem e tanto abominam nas outras pessoas se tornassem seus medos.

— Maldita bruxa! — bateram na porta.

Eu apenas suspirei e não me movi, minha pequena casa no fim da vila ficava próxima do litoral, do cheiro de água salgada. Fiquei sentada na cadeira torta, feita com galhos firmes e amarrados com corda tecida.

Não troquei de roupa quando cheguei, depois do aviso de Darlen, montei no rosto minha melhor máscara de coragem e deboche. Era o que eu vinha mostrando a todos ali desde que eles mesmos me deram essa função.

O sacerdote finalmente conseguiu abrir a porta depois de tanto bater contra ela, fazendo-a ranger pelo esforço.

— O que você fez ontem a noite, maldita? — ele gritou, eufórico e tomado por uma coragem de me enfrentar quase inacreditável.

— Nada demais — sorri colocando meus pés descalços sobre a mesa redonda que ficava no centro da casa.

— Não minta! — exigiu. — Ou farei com que seja queimada antes que consiga fazer mais um de seus feitiços.

Mesmo que todas aquelas palavras me doessem a alma, mesmo que me machucassem e me quebrassem em pedaços por dentro, eu não podia demonstrar, eu não podia deixar que vissem a maldita dor que me perseguia. Então puxei o laço da capa que a segurava no lugar e me levantei, deixei que ela caísse sobre meus pés.

O sacerdote arregalou os olhos enquanto seus seguidores murmuravam e soltavam palavras de repreensão, seguindo caminhando lentamente pela madeira desgastada que formava o chão da minha casa em direção a ele.

— Não fiz nada do que eu já não tivesse feito antes, Egal. — sorri enquanto o sacerdote se afastava.

Não fiz questão de me vestir quando Darlen me avisou sobre a ira dele, não iria adiantar fingir que nada aconteceu, Egal era um sacerdote esperto demais para ser passado para trás e eu realmente não queria ter que lidar com ele mais tarde.

Eu ainda estava nua e isso fez com que ele me olhasse da cabeça aos pés, inconformado com minha coragem.

— Se afaste! — ele gritou e eu apenas continuei me aproximando até que ele estivesse tão próximo da porta que faltava apenas um passo para sair de dentro da minha casa.

— Achei que queria saber o que eu fiz ontem, caro Egal... — sorri com deboche para ele. — Deixe-me te mostrar... — dei um passo ainda maior, fechando a distância entre nós.

Eu pude vê-lo puxar o ar para os pulmões com rapidez e seu rosto ficar de um vermelho quase brilhante.

— Saia de perto dele! — um de seus fiéis ajudantes gritou, ele estava com a voz levemente trêmula e dava para perceber por causa do silêncio que tomou minha casa quando eu estava tão perto de Egal que a ponta dos meus seios tocavam em sua túnica.

— Sa... saia, louca! — Egal ofegou.

Raspei minhas unhas em sua túnica desbotada, sorrindo perversa enquanto ele tremia. Egal tentou puxar mais uma lufada de ar antes que eu colasse ainda mais meu corpo contra o dele, fazendo meus seios apertarem contra o tecido poroso.

— Não quer mesmo saber o que eu fiz ontem, Egal? — murmurei me aproximando de seu ouvido enquanto eu puxava uma das mechas do meu cabelo para brincar entre os dedos — Talvez... talvez se eu realmente te mostrasse, esse seu mau humor finalmente fosse embora.

Fingi um riso tímido ainda brincando com as mechas laranjas quase como o cobre que meus cabelos tinham.

— Egal... — ronronei seu nome e ele caiu porta afora da minha casa quando tentou se livrar da minha presença.

Pare. — As sombras rosnaram em minha mente e eu as afastei.

— VOCÊ VAI QUEIMAR AYLENA! — Egal gritou e correu, seguido dos fiéis companheiros — MALDITA!

Eu apoiei o ombro na porta rindo, enquanto eles fugiam pelo caminho de volta ao centro da vila.

Minha... — Ouvi novamente no fundo da minha mente.

E não, eu não pertencia a essa maldição, toda essa dor que me perseguia não era para mim. Afoguei os rosnados do poder no mais profundo da minha mente antes de voltar para dentro de casa e bater a porta logo atrás de mim, eu estava cansada demais para lutar contra mim mesma.

Três

Os dias passaram lentamente desde o inconveniente com Egal, sendo sacerdote ou não, ele provavelmente estaria se corroendo por dentro neste exato momento.

Darlen finalmente sossegou depois daquela breve conversa no meio da vila, por mais que fosse ser útil para ela, a parte de mim que ainda amava viver e amava a vida como ela deveria ter sido para mim e para ela, não permitia que eu a condenasse de tal forma.

Levaram bons anos para que eu conseguisse me recuperar do ódio e do nojo da minha própria pele, do cheiro que ficou em mim durante semanas inteiras. O suor noturno e diversas marcas arroxeadas duraram dias, minha mente… ela ainda não tinha se recuperado.

Durante os dias em que eu não era obrigada a caçar uma nova vítima azarenta, eu me forçava a passar horas mexendo em uma pequena horta que fiz nos fundos daquela casa. Vasos de barro e a própria terra no chão eram cobertas por hortaliças e vegetais, a maioria deles peguei alguns meses depois de desistir da casa queimada dos meus pais. Roubei aquilo que conseguia replantar e montei minha própria horta.

Não era nada que pudesse me trazer fartura algum dia, no entanto, conseguia matar a fome quando batia na porta. Carnes e peles eu conseguia comprar apenas por vender um pouco do que conseguia produzir sozinha, haviam dias que eu trocava apenas para me saciar de um pedaço de cordeiro ou até mesmo de coelho.

O que também não era muito, pois os caçadores da vila não saíam distribuindo a preços baratos toda a peça. Eles tiravam as melhores partes para si e vendiam as sobras, era uma maldita escassez.

Nos dias mais quentes, a vila descia para o litoral e acampavam no pé da montanha onde conseguiam pescar e suprir um pouco do que lhes faltava de carne.

Mas eu não.

Eu era uma mulher exilada, desde os meus dezoito anos vivi sozinha e perdida naquela escuridão que permitiram me engolir. Meus cabelos sempre foram um fardo para os meus pais, a cor, o volume que eles tinham eram motivo para desgostarem de mim. Diziam que os portadores daquelas cores tinham um destino terrível, traçado e marcado pela dor e até mesmo a própria desgraça.

Eles pareciam estar certos.

Peguei um dos baldes que ainda conseguiam segurar água suficiente para regar o pouco de folhagem que ainda crescia naquela horta, o poço ficava no meio da vila e todos que moravam ali e aos arredores podiam retirar um pouco dele. Novamente, menos eu.

Os olhos acusadores e furiosos acompanhavam todos os meus movimentos, desde amarrar a corda em volta do ferro e da madeira, até descer a corda para finalmente enchê-lo. Ignorei cada um deles como se não existissem, puxei a corda até que pude me ver refletida nas ondas da água escura.

Os olhos pretos e cansados, o rosto magro coberto por sardas finas e evidentes. Detalhes que me transformavam pouco a pouco na bruxa que eles haviam inventado, mas eu sequer passava de uma maltrapilha, as roupas mal serviam em mim e a outra parte que consegui salvar das madeiras queimadas da antiga casa, estavam pequenas e deixavam meu corpo quase em evidência.

Deveria ter sido queimada junto com os pais. Suspirei enquanto puxava a corda para poder desamarrar o balde. Não fale besteiras, quer que ela amaldiçoe você?. Mordi os lábios tentando como sempre — e quase falhando — não me deixar abalar. Ficou sabendo que ela tentou levar o sacerdote para a cama?. Eu ri e mantive meu queixo erguido quando me levantei da beirada do poço. Ela tentou seduzi-lo.

O burburinho continuou até que eu me virei para encarar o círculo de mulheres que haviam se formado do outro lado, na direção contrária da minha casa. Elas pararam assim que sorri e me curvei como uma longa reverência mostrando todo o decote — que não era intencional — que mostrava a superfície macia.

Não as provoque. — O poder ondulou me alertando, eu mordi o lábio tentando não xingar aquele som na minha mente em voz alta e não parecer ainda mais louca do que elas achavam. — Muito bem, menina esperta.

Deixei minhas palavras de ódio para elas de lado e me recompus, a maldita voz tinha razão e eu não tinha energia para me desgastar sendo quem eles criaram em suas cabeças.

Boa menina. — Pigarreei ignorando minha própria mente. Eu não tinha idade mais para perder meu tempo discutindo com a maldita voz na minha cabeça.

Não seja hipócrita, nós dois sabemos muito bem o quanto você aprecia meus elogios. — Fingi não ter ouvido e continuei meu caminho para casa, já tinha intimidade demais com essa voz para deixar que me influenciasse agora, seis anos foram suficientes.

Eu estava exausta de tudo o que vivi todos esses anos e abrir uma brecha para que me provocassem… seria um pedido para que o sacerdote voltasse a minha casa, e eu não teria escolha; Mostrar a ele que não era sábio mexer comigo e isso daria a ele mais motivos de colherem madeiras para a minha fogueira.

Isso não irá acontecer. — Talvez não. Pensei enquanto caminhava ferindo a sola dos meus pés com o caminho irregular.

Eu já fui ameaçada diversas vezes, não só pelos fiéis que seguiam o sacerdote, como pelas mulheres que imaginavam, em suas cabeças pouco inteligentes, que eu ocupava meu tempo tramando para roubar seus homens. Lembrar das palavras desacreditadas de Darlen me fazia sorrir.

“Eliz e Carmen estavam fofocando para a minha mãe,ela ria empolgada com os pés para cima da minha cama,as duas disseram assim: "inacreditável, como posso ficar tranquila quando meu marido sai para caçar, ainda mais em noites de lua cheia, sabendo que ela anda por ai nessas noites a procura de homens para se satisfazer?”

Eu mesma fiquei impressionada com a imaginação fertil dessas mulheres quando Darlen veio me contar.

“Então Carmen concordou e falou para a minha mãe: “E eu? Secretamente, tenho que usar roupas vulgares para o meu marido para que ele pare de comentar dos peitos daquela bruxa.” Aylena, eu gargalhei no fundo da venda e minha mãe teve que jogar um pedaço da maçã que comia para que eu parasse de rir.”

No mesmo dia, lembro-me de tocar em meus próprios seios na tentativa de descobrir se eram realmente tão grandes e chamativos quanto diziam. No entanto, eles sequer conseguiam encher os vestidos que eu comprava mais barato com Darlen — escondido, claro, dos pais dela.

Deixei o balde cheio de água em cima da madeira desgastada da entrada de casa enquanto tentava abrir a maldita porta emperrada.

Fuja, agora! — Minha mente ondulou, mas a ignorei como sempre fazia.

Eu não fingia que não a ouvia todas as vezes, também a ignorava constantemente. Às vezes, essa mesma voz me enlouquecia e conseguia mexer com partes de mim que não eram de sua conta, então, aprendi como silenciá-la e ignorá-la quando fosse necessário.

O que acontecia diversas vezes durante o dia.

Aylena…

Abri a porta e puxei o balde cheio para dentro, eu tinha muitas coisas para fazer além de fazer todas as suas vontades.

— Sua hora de pagar chegou, Aylena…— ouvi a voz de Egal sibilar assim que fechei a porta atrás de mim.

Por mais que eu imaginasse que ele estava quieto por tempo demais desde o que aconteceu aqui, nessa mesma sala caindo aos pedaços, eu sequer cheguei a imaginar o quanto ele poderia ir tão longe assim.

Egal sorria, um sorriso estranhamente satisfeito e cruel.

Com os braços cruzados na altura do peito magro e esquelético, ele sorria vitorioso. Haviam homens por todos os lados, vestidos com armaduras, cobertos com ferro brilhante e polido, empunhavam espadas em suas cinturas e permaneceram firmes em seus lugares acompanhando meus pequenos movimentos.

— O que fazem em minha casa? — fui direta, sabia que não poderia fazer nada além de encará-los e falar, qualquer movimento poderia ser uma sentença de morte.

— A senhorita está sendo acusada de bruxaria — gesticulou um dos homens, com uma sutil capa azul escuro, adornada de linhas douradas e entrelaçadas em suas bordas — e pelo que parece, — o homem apontou para todo o espaço desgastado da minha casa. — este homem religioso está certo.

Aylena… — O poder chiou dentro de mim.

Eu comecei a rir.

Não foi qualquer riso, surgiu de dentro de mim uma vontade intensa de gargalhar. Eu não sabia dizer se era de desespero ou se era por incredulidade, no entanto, não importava.

Os homens arrumaram suas posições como se esperassem um ataque meu, como se essa magia que eles inventaram realmente existisse e os fosse atingir a qualquer momento. Mas isso não aconteceu, eu não era uma bruxa e nunca fui.

Ainda assim, senti meus ossos começarem a tremer e aquele mesmo poder que invadia meu corpo nos dias que eu subia a colina se revirou dentro de mim. E dessa vez não era para aceitar aquilo que eu levava para entregar ao fogo, não era o poder excitado para consumir os gritos que eu absorvia nos momentos em que os escolhidos descobriam que iriam morrer.

Era ódio, uma raiva intensa que não chegava aos pés do que esse mesmo poder sentia quando eu precisava estar nua em cima das vítimas, absorvendo sua vida enquanto eles me tocavam com luxúria.

— Desgracado! — chiei e assustei com o som que saiu do fundo da minha garganta, grossa, parecia que haviam duas pessoas falando.

Os homens me olharam como se houvesse um monstro diante deles, com os olhos arregalados, quase pulavam de suas órbitas. Suas espadas estavam apontadas para mim na tentativa de me afastar.

Eu quero todos... cada um deles. — O poder aumentou em minha mente e eu estava disposta a dar, a me submeter para que pudesse ouvi-los gritar, um por um, até que sobrasse Egal, sozinho e cheirando a medo.

— Inferno — Egal finalmente falou chamando minha atenção, saindo do transe de medo e surpresa que todos estavam — essa mulher tem pacto com os demônios dessa terra! Prendam-na! A atirem no fogo!

Os homens avançaram e eu não tinha nada em minhas mãos para me defender. As sombras que me acompanhavam nos rituais não passavam de uma fumaça que surgia para receber o sangue cheio de morte que fluía em minha veia, nunca as vi no momento em que os homens me tocavam imaginando que me teriam em suas camas e não houve um dia sequer que obtive poder real para seduzi-los até que eles me convidassem para as suas casas.

Mas ali era diferente, meus dedos queimaram e de suas pontas jorrou um líquido preto e viscoso. Minhas entranhas reclamaram pelo esforço e cada um de meus tendões doeram.

Aguente, menina. — Aquela voz me incentivou.

Me lembrei de respirar apenas por sentir os pulmões arderem, fechei os olhos mesmo sabendo que poderiam me alcançar a qualquer momento e finalmente arrancar de mim toda aquela dor.

Foque em um!

Abri os olhos como se soubesse o que fazer e foquei em um... apenas um, aquele que me envergonhou durante anos, que transforma meu dia a dia num inferno infinito.

Egal gritou e o líquido viscoso explodiu se transformando em uma fumaça preta, os homens ao redor paralisaram enquanto Egal era tomado por um redemoinho de nuvens negras. Ninguém conseguia falar, eu ouvia apenas grunhidos e resmungos desesperados enquanto eles eram cobertos por uma massa densa e pegajosa que flutuava ao redor de cada um.

Mas com o sacerdote... meu sorriso voltou quando me aproximei o suficiente para ver meu reflexo nos olhos castanhos.

— Me dê seu sangue. — a voz que murmurava em meus pensamentos ronronou, como se flutuasse ao redor dos homens, entranhado naquela fumaça densa. — Mentirosos e hipócritas morrem engasgados pelo próprio sangue...— a voz grave riu e ondulou. — mentem sobre seus pecados... mentem sobre suas conquistas... mentem sobre jovens que você salvou... — eu não tinha palavras, eu não conseguia abrir meus lábios enquanto me via refletida naqueles olhos assustados. — mente sobre como os achou, machucados e sozinhos, saberão sobre você... mentiroso...

Egal ofegou e engasgou quando o sangue começou a sair por seus lábios finos, a voz que desde o início, desde que havia me tomado para si, agora ria satisfeita enquanto o sacerdote me implorava com os olhos por socorro.

O sangue pingava na madeira rachada do piso e escorria para entre os vãos manchando e respingando em meu vestido, o verde musgo desbotado agora ganhara uma borda pegajosa de sangue enquanto Egal soluçava sem conseguir puxar o ar que tanto precisava para respirar.

— Me dê o sangue dele, menina — a voz pediu novamente. — Me dê pecados.

Eu avancei sobre o sacerdote, como se estivesse tomando para mim sua vida da mesma forma que fazia com os homens em suas camas. Apertei o pescoço grosso coberto por pelos mesclados entre brancos e pretos, isso era o poder, isso era a sombra que desejava loucamente cada sacrifício que eu lhe entregava. Elas viam tudo, sabiam de seus desejos mais íntimos e obscuros, cada um deles.

Sorri finalmente vendo o medo esvair assim como a vida que existia nos olhos castanhos, Egal revirou os olhos mas não antes de me deixar ver os meus próprios olhos sendo refletidos ali. Minhas órbitas pareciam queimar e emanar a mesma fumaça densa que vazaram pelas pontas dos meus dedos, mas pareciam sangue e flutuavam vazando para fora de mim.

— Boa garota — o poder tremulou e cobriu o corpo inteiro do sacerdote assim que ele terminou de esconder os olhos dentro das pálpebras abertas. — está feito.

Então desmaiei.

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