Fomos levadas por várias horas até que o sol se pusesse na linha visível atrás das árvores altas. Darlen permaneceu quieta desde que prometi que a tiraria dali, eu também decidi não aumentar o ódio que cada um dos guardas parecia transpirar.
Não baixe a guarda.
— Eu sei… — murmurei para aquela voz insistente.
Talvez eu estivesse finalmente aceitando a loucura que era ouvi-lo constantemente. Antes de toda aquela situação com Egal, essa voz não parecia passar de um sussurro da minha própria voz e agora, parecia ter se tornado ainda mais presente, palpável, quente, real.
Não os mate ou será morta.
— Também já sei disso — cocei os olhos finalmente me levantando do feno.
Menina esperta. — Dessa vez eu bufei, os guardas me olharam com desdém antes de finalmente pararem numa clareira.
Eles sequer se importaram de nos tirar de dentro das gaiolas, cada um montou uma pequena tenda e logo após uma fogueira. Longe de nós, longe o suficiente para que o que nos tocava era apenas o frio do início da noite.
Darlen tremia e batia os dentes antes mesmo de a noite tomar todo o céu, os guardas comiam e bebiam sem se importarem e olhar para trás, onde estávamos, sozinhas e presas com a companhia de apenas um pouco de feno.
Eu suspeitava que estávamos perto o suficiente da cidade, as árvores eram mais curtas e o caminho que parecia ser aberto estava completamente limpo. Até onde eu podia enxergar, a estrada de terra seguia em frente até sumir em uma curva fechada para a esquerda. Mas ainda assim, sem poder ver muito além do topo das árvores onde acabava o limite do meu horizonte, a força da iluminação da cidade deixava tudo um pouco mais claro.
Deixe-me aquecê-las. — Um fraco tremor passou pelo meu corpo. — Permita que eu saia.
O frio me tomava também, meus pelos estavam arrepiados a ponto da pele doer. Meu vestido não era tão bom quanto o de Darlen, mas eu já estava acostumada a essa temperatura, havia passado muito tempo em rituais acima da colina para temer tanto o frio assim.
Não seja teimosa. — Eu bufei, talvez eu estivesse realmente ficando louca. — Aylena.
Talvez não fosse tão ruim assim, talvez sequer os guardas perceberiam a quantidade escura e densa do poder que tremularia para fora de mim enquanto ela fazia o que quer que fosse para nos aquecer. Suspirei tentando relaxar o corpo e parar de tremer, o poder riu no fundo da minha mente.
Os guardas conversavam em volta da fogueira e não se deram o trabalho para olhar em nossa direção, crentes de que não fugiremos para o meio de uma floresta escura e fria, esqueceram que existíamos. Pouco a pouco as sombras vazaram das pontas dos meus dedos, fluindo como se fosse fumaça de uma fogueira recém apagada. Mesmo que os homens tentassem enxergar, não veriam nada além de escuridão comum e duas mulheres presas em jaulas pequenas em cima de uma carroça aos pedaços.
Pouco a pouco ela fluiu até a gaiola de Darlen formando abaixo da carroça um aglomerado de escuridão e lentamente subiram até alcançar as beiradas vazadas entre as barras de ferro. Darlen soluçou e se encolheu no fundo tentando fugir do toque morno e desconhecido do poder que transbordava dos meus dedos, ela olhou para mim assustada a ponto de gritar.
— Não… — sussurrei.
Ela respirava com dificuldade olhando rápido das sombras que aguardavam sua autorização para mim, eu acenei tentando encorajá-la. Darlen fechou os olhos com força e exalou uma quantidade exagerada de ar, parecia que ela estava guardando aquilo a muito e muito tempo. Os olhos claros dela mostravam o medo que estava sentindo, não só daquela coisa desconhecida que queria tocá-la, mas de estar presa em um lugar desconhecido por minha causa.
Darlen soltou o corpo aos poucos e lentamente esticou os dedos para tocar naquela massa escura que estava aglomerada agora no canto de sua jaula, lentamente, ela se envolveu nos dedos claros e serpenteou pelo braço desnudo. Darlen estremeceu e suspirou quando o manto escuro havia envolvido todo o seu corpo.
Eu nunca tinha visto isso, não havia lembrança alguma nesses anos que esse poder esteve dentro de mim que tivesse me mostrado algo como isso.
Sobreviveu a noites frias na colina… — Ele murmurou trazendo o mesmo calor que tinha me feito sentir antes de eu quase entrar em desespero. — Sobreviveu a noites de inverno…
Eu realmente não havia morrido, na verdade, sequer me lembro de ter sentido frio a ponto de imaginar que morreria. Abracei meus joelhos tentando não imaginar como eu deveria ter sido encontrada naquela cabana velha, morta, congelada pelos dias e noites frios que devastaram Syth. Algumas crianças morreram nessa época e velhos acordaram congelados, eu poderia ter sido um deles.
Por que? — Murmurei mais para mim mesma do que para os tentáculos de sombras que contornavam meu corpo e de Darlen, nos aquecendo.
Porque seu corpo também é meu, menina.
Afastei a lógica desse pensamento, haviam tantas coisas para me preocupar e debater com as vozes da minha cabeça que não me fariam sobreviver, pelo menos, não aqui.
...✸...
A noite passou rápido depois que finalmente conseguimos dormir, Darlen não disse nada depois que o sol nos acordou, batendo em nossos olhos. Ficamos em silêncio até que os guardas decidiram desfazer as barracas e nos ignorarem completamente.
A carroça começou a se movimentar um pouco depois, um grupo seguia na frente e um outro grupo atrás, nos vigiando, tentando encontrar algo suspeito em nós, algo que lhes dessem ainda mais motivos para nos odiar.
Seguimos o caminho de terra até o som constante de crianças e pessoas surgissem, vozes intensas e gritos animados. Era o início da cidade, eu sabia disso, mesmo nunca, em toda a minha vida, tivesse passado por ela. Darlen estava um pouco mais a frente que eu e mesmo assim eu conseguia ver os olhos claros impressionados com o barulho constante e totalmente diferente de Syth, o pai nunca a levou para as suas viagens, nunca deixou que saísse dos limites da vila na verdade, então, tudo era uma grande novidade.
Todos pareciam esperar por aqueles homens que nos carregavam, gritando e sorrindo, parte das pessoas começaram a seguir as duas carroças. Parte das outras pessoas apenas pegaram seus filhos e entraram para dentro de suas casas, talvez por medo ou até mesmo por não quererem estar aqui quando estivessem se preparando para nos matar.
Eu já sabia o que estava acontecendo ali, eu já sabia o motivo das pessoas estarem animadas e gritando coisas que as crianças não deveriam ouvir.
Paramos no centro de um pátio, a multidão estava ao redor das nossas carroças e os guardas nos rodearam. Não era para a nossa proteção, não era para que pudéssemos sair em segurança para o que tinham reservado para nós duas, fora apenas para que não nos matassem antes mesmo que pudéssemos sair de dentro daquela gaiola suja.
Eu não conseguia ver além das pessoas ao redor com os rostos cobertos em desgosto, meu limite de visão acabava no meio da multidão e então começava o teto de ferro. Darlen foi a primeira a ser tirada de dentro das grades, um guarda franzino e desajeitado destrancou o cadeado tremendo e logo outros dois o seguiram para forçar a saída daquela pobre mulher para fora dali.
— Me soltem! Malditos, eu não fiz nada! — Darlen se debateu tentando se soltar do aperto dos guardas.
— Quieta, puta! — um dos guardas a estapeou e Darlen se encolheu quase sumindo do meu campo de visão.
Aqui não! — Minha mente gritou, mas eu não queria ter sequer ouvido. Senti meu corpo tremer com raiva. — Aylena! NÃO!
Meu corpo começou a formigar, minha pele ardia e eu o queria. Aquele maldito guarda que agora arrastava Darlen pelo cotovelo para longe de onde eu pudesse a acompanhar. Dessa vez não era a droga do poder dentro de mim, não era a fome de homens mentirosos e abusadores, era o meu próprio ódio e desejo de ver os olhos daquele porco perder a vida segundo a segundo enquanto o via morrer.
— Sua vez… — um dos guardas sorriu chamando a minha atenção para o cadeado pesado que o franzino estava abrindo — Acho bom não dar trabalho igual a outra, ou eu mesmo…
As pessoas em volta gritaram sorrindo olhando para o lado contrário de onde eu estava, dois dos guardas puxaram meus pés para finalmente me tirar daquele lugar apertado e podre. O franzino se afastou tremendo assim que conseguiram me colocar na ponta dos pés, com medo, sorri para ele marcando cada um dos malditos rostos que passaram por mim. Cada um deles.
O chão nivelado de pedra seguia por todo o pátio, as vozes não bloqueavam a visão das casas de pedra erguidas em volta, era um lugar tão melhor fisicamente de Syth, com suas ruas de barro e casas montadas por madeiras descascadas. Todas as casas eram próximas umas das outras e o pátio guardava uma pequena fonte no centro, nada escandaloso como o pai de Darlen costumava contar, era apenas um chafariz pequeno no centro de uma fonte redonda.
Ruas e ruas bifurcavam as casas, às vezes como vielas e às vezes tão largas que precisariam de três das carroças que nos levaram até ali. Mas o que me fez perder o fôlego não foi a vista linda das montanhas ao redor daquela cidade, nem mesmo os picos cobertos por nuvens e folhagens ou até mesmo o palácio que tomava o centro da cidade e subia por um pouco de uma das montanhas. Eram as duas piras erguidas ao redor de um largo tronco de madeira.
Darlen estava em cima de uma delas, presa e com a roupa suja da noite ruim dormindo dentro daquela maldita jaula, os cabelos dourados embaraçados e opacos caiam por parte dos ombros. Era uma cena terrível e as pessoas ao redor gritavam animadas para que um dos guardas acendesse logo a palha de início, incitando a morte de uma mulher inocente.
Fui arrastada para os degraus improvisados pela madeira que provavelmente também seria queimada e nada, nem mesmo a sensação horrorosa de estar subindo naquele lugar ultrapassava a dor de ver Darlen com os olhos desesperados em minha direção.
— Ay… — ela chorou e eu preferia morrer ao ouvi-la daquela forma.
Eu não estava mais ouvindo os sons insistentes da minha cabeça e tudo o que me consumia a mente eram os olhos claros cheio de dor dela, Darlen chorava baixinho ainda tentando se soltar, tremendo pelo medo que também me consumia.
Ela olhou para mim antes de um homem bem vestido com uma grossa capa azul, tão brilhante que faria as estrelas perderem a graça. Darlen tinha o rosto machucado, marcas da mão coberta pela armadura do homem que a machucou. Foi a gota que me fez transbordar.
Meus ossos doeram quando meu corpo aqueceu sem aviso, uma enorme nuvem explodiu dos meus dedos e tomou a visão de todos que esperavam pelo show. As pessoas gritaram e eu não conseguia ver nada além do espaço escuro e denso que girava ao meu redor e ao de Darlen.
— Prendam-na logo! — gritaram debaixo da nuvem — Acendam a outra!
— NÃO! — eu gritei e a fumaça rodopiou e mergulhou se transformando em um tentáculo gigante de poder negro e denso.
— Rápido!
Meus braços foram puxados para trás da madeira com força mas a nuvem chiou e deslizou por meus braços até encontrar os guardas que tentavam me segurar, mas ainda eram muitos.
Me debati até meus braços doeram, as sombras chicotearam contra os guardas rasgando a pele desprotegida do rosto, mas não me soltaram, apertaram a corda em meus pulsos enquanto as sombras chiavam e rosnavam contra eles.
Eu talvez não tivesse escapatória, talvez Darlen morreria inocentemente por minha culpa e eu seria condenada juntamente com ela por sermos culpadas por uma coisa que nunca fomos. Fechei os olhos sentindo todo o poder rasgar e tocar quem podia alcançar e suspirei, talvez eu não alcançasse a todos, mas machucaria quantos pudesse para vingá-la.
— Soltem-nas, agora! — a voz alta e masculina fez com que os gritos parassem — Eu disse: AGORA!
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Atualizado até capítulo 106
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