A Observadora Do Morro
A chuva caía torrencialmente naquela parte da cidade e Letícia contemplava pela janela, aquele bravo fenômeno da natureza. Estava só, mas não se incomodava com os respingos que a molhavam por causa da janela aberta. Tudo que queria, era desfrutar da delícia e do frescor daquele momento. Aprendeu a amar a chuva, quando era pequena e ficava de pé na mureta da varanda da casa de seus pais, protegida pela laje da antiga casa. Observava a chuva caindo através da luz do poste de rua, percebendo através da escuridão da noite.
Um relâmpago riscou o céu.
Ela estava olhando o alto do morro e teve um vislumbre, pela claridade do relâmpago, de uma carroça despencando do alto do morro. O relâmpago parecia ter caído por lá. Será que estava vendo coisas? A escuridão, agora, cobria tudo e para completar, a luz acabou.
Entre o condomínio e o morro, tem uma rua de mão dupla, que facilita a passagem entre bairros, por entre os morros que rodeiam os vários quartéis militares. E depois da rua, era o final do cemitério parque Jardim da Saudade. Quase não se dizia ser um cemitério, pois não tinha lápides. Se uma carroça realmente despencou lá de cima do morro, ninguém notou, talvez só ela.
**
— Que temporal da porra, tinha que cair justo hoje? — disse Nico, um jovem mulato, magro e cheio de tatuagens e piercings.
— Para de reclamá e me ajuda, a carroça podemo pegá amanhã, mas a carga tem que sê agora. — disse Jairo, que era mais velho e tio de Nico. O "coveiro" do Dono ou morro.
Nico ajudava seu tio em troca de uns trocados, mas não gostava de se envolver naquilo. Era um rapaz forte, mas apesar de sempre ser requisitado para esses serviços, estava se preparando para fazer o vestibular e não queria ser qualquer coisa não, queria estudar medicina para ser doutor.
Os dois desceram, escorregando pelo mato e se apoiando nas trilhas de bois e vacas que costumavam pastar naquele lado do morro. Chegaram na carga e o tio verificou se estava bem amarrado e chamou Nico:
— Segura a ponta de lá, que seguro a daqui e vamo seguí em frente.
— Vai ser punk, quero ganhar em dobro, hoje.
— Vai sonhano, a chuva não vai me dá gorjeta, por causa de que, eu tem que dá algo mais pra você?
— Que servicinho do caralho! Vê se não me chama mais pra essa porra, mesmo precisando da grana, é muito pouco pra tanta insalubridade.
— Aeeeee, sobrinho, tá aprendendo a falá difícil é?
— É o salário do posto, eles pagam essa tal insalubridade.
— Deve ser pro causo do posto explodi ou pegá fogo e você ir junto – falou o tio, dando risada e precisou parar pois desequilibrou.
Chegaram em seu destino, depois da longa hora, escorregaram e caíram várias vezes e Nico estava para lá de aborrecido. Teria que levantar cedo no dia seguinte e duvidava muito que conseguiria descansar. Ouvira dizer que outra carga estava chegando e era muito perigoso. Se a polícia descobrisse, seria tiroteio na certa e se não, eram tiros ou fogos de artifício, para avisar.
De qualquer forma, eles esperavam poder tomar um banho quente quando voltassem, o que estava difícil de ter, porque a luz não voltou no morro, só do outro lado. Precisaram andar uma boa distância e demoraram muito mais do que o normal, tudo por causa daquela chuva que Letícia gostava tanto.
Voltaram para casa, chegando de madrugada e deram graças a Deus, pela energia ter voltado, mas mesmo assim, Nico tomou banho gelado mesmo. Deixou seu tio ir tomar banho primeiro e para não demorar muito a deitar e dormir, tomou banho de balde com a água do tanque mesmo. Terminou de tirar toda a lama do corpo e se ensaboou com sabão em pedra, secou-se e finalmente pode deitar e dormir.
Era o que pensava, pois não contava com a safada da sua prima se enfiando debaixo dos lençóis com ele e estava nua.
— Vasa daqui, Shirley! Tô morrendo de sono, cai fora.
— Puxa, Nico! Tô prontinha pra você… — miou a cadela, como ele a chamava.
— Se você não sair, vou te dar um chute.
— Duvido… — a voz de gatinha manhosa, o irritava mais ainda.
Ele puxou o lençol por sobre seu corpo, que também estava nu e empurrou ela pra fora da cama de solteiro, com os dois pés. O tombo só não foi grande, por que a cama era baixa, mas ela deu um gritinho e gemeu.
— Puxa, Nico…eu cheia de amor pra dar e você me trata desse jeito.
— Pode ir se fuder com esse amor, em outra freguesia, tchau. — ficou de bruços, de cara virada para a parede e quase imediatamente dormiu.
Shirley saiu do quarto vestindo uma camisola fina e topou com seu pai, que lhe tacou logo a mão na cara.
— Para de sê oferecida, sua moleca, para de perturbar teu primo, vá pro seu quarto.
Ela nem falou nada, com a mão no rosto, marchou em direção ao seu quarto e bateu a porta, assustando Nico, mas não o tirando do sono pesado que já estava.
**
Do outro lado do morro, Letícia já estava dormindo. Sua mãe chegou do trabalho, depois de um plantão de 24 horas no pronto socorro do hospital, estava exausta e molhada. Tomou um banho, comeu a sopa que Letícia fez e foi dormir o sono dos justos. Amava muito sua filha, pois eram só as duas, depois do acidente que vitimou o marido e o filho mais velho, em uma patrulha na cidade. Os dois eram polícias e estavam saindo do serviço, quando tudo aconteceu.
Ossos do ofício, diziam.
Mas só quem passa é quem sabe o sofrimento que é para a família de um policial, no caso dela, dois. Pai e filho. Agora era só mãe e filha. Uma enfermeira e a outra, professora, estudando para o vestibular, queria ser médica. Uma profissão inglória, mas era o que Letícia queria, fazer o quê? Trabalhar para que ela não se sacrificasse tanto. O emprego na escolinha primária da vizinhança, cobria só os gastos pessoais dela e o cursinho.
Estavam agora dormindo, pelo menos, no dia seguinte, poderiam dormir até mais tarde, se o filho do vizinho de cima não começasse a gritar e pular pelo apartamento desde cedo.
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Atualizado até capítulo 73
Comments
Maria Helena Macedo e Silva
será que o tio do Nico tem algo haver com o acidente que vitimizou o pai e irmão da Letícia🤔 aí os predestinam um ao outro.
2024-08-29
1
Maria Helena Macedo e Silva
começando a leitura de mais uma obra📖
continuando a maratona e aventura nas emoções da leitura😉
2024-08-29
1
TRAIÇÃO NÃO TEM PERDÃO
Boa
2024-08-10
2