A Terceira Herdeira
O sol estava no meio do céu, brilhante e morno. A brisa gelada do fim do inverno agitava os lençóis no varal. Coraline andava lentamente, tentando fazer o mínimo de barulho ao pisar na grama úmida. Suas botas pouco ajudavam na tarefa. Viu um vulto passar a alguns metros de distância e se apressou, puxando o lençol e sorrindo.
— Te encontrei, Elara! — exclamou para o nada.
— Perdeeeu! — sua irmã mostrou a língua passando por trás dela e correu em direção à árvore frondosa onde a brincadeira começara. Cora tentou alcançá-la, mas antes que ambas pudessem chegar ao tronco, um corpo voou dentre os galhos.
— As duas perderam! — sorriu Fiona, triunfante.
— Trapaceira! Você ficou o tempo todo na linha de chegada! — Elara inflou as bochechas. Fiona deu de ombros.
— Ninguém disse que não podia.
— Você é uma raposa ardilosa, Fiona — Cora cerrou os olhos, mas a outra apenas jogou a trança escura por cima do ombro com um olhar convencido.
— Na-na-não, querida. Eu só fui mais esperta. Aprendam a perder e me passem os vinte por cento da mesada como combinado.
— Chega por hoje, meninas! — o pai chamou da janela, interrompendo a discussão. — Hora de entrar.
As três correram para dentro. A mesa do almoço estava posta, o aroma agradável da comida quente e fresca tomava conta do ambiente.
— Frango agridoce com purê de batatas! — Fiona deu pulinhos e jogou os braços em volta da governanta — Você é um anjo Ophelia!
— Seu pai pediu que eu as agradasse antes do almoço, sabem por que não é? — Ela deu um sorriso de canto e Fiona bufou indo para o lavabo.
— Provas, provas, provas. De que adianta meu pai ser meu professor se ele vai agir como professor e não como pai?
— Está delirando Fiona — Cora riu secando as mãos e se sentou a mesa.
— E hoje — Começou seu pai enquanto se servia — Vão ser duas, ciências e matemática.
— Por que tenho que fazer isso? — Fiona fez uma careta se jogando na cadeira. — Isso é tão chato. Eu não vou usar nada disso na vida.
— Vai sim. E nem tudo é chato, Fiona. É bom aprender um pouco de tudo. Assim a gente descobre do que gosta — comentou Cora, e levou uma colher do purê até a boca, divino.
— Você diz isso, mas já tem vinte anos, já sabe um pouco de tudo... e não faz nada.
O pai lançou um olhar breve e pesado para Fiona, mas Cora riu baixo.
— Não é tão simples assim. Eu tenho cogitado medicina... mas ainda não estou pronta pra me mudar pra cidade. E não tenho pressa.
— Medicina? — Elara a olhou com interesse. — Por causa da mamãe?
Cora ergueu os olhos, e soltou um sorriso fraco.
— A mamãe não era médica, só uma alma muito boa.
O pai as observou com a melancolia que sempre surgia quando o assunto chegava na mãe delas. Ela dedicou a vida a ajudar os outros, mas no fim não havia como ajudá-la. E Cora não podia evitar sentir um pouco de culpa.
Ophelia apareceu com uma nova travessa, interrompendo o assunto.
Mas o olhar de Cora se fixou no topo da escada.
O retrato ainda causava dor. Já faziam dois anos que sua mãe se fora, mas a saudade ainda era sufocante. Ela sorria na pintura — o sorriso leve de quem escolhera a simplicidade, mesmo vindo de uma das famílias mais influentes do reino. Crescera na Capital, cercada de luxo, com os melhores professores. Mas se apaixonou por um estudante de ciências e, sem hesitar, trocou o brilho da cidade pela quietude do campo. Plantava flores, ria alto, ajudava os outros, e criava as três filhas com paciência infinita.
Desde sua morte, os cinco se esforçavam para viver com sua ausência ali, distante de tudo. Elara, a mais nova, com quatorze, era dolorosamente parecida com a mãe: Cabelos loiros e ondulados, rosto redondo, olhos grandes e castanhos, era mais doce e graciosa que Fiona e Cora juntas. Fiona, com dezesseis, era enérgica, impulsiva e teimosa. Tinha os cabelos escuros e lisos do pai, a pele cor de canela e os olhos de um verde inquieto. As três eram diferentes em tudo, menos no afeto.
— Você tá escutando? Se for pra universidade na capital vai deixar seu quarto pra mim não é? — Disse Fiona com um sorriso travesso.
— Eu devia ficar, um quarto com maior é só mais espaço para Fiona fazer bagunça — Protestou Elara e as duas começaram a se estapear.
— Ninguém vai ficar com meu quarto.
Depois do almoço, enquanto Elara e Fiona iam para a sala de estudos bufando, Coraline desviou pelo corredor de pedra que levava aos fundos da casa. Empurrou a porta de madeira que rangia sempre do mesmo jeito. O cheiro familiar de terra, álcool e resina a envolveu imediatamente.
O laboratório do pai era uma mistura de estufa, oficina e biblioteca. As prateleiras estavam repletas de frascos âmbar e pequenos potes de cerâmica com etiquetas rabiscadas. Um feixe de luz atravessava a claraboia, pousando sobre a bancada central, iluminando uma única flor com as pétalas separadas e o caule aberto, um serviço em andamento.
— Não encoste nisso — Avisou seu pai entrando no laboratório.
— Eu nem ousaria. Nunca vi essa antes — Cora cruzou os braços parando atrás Do pai enquanto ele se curvava diante da flor e pegava os instrumentos de prata ao lado.
— Véu-de-Mirantha. Essa é uma planta mágica — Ele disse sorrindo e voltou a raspar o caule.
Cora ergueu as sobrancelhas, será que tanto tempo respirando aquele ar tinha o deixado louco?
— Hmm, é alucinógena também?
Seu pai riu e depositou o conteúdo num frasco de vidro.
— Encontraram algumas dessas numa expedição em Tarenthe, nas montanhas.
— Uma flor, no meio das montanhas, no inverno?
— Agora sabe por que chamam ela de mágica. Para os nativos, ele já é bastante conhecida, e é usada há séculos em rituais para provocar estados de torpor ou sonhos vívidos. Uma dose errada, e pode causar coma.
Cora arqueou as sobrancelhas.
— E o senhor guarda isso aí na estufa da nossa casa?
Ele riu baixo.
— Trancado. E com etiqueta vermelha, como todos os que podem matar ou curar, dependendo de quem usa.
Ela observou a flor com atenção, gravando seu formato — delicada, com cinco pétalas levemente translúcidas.
— Parece inofensiva...
— A maioria parece. Mas é por isso que estudamos. Para não nos enganarmos com aparências — ele a olhou, tirou os óculos soltando o ar pelo nariz, e seu tom mudou, mais suave — Eu não sabia dos seus planos sobre cursar medicina.
— É a primeira coisa que me vem à mente quando penso em carreira, mas desaparece logo depois — Cora deu de ombros.
— Por que?
Cora se afastou, passando os dedos distraidamente sob a lombada dos livros.
— Por que é um curso longo, eu vou ficar muito tempo fora, e quando for exercer aqui é longe de tudo, vou ter que me mudar, ficar longe de vocês.
— E o que mais?
— Quem disse que tem mais?
— Eu sei o quanto nos ama Cora, mas sei também que não é apegada assim. Além disso, uma casa é apenas uma construção, eu e as meninas com certeza nos mudariamos para a cidade, seria até melhor para Fiona e Elara terem mais companhia da idade delas.
Cora respirou fundo e assentiu, se virando para encarar o pai.
— Eu quero ajudar a salvar vidas, mas não sei se sou capaz de ver uma se perder sob meus cuidados. Eu vi... Durante aquele surto, a mamãe fazer de tudo para ajudar, e não ser o suficiente. E quando foi a vez dela, apenas observar, sabendo o quanto o que podemos fazer é limitado, é algo que vou carregar pro resto da vida...
— Ho Cora... — Seu pai se levantou, os olhos úmidos.
Cora ouviu passos no corredor e limpou os olhos imediatamente, Ophelia abriu a porta com a respiração ofegante.
— Meu senhor... — chamou — Tem alguém na porta, e deseja falar com o senhor.
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As três irmãs se empilharam atrás da porta do escritório enquanto seu pai conversava com um homem misterioso. Vestia preto dos pés à cabeça, devia ter uns quarenta anos, cabelos castanhos escuros com alguns fios brancos penteados para trás. Uma cicatriz na boca se destacava na pele escura.
— Não consigo ouvir nada — sussurrou Elara.
— Não consigo ver nada — resmungou Fiona.
— É porque não deviam — Ophelia surgiu e puxou as duas pelas orelhas, afastando-as da porta.
— Quem é esse homem? — perguntou Cora.
— Se fosse da sua conta, já saberia — respondeu Ophelia com a sobrancelha franzida.
A porta se abriu.
— Coraline — chamou seu pai.
As quatro se retesaram. Ele fez um gesto para que ela entrasse. Cora olhou para o homem por cima do ombro do pai e, sem dizer nada, o seguiu para dentro do escritório, agora subitamente frio. A porta se fechou atrás deles.
— É um prazer conhecê-la, senhorita Coraline — disse o homem, a voz grave, porém gentil. — Eu me chamo Aiden Alexander e sirvo à coroa como Capitão da Guarda Real.
Alexander. Esse era um nome que aparecia diversas vezes nos livros de história, por incontáveis gerações, sempre ao lado da família real — seus protetores leais. Seus cães de guarda cegos.
Ele tinha olhos cor de mel amáveis, apesar das olheiras de preocupação e das cicatrizes de guerra.
— O prazer é meu, Capitão Alexander.
— Querida... — seu pai segurou a mão dela e a guiou até o sofá. Estavam frias e suadas, um pouco trêmulas até. — Tudo vai parecer confuso agora, mas peço que escute o Capitão Alexander. Tudo vai fazer sentido.
O homem respirou fundo e se sentou na outra ponta do sofá.
— Suponho que a senhorita saiba quem são os De Vance?
— Claro. A família da minha mãe.
— Exatamente. Seu bisavô teve dois filhos, e cada um teve uma filha: Sienna, sua mãe, e Primrose, a nossa rainha.
— Eu conheço a árvore genealógica da minha família, capitão.
Ele assentiu e prosseguiu.
— Há vinte anos, numa noite, durante o banquete da festividade de primavera, o palácio sofreu um ataque. A senhorita deve ter conhecimento das tensões que o reino sofria naquela época.
— Claro. Nosso vizinho Tarenthe tentava tomar as fronteiras depois que o Rei se recusou a oferecer ajuda para o povo que sofria nas mãos de um inverno rigoroso — disse Cora, e seu pai apertou sua mão levemente, num aviso.
Oh. Ela supostamente não deveria falar mal do rei na frente de um guarda da coroa. O homem pigarreou e continuou.
— Rebeldes invadiram o palácio naquela noite para saquear e manter nobres como reféns. A rainha Primrose estava no sétimo mês de gestação. Entrou em trabalho de parto com o choque, e as criadas conseguiram tirá-la do salão por meio das passagens de serviço. Ela deu à luz na ala dos criados. E infelizmente a criança nasceu sem vida.
Sua voz falhou por um momento e ele limpou a garganta antes de prosseguir.
— O problema é que, àquela altura, a rainha já havia sofrido vários abortos. E o rei já tinha outra esposa, uma nobre de Tarenthe, oferecida em casamento como promessa de paz. Naquela situação, um filho de Tarenthe como herdeiro da nossa coroa não era um bom cenário.
— Mas a rainha Primrose tem uma filha, e ela é herdeira.
As mãos de seu pai se contraíram. Cora o olhou, confusa. O capitão continuou:
— Depois de perder a criança, a rainha se isolou numa mansão da família De Vance. E muitos quilômetros dali, numa outra propriedade dos De Vance, Sienna Prydwen dava à luz a duas meninas saudáveis.
A mente de Cora ficou em branco por um segundo. Seu pai prendeu o ar e desviou o olhar para o chão, o maxilar cerrado.
— Duas?
— A você, Coraline Prydwen... e à princesa de Domhall, Cordelia.
Tinha tantas perguntas que não sabia por onde começar. As palavras morreram em sua boca, olhou para seu pai, que cobria a boca com uma mão e olhava para o nada como se estivesse dentro de uma memória.
— Pai? — Cora perguntou, e ele ergueu os olhos marejados.
— Fizemos de tudo para impedir. Sua mãe sofreu tanto... Sienna não queria entregar vocês. Ela nunca se importou com o peso do nome que carregava. Vocês eram mais importantes que qualquer coisa para ela.
— Mas o duque de Vance não aceitaria que sua filha fosse humilhada pela corte por não conseguir dar à luz um herdeiro — o capitão se retesou enquanto seu pai se afastava até a janela. — E jamais permitiria que o filho de uma estrangeira subisse ao trono. Se isso acontecesse, ela seria destituída de seu posto de rainha-mãe e Magdalenne de Tarenthe se tornaria a primeira esposa. Então ele conseguiu convocar um Sábio, para que Sienna não pudesse recusar... e para que o segredo fosse mantido no mais absoluto sigilo.
Sábio.
A corte de Domhall supostamente tem sábios que guiam o reino com seus supostos poderes. As histórias eram absurdas, diziam que alguns viam o futuro, outros já tinham vivido mais de duzentos anos. Na visão de Cora, eram fantasias aumentadas de tanto serem contadas e recontadas. Mas o fato era que havia pessoas poderosas — e perigosas — na corte.
— Naquela noite, eu e Sienna tivemos que jurar lealdade a coroa — explicou seu pai — Sua mãe aceitou o acordo, mas com a condição de que Cordelia sempre fosse sua filha. Entregá-la ao ninho de cobras que é a corte já era doloroso o suficiente. Cordelia sempre soube que é filha de Sienna, e ela a visitava sempre que estava na mansão da família.
— E por que estão me contando isso agora? — perguntou Cora, tentando manter a compostura, mas com o coração tremendo.
— Cordelia foi envenenada — o capitão baixou a voz, sério, urgente. — Está em coma há uma semana. Estamos fazendo tudo que podemos... mas, no fim das contas, não sabemos quando... — uma sombra passou pelos olhos dele, medo, e o "se" não conseguiu ser proferido — ela vai acordar.
— Então vocês querem substituir a princesa herdeira de novo? — cuspiu com a voz trêmula. — E o que acontece quando atacarem outra vez? Tem mais alguma irmã que eu não saiba?
— Coraline...
— Isso tudo é loucura, pai. É completamente absurdo... — Cora se levantou e saiu da sala a passos largos.
As irmãs já não estavam mais bisbilhotando — Ophelia devia tê-las colocado para correr.
Desceu as escadas ouvindo o sangue bombear nos ouvidos, a cabeça latejando. Parou de repente, olhando para a pintura da mãe no topo da escada.
Cerrou os dentes e correu para fora de casa.
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Atualizado até capítulo 65
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SRC93
começando agora
2022-06-23
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