O capitão guiou Cora até um quarto no andar de baixo, Cerise acenou levemente com a cabeça antes de abrir a porta, Riona estava lá dentro verificando as trancas de uma janela.
— Tudo certo — Riona limpou as mãos no uniforme — O que a senhorita prefere? Que eu prepare um banho ou uma refeição?
— Tudo bem, eu posso preparar meu banho, e não estou com fome.
Riona cruzou os braços a encarando com os olhos cerrados.
— Certo, eu vou aceitar só porque não tem outras pessoas na propriedade, mas não pense em sugerir fazer algo sozinha no palácio.
— Não ousaria.
— Vou buscar suas coisas.
— Obrigada.
— Qualquer coisa Ceri está na porta.
Ceri, Cora soltou um sorriso ao ouvir o apelido, Riona pareceu não perceber e saiu do quarto.
Cora deu uma volta pelo quarto. Os móveis eram de qualidade, a cama e os sofás, muito confortáveis — mas não havia quadros caros nem enfeites exagerados, como geralmente haviam em casas nobres. O banheiro era enorme, encheu a banheira e tomou um banho demorado, quando saiu Riona já estava com um vestido pronto e a ajudou a se vestir.
— Você viu a Rainha? Ela parece tão abatida — Cora disse enquanto Riona amarrava o espartilho.
— Não é à toa. Dizem que não há dor maior que a perda de um filho — Riona suspirou. — Ela deve estar arrasada... e preocupada.
Nem precisa imaginar então como sua mãe ficou preocupada ao ter que abrir mão de uma filha. Entregá-la ao que ela tentou fugir. Parte dela sentia empatia, porque apesar de não terem o mesmo sangue, a Rainha criou Cordelia, a outra ainda sentia um incômodo de que ela foi até sua casa e fez parte daquela farsa.
— Certo — Riona colocou a última camada de saia e se afastou a analisando, um ronco alto soou entre as duas e Cora ergueu as sobrancelhas segurando o riso — Você me pegou, estou faminta.
— Suponho que não tenham funcionários na cozinha também.
— Nenhuma alma viva, acredito que Anielisse cozinhe, mas ainda está cedo, vou precisar me virar.
— Precisa de ajuda?
— A senhorita sabe cozinhar?
— Não — Cora disse e as duas riram — Mas posso cortar legumes e esquentar água.
— Eu sou uma soldado querida, eu sei usar uma faca, mas sempre passei longe de temperos.
— Isso é um problema.
— Deve ter pão e queijo na cozinha, vai servir — Riona girou nos calcanhares e elas saíram do quarto, ela estacou ao se deparar com o sentinela na porta — Ho Ceri, por acaso sabe cozinhar?
— Não — Ele disse secamente e Riona estalou a língua.
— Sem graça.
Seguiram para uma cozinha modesta no térreo, afastada das rotas principais da mansão. Havia uma chaleira de ferro sobre o fogão, algumas panelas penduradas, e um armário onde encontraram o prometido pão e um pedaço generoso de queijo embrulhado.
— Olha só que sorte a nossa — comentou Riona colocando os dois no balcão, abriu uma gaveta e tirou uma faca polida. Ela foi cortar o pão e a faca mal entrou — A última vez que comi algo assim estava a três dias acampada numa floresta.
Riona não parecia ser mais velha que Cora, ela não era como Cerise que parecia uma muralha impenetrável, sem reservada como o capitão, ela falava muito, sorria ainda mais, a forma como se movia, não parecia nunca estar com a guarda alta, se não fosse Alexander a apresenta-la como soldado, Cora nunca diria que ela era uma.
— Você já esteve em combate? — perguntou, com o tom casual de quem apenas preenche o silêncio.
— Treinamento. Felizmente cheguei na guarda depois da guerra — respondeu Riona, abrindo uma porta atrás de outra até encontrar um pote com algum tipo de conserva. Ela o cheirou com cautela antes de decidir que era comestível. — Geleia — Sorriu satisfeita.
— Você parece jovem demais para ter lutado na guerra.
— Isso é verdade. — Riona empurrou um prato para Cora e sentou-se de lado sobre o balcão. — E não conte ao capitão, mas se estourar outra vou ser a primeira a me esconder.
— Os que mais sofrem com a guerra são aqueles nos campos de batalha, não os reis empoleirados em seus tronos.
— E você diz servir a coroa? — Riona ergueu as sobrancelhas com um sorriso divertido.
— Ainda posso ter minhas opiniões. Mas não conte ao capitão — Sussurrou Cora.
Riona soltou uma risada abafada.
— Boa resposta — Ela conseguiu cortar um pedaço do pão e passou a geleia.
— O capitão disse que você e Cerise são as pessoas que ele mais confia nesse mundo — Cora mordeu o próprio pão e mastigou antes de continuar. — É uma surpresa, vocês são tão jovens. Vocês conheciam Cordelia?
— Nunca a vi — Riona inclinou a cabeça, pensativa. — Eu era da guarda externa. Alexander foi meu mentor, e fazer o que, eu sou incrível — brincou Riona, antes de continuar, mais séria — Não conheço Cordelia, e nunca estive no palácio, tenho apenas cinco anos na guarda, mas o capitão me escolheu por um motivo.
Cora arqueou uma sobrancelha, surpresa com a franqueza.
— Por que?
— Por que sou boa com pessoas, eu sei observar, sei extrair, ser confiável. E você, senhorita sombra, mede cada palavra e gesto antes de soltar. O que é inteligente. Mas se quiser me perguntar algo, faça de uma vez, estou aqui para ajudá-la. Não preciso ser testada como se estivesse sendo avaliada por um tribunal.
Silêncio por um instante, quebrado apenas pelo estalar do pão seco e da faca riscando a madeira.
— Está bem — disse Cora, encarando Riona. — Você confia no capitão?
Riona segurou o olhar, depois deu um pequeno sorriso de canto.
— O que é confiança? Está me perguntando se ele está escondendo algo? Se teve algo haver com o envenenamento de Cordelia? O quanto eu o conheço? O quão capazes somos de te proteger?
Cora sentiu o peso daquelas palavras — todas as alternativas, se sentia cega no meio daquele labirinto. Ela observou Riona por mais um instante. Por trás da graça descomplicada, havia ali uma mente que girava depressa.
— Você é mesmo boa em observar — disse, finalmente.
— E sou ainda melhor em saber quando não falar. Mas gosto de você, Célia. E já percebi que você não é do tipo obediente. Mas nessa situação, um conselho, é melhor aprender.
Terminaram de comer em silêncio, enquanto a chaleira no fogão começava a chiar devagar, como se também quisesse participar da conversa.
---
O sol da manhã filtrava-se pelas grandes janelas do corredor, lançando manchas douradas sobre o chão de mármore claro. Lá fora, no jardim interno, Cora viu o capitão recostado numa cadeira de ferro, tenso, com uma xícara fumegante nas mãos. A rainha estava diante dele, de costas para a mansão, seus gestos graciosos enquanto falava envoltos numa calma cuidadosamente composta.
Cerise não estava na porta como de costume.
Riona havia partido cedo naquela manhã, ela se apresentaria as outras criadas e receberia o treinamento para ser dama de companhia, Riona era de uma casa nobre, devia ter imaginado, como ela treinaria Cora para ser uma princesa sem os conhecimentos e etiqueta da nobreza, saber como colocar uma armação e amarrar um espartilho não era algo que se preocupavam na guarda.
Cora olhou para o salão lá embaixo, mas mudou a rota e subiu as escadas. Parou diante da porta entreaberta do quarto de Cordelia. O cheiro do incenso suave a alcançou antes da visão.
Ela espiou pela fresta.
Cordelia jazia imóvel, o corpo pálido sob os lençóis claros, o cabelo penteado com esmero. Anielisse, ajoelhada ao lado da cama, massageava com delicadeza a perna da princesa, os movimentos lentos e circulares, como quem conhecia bem os limites da carne inerte.
Cora bateu levemente à madeira antes de empurrar a porta.
— Bom dia.
Anielisse ergueu os olhos, surpresa apenas por um instante, antes de sorrir com gentileza.
— Senhorita Coraline. Bom dia.
Cora entrou, parando a certa distância. Observou em silêncio os movimentos da criada por alguns segundos.
— Você faz isso todos os dias?
— Pela manhã e antes de dormir. Se o corpo dela ficar tempo demais parado, os músculos enfraquecem. A circulação piora. E ela... — Anielisse hesitou, com um olhar breve e quase triste para Cordelia — ela vai precisar do corpo em ordem, quando acordar.
Cora assentiu devagar, sentando-se à poltrona próxima. Observou a quietude do quarto. O canto de um pássaro do lado de fora preenchia o ar entre uma respiração e outra.
— Como ela está hoje?
— Como nos últimos dias. O pulso está firme. A pele tem boa coloração. Ela ainda está aqui. Só... longe.
— Você parece entender bastante sobre isso. Sobre o corpo humano.
— Sei o que é necessário — respondeu Anielisse com um sorriso contido, sem vaidade.
— A senhorita disse ser de uma família de curandeiros renomados, por que acabou se tornando criada?
Anielisse riu baixinho.
— Criada da rainha, senhorita Coraline. Não é pouca coisa.
Cora inclinou levemente a cabeça, estudando-a.
— Mesmo assim... com seu conhecimento, podia estar em qualquer lugar. Por que continuar aqui?
Anielisse pareceu refletir por um momento antes de responder.
— Minha família passou por momentos difíceis, e aceitei este cargo, não é vergonha de forma alguma.
— Não quis dizer isso.
— Sei que não — Ela se levantou, dando a volta na cama e passando um óleo de cheiro adocicado e suave na outra perna de Cordelia — Mas depois que tirei o herdeiro sem vida de dentro da Rainha — Ela disse com a voz mais baixa, os olhos perdendo o brilho por um instante — Não existe outro lugar que eu possa estar.
Claro, Cora desviou o olhar, devia ter imaginado, foi ela quem ajudou a Rainha aquela noite, ela é uma serva que guarda um segredo grande mais. Ela estaria presa a corte pelo resto da vida.
Cora olhou para Cordelia, a respiração calma, quase imperceptível.
— Acha mesmo que ela vai acordar?
— A esperança tem mais força do que dizem. — Anielisse se levantou, passando um pano úmido no braço de Cordelia com delicadeza.
Cora hesitou por um segundo, depois falou com suavidade:
— A senhora é médica, tem ideia do que foi?
Anielisse ficou em silêncio por um momento, como se considerasse seriamente a hipótese.
— Não haviam marcas de agulha ou cortes, nada visível na pele, nenhuma reação externa. Não conheço muitas coisas que façam isso a um ser humano, em silêncio, ainda mais por tanto tempo. Se ela ingeriu algo, não foi um veneno comum. O único que conheço que poderia causar um sono tão profundo, sem dor, sem marcas, é o Véu-de-Miranthe.
Cora ergueu os olhos. A flor que seu pai examinava.
— O que é isso? — Perguntou se ajeitando, desconfortável na poltrona.
— Uma flor do sul. Caríssima. Rara. Ela é utilizada em rituais em Tarenthe a alguns séculos, mas chegou ao nosso Reino recentemente. Não ficaria surpresa se mais pessoas aparecessem de repente em coma, ou mortas em silêncio numa noite, depois de uma xícara de chá antes de dormir.
Cora ergueu as sobrancelhas.
— Você está dizendo que isso está... Se popularizando?
— Entre a nobreza? Eventualmente irá, ricos vivem se matando, e quanto mais limpas as mortes, menos chances de alguém desconfiar.
— Isso não tem antídoto?
— Nenhum conhecido. Não sabemos quanto Cordelia ingeriu, isso pode levar dias, ou semanas.
Cora observou Anielisse com atenção. A criada parecia sincera. Seus olhos não tremiam. As palavras vinham com calma, sem tropeços.
— Obrigada por falar comigo — disse Cora, levantando-se devagar.
Anielisse sorriu, e por um breve instante, o quarto pareceu mais leve.
— Sei que deve estar preocupada. Mas vamos tomar todas as medidas para que se sinta segura.
Cora assentiu e saiu com passos silenciosos, sentindo o peso daquela conversa repousar sobre os ombros como uma dúvida antiga — familiar, mas ainda indefinida.
Anielisse voltou a massagear a outra perna de Cordelia. Seus dedos deslizaram com a mesma precisão de antes, mas agora, sozinha, sua expressão ficou vazia por um instante, como se algo dentro dela tivesse parado de sorrir.
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Atualizado até capítulo 65
Comments
bipolar 🤧👍
confesso estou um pouco confusa, não entendi esse negócio da Coraline ter q fica no lugar da Cordelia, não entendi msm.
2022-09-24
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