Os dias iam passando, e Cora mantinha-se quase sempre reclusa em sua cabine. Durante o percurso, acamparam algumas vezes e se hospedaram em pousadas espalhadas pelas cidades. A cada parada, ela circulava pelas feiras e mercados como quem apenas se entretinha — mas, por trás dos sorrisos educados, fazia perguntas cuidadosas, identificava plantas, punha à prova seu conhecimento sobre ervas e venenos — sobretudo os de Calethia.
Cordelia foi envenenada aos poucos?
Ou o golpe ainda não foi concluído?
Será que recebeu uma dose única, mas sobreviveu por força de constituição?
Ou erraram na dosagem?
As perguntas vinham em espiral, e nenhuma resposta parecia se encaixar com precisão. Quanto mais pensava, menos sentido fazia. Mas uma certeza surgia, firme como uma raiz antiga: ela precisaria se proteger sozinha.
Então começou a montar um pequeno estoque.
Além dos conhecimentos que adquiriu com seu pai, também aprendeu muito com a ajuda prática que sua mãe prestava. Ajudara em campanhas comunitárias de saúde, aprendera a observar sintomas, sabia como proteger o corpo, e disfarçar os sinais de que algo estava errado.
Porque eles viriam. Os sintomas viriam.
Mas esse ciclo teria que acabar nela. Com ela.
A semana arrastava-se como um suplício. Aulas de etiqueta, dança, nomes e rostos de nobres pomposos. Cora estava sentada numa cadeira, as costas eretas, um livro pesado equilibrado no topo da cabeça. Tentava se concentrar, mas uma pontada incômoda percorria seu braço esquerdo, ardendo sob o tecido do vestido. Um calor estranho se espalhava pela pele — como se algo estivesse corroendo suas camadas, de dentro para fora.
Não sabia qual seria a sensação de se envenenar, sabia que não seria bom, mas não imaginou que seria tão incômodo, e aquela foi só a primeira aplicação.
— Você obviamente vai evitar contato com os outros membros da família real, o que não é tão difícil, cada esposa tem um palacio próprio, e Cordelia não é próxima aos filhos delas, a não ser Friedch, o segundo na linha de sucessão, mas ele felizmente está viajando a alguns meses, e não dá sinais de que retornará tão cedo. Cordelia fica no palácio principal com o Rei e Rainha, e será realocada para um quarto mais seguro, e mais digno de uma futura Rainha — Explicou Riona.
Os olhos de Cora ficaram alguns segundos a mais num retrato de Magdalene, a segunda esposa, nobre de Tarenthe, o país responsável pelo ataque que levou a chance do filho da Rainha viver.
— Que tipo de pessoa é Lady Mirande? — perguntou Cora.
— Não tenho contato com as outras esposas, a não ser em eventos sociais — disse Alexander de um canto da sala. Às vezes, sua presença era tão discreta que Cora esquecia que ele estava ali, assim como Cerise — Mas aparentemente é uma pessoa tranquila e agradável, ela tem três filhos. O mais velho, Friedch, é um soldado influente, raramente se encontra no palácio, as filhas mais novas de Magdalene tem quinze e treze. Que eu saiba, ela nunca se interessou por assuntos políticos. Nunca houve rumores sobre ela.
— Agradável, sem interesse em política. Suponho que lady Magdalene deveria ser um símbolo de paz entre os Reinos, ainda assim o ataque ao palácio vinte anos atrás aconteceu.
— Na verdade, foi obra dos rebeldes e plebeus, que foram os que mais sofreram com a época de frio intenso. Não havia muito o que se fazer. Politicamente, as coisas estavam tranquilas graças ao casamento do Rei com Lady Magdalenne.
— Tranquilas — Cora sorriu ironicamente, então se voltou para Riona que colocou um outro retrato na frente de seus olhos.
— Este é o sétimo filho do Rei August de Persephone Theodoro Terceiro do Reino de Cressa, o Príncipe Sawyer August Persephone, e, noivo da Princesa Cordelia.
— O quê?! — Cora arregalou os olhos e segurou o livro antes que ele caísse, reposicionando-o com cuidado.
— Quando ambos tinham dezoito anos, o rei firmou um acordo com o reino vizinho. Vão se casar antes da coroação de Cordelia. O príncipe será, então, o Rei Consorte de Domhall.
Ele era bonito. Bonito demais. Rosto longo e bem delineado, olhos azul-escuros como o mar antes da tempestade, cabelos pretos e lisos perfeitamente penteados, nariz reto, lábios finos, queixo marcado. Uma pintura viva da realeza.
— E como era a relação dos dois? — perguntou, mantendo o tom o mais neutro possível.
— Amigável — disse Riona. — O príncipe prefere ficar em nosso reino e raramente visita sua terra natal. Costuma ser visto nos jardins ou tomando chá na sacada da biblioteca.
— E como vou saber como a princesa se comportava em seu círculo mais íntimo?
— Vamos evitar ao máximo. Ainda temos três meses até a primavera, quando começa a temporada social. Até lá, manteremos você fora da vista dos outros — respondeu Alexander — No palácio, algumas pessoas sabem de sua verdadeira identidade. Todas são de extrema confiança e estarão ao seu lado o tempo inteiro.
— Quanto mais o tempo passa, mais acho isso uma péssima ideia.
— No que depender de mim, você será mais perfeita que a própria princesa — disse Riona com uma piscadela. — E saiba que é um perigo me desapontar.
— Não pretendo fazer isso — respondeu Cora, tirando o livro da cabeça. Seus olhos se voltaram para o capitão. — O senhor, que mais conviveu com a princesa... o que pode me dizer sobre ela?
Alexander soltou os papéis que segurava. Uma sombra de tristeza atravessou seus olhos cor de âmbar. Por um instante, ele parecia outro homem — mais frágil, mais velho. Respirou fundo e forçou um leve sorriso.
— Sempre vivi no palácio e acompanhei o crescimento de Cordelia. Na frente da corte, era tudo o que esperavam de uma princesa. Não gostava de falar sobre política, sempre arranjava desculpas para escapar das reuniões com o rei. Quando não conseguia fugir, apenas assistia e concordava com tudo.
— Não é estranho? — Cora franziu o cenho. — Uma princesa herdeira, prestes a subir ao trono, que não se interessa por política?
— Ela ainda é jovem — ele respondeu. — Mas sei que era inteligente. E justa. Tenho certeza de que ela seria uma excelente rainha.
Seria.
A palavra ficou no ar como um sussurro não dito.
Cora desviou o olhar, o estômago apertado. A queimação se espalhando.
Três meses.
Três meses para se tornar uma princesa que não conhecia. Três meses para manter a farsa. Três meses para encontrar respostas — e sobreviver a elas.
A mansão da família de sua mãe ficava a um dia de distância da capital, isolado no meio do nada, cercado apenas por um campo verde a perder de vista.
Era enorme, rodeado por uma cerca branca adornada. Os jardins eram repletos de margaridas — as flores favoritas de sua mãe. Aquele lugar... parecia tanto com ela. Por mais grandioso que fosse, por dentro, a mobília, a decoração, era simples e de bom gosto, assim como sua casa no interior.
Alexander a guiou pelos corredores vazios — não havia sinal de criados nem guardas. Pararam diante de uma porta branca adornada. Ele a abriu, revelando um quarto de paredes azul-celeste, cobertas por estrelas pintadas. Os móveis eram de madeira escura; o dossel da cama brilhava com pequenos cristais. Ao lado da cama, de pé, estava uma mulher por volta dos quarenta, com o rosto duro, cabelos impecáveis com alguns fios brancos, e trajes formais de uma criada nobre. Do outro lado, sentada, com um vestido preto simples, cabelos loiros presos em um penteado perfeito e olhos verde-claros, a rainha Primrose Amber de Vance.
Alexander se curvou, e Cora o imitou.
O olhar de Cora pousou sobre a garota deitada na cama, em sono profundo. Os cabelos longos e claros, como os de Elara, começavam lisos e terminavam em cachos perfeitos, espalhados pela seda e algodão branco. A pele era perfeita, embora pálida demais. Os cílios fartos, a boca rosada — qualquer um diria que ela estava apenas dormindo. Era como olhar para o espelho.
— Coraline — disse a rainha, levantando-se —, é um prazer conhecê-la, ainda que não nas melhores condições.
— Vossa Majestade, eu sinto muito.
— Eu também. — Ela baixou os olhos para a garota na cama, pousando as mãos sobre a barriga. — Se não estivesse bem na frente dos meus olhos, não acreditaria que algo assim está acontecendo...
Lágrimas escaparam de seus olhos. A criada abaixou o rosto. A rainha se recompôs e limpou os olhos com um movimento suave.
— Eu agradeço por sua coragem, Coraline. Não vou deixar que isso aconteça novamente — Ela disse com a voz trêmula, segurando as mãos com força enquanto tentava conter as lágrimas. Algo no peito de Cora se remexeu, nunca tinha visto a Rainha antes, apenas em ilustrações nos jornais que chegavam até a cidade, ela sempre estava ereta, imponente, com um sorriso confiante e jóias de mais.
Mas ali parecia uma mulher comum, temendo por uma filha. Cora se aproximou e a abraçou. A rainha ficou tensa por um instante, então retribuiu o gesto.
— Farei tudo ao meu alcance. E espero que ela abra os olhos o mais rápido possível.
Cora se afastou, e a rainha apertou suas mãos, sorrindo.
— Eu também.
— Coraline, esta é a dama de companhia da rainha, Anielisse, da Casa de Campbell — Apresentou Alexander.
— É um prazer.
— Igualmente. — Anielisse fez uma mesura impecável.
— Foi ela quem socorreu a princesa e tem cuidado dela desde então.
— A senhorita tem conhecimentos em medicina?
— Certamente. Antes de receber a honra de ser dama de companhia da rainha, eu atuava como médica em minha cidade. Minha família possui uma clínica bastante renomada — A mulher soltou um sorriso um pouco orgulhosa de sua trajetória.
— Cordelia está em ótimas mãos, então.
— Farei o meu melhor para vê-la de pé e saudável novamente.
— Sei que deve estar cansada, mas podemos conversar um minuto? — Perguntou a Rainha e Cora assentiu rapidamente — Me acompanhe por favor, o senhor também Aldous.
Ela fez um gesto para que eles a seguissem, a rainha guiou o caminho até um quarto do outro lado do corredor, abriu a porta e Cora entrou, acompanhada do capitão. O lugar era amplo, onde portas fechadas marcavam os limites do aposento. A Rainha fechou a porta atrás deles, sentou-se num sofá no centro e começou a despejar água quente num bule, a louça tão chique que destoava da decoração simples — provavelmente itens pessoais. Cora sentou-se numa poltrona. Alexander se sentou no sofá a um braço de distância da Rainha, enquanto o cheiro de flores começava a tomar conta do ar entre eles.
— Soube de Sienna. Sinto muito — A rainha de voltou para Cora, os olhos gentis.
O coração de Cora se apertou ao ouvir o nome de sua mãe, sempre apertava.
— Obrigada. Já faz alguns anos... mas é sempre doloroso lembrar que ela não está aqui.
— Eu entendo — a Rainha ofereceu-lhe um olhar de cumplicidade e tristeza, junto de uma xícara de chá.
— Quando você entrou por aquela porta, me lembrou muito ela. Seu olhar firme, seu sorriso.
Cora não conseguiu conter o sorriso. A Rainha soltou uma risada doce e entregou outra xícara para o capitão, que aceitou com um sorriso.
Logo a curva dos lábios dela evaporou. Ela respirou fundo e ergueu os olhos.
— Mas o que eu gostaria de falar com você é sobre a situação do país. Enquanto Cordelia estiver... ausente, preciso que saiba o que acontece ao seu redor.
— Ouvi dizer que ela não gosta de participar desses assuntos...
— Ela é realmente teimosa — a Rainha sorriu. — Tem uma boa visão das coisas, mas não coragem para contrariar o Rei. Desde a guerra, ele se tornou cauteloso demais, o que o impediu de firmar diversos acordos.
— Mas as coisas estão melhorando, não? Afinal, Cordelia está noiva de um príncipe de Cressa, nosso principal rival.
— Era o que pensávamos. Não sabemos se algo mudará após o casamento. Mas enviar aquele príncipe... pareceu uma piada de mau gosto.
— Como assim?
— Ele é o mais novo de sete irmãos. O mais velho já governa há três anos e tem dois filhos.
— Oh... — Cora abaixou a xícara. — Tão longe da linha de sucessão... provavelmente nunca foi preparado para governar.
— Exato. O Rei viu isso como uma afronta. Mas pedi que não fizesse nada por ora. Talvez fosse exatamente o que o Rei de Cressa queria: que desprezássemos o príncipe enviado. Seria o estopim para outro conflito. Cordelia tem apenas quatro meses até completar vinte e um, e a temporada social se aproxima. Está tudo instável. O Rei, mais do que nunca, vai querer que ela participe dos assuntos da corte, e você precisa ser cautelosa.
Alexander pousou a xícara e apoiou os cotovelos nos joelhos.
— Cordelia tem uma boa reputação na alta sociedade. Rumores sempre existem, ainda mais porque ela realmente gosta de festas — disse Alexander, suspirando pesado — Ela não perdia um baile. Já virei noites esperando ela sair com um sapato na mão e tropeçando de bêbada.
Cora ergueu as sobrancelhas, surpresa, e Rainha sorriu balançando a cabeça.
— Eu não sabia que princesas podiam se comportar assim.
— Não podem. Mas os jovens gostam dela. E, considerando que muitos vão suceder seus pais, ela terá aliados. Apesar de tudo, Cordelia é cativante.
— Ela tem amigos?
— Ela não gostava de muitas pessoas. Tem um relacionamento quase casual com os jovens da mais alta nobreza. Mas, como não sabemos ao certo com quem tinha mais afinidade, vamos evitar contato. Entre reuniões do conselho e festas do chá, Cordelia era exatamente o que se esperava de uma princesa. Então, não precisa se preocupar demais.
— O que faço se ela receber convite para uma dessas festas?
— Melhor que recuse — Disse a Rainha.
— Isso não pode causar má impressão? Talvez até ofenda o anfitrião? Afinal, ela não costumava faltar.
— É verdade. Mas tão perto de completar vinte e um, espera-se que ela tenha muito o que fazer. Há uma expectativa: ela e o príncipe Sawyer devem se casar e gerar um herdeiro antes de ser coroada Rainha.
Cora mexeu distraidamente a colherinha na xícara. O gosto do chá era triste e sem graça. Água suja com açúcar.
— Como Cordelia se sente com tudo isso?
— Como assim?
— Ela já expressou alguma insatisfação com... os planos para a vida dela?
A Rainha não respondeu, começou a se servir de mais uma xícara.
Alexander franziu a testa, pareceu confuso com a pergunta. Balançou a cabeça.
— Cordelia é a princesa herdeira. Com esse título vêm responsabilidades, que ela aceita e cumpre com perfeição.
Então ela não estava satisfeita, Cordelia soltou o ar, de repente triste.
— Entendo... — Cora afastou a xícara vazia — Com sua permissão Majestade.
— Claro querida, bom descanso.
Cora se levantou e o capitão fez o mesmo, o olhar sério.
— Partimos em três dias, Coraline. Esteja preparada.
— Claro — ela sorriu e fez uma mesura. — Aceitarei e cumprirei meu dever, com perfeição.
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Atualizado até capítulo 65
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