O sol estava no meio do céu, brilhante e morno. A brisa gelada do fim do inverno agitava os lençóis no varal. Coraline andava lentamente, tentando fazer o mínimo de barulho ao pisar na grama úmida. Suas botas pouco ajudavam na tarefa. Viu um vulto passar a alguns metros de distância e se apressou, puxando o lençol e sorrindo.
— Te encontrei, Elara! — exclamou para o nada.
— Perdeeeu! — sua irmã mostrou a língua passando por trás dela e correu em direção à árvore frondosa onde a brincadeira começara. Cora tentou alcançá-la, mas antes que ambas pudessem chegar ao tronco, um corpo voou dentre os galhos.
— As duas perderam! — sorriu Fiona, triunfante.
— Trapaceira! Você ficou o tempo todo na linha de chegada! — Elara inflou as bochechas. Fiona deu de ombros.
— Ninguém disse que não podia.
— Você é uma raposa ardilosa, Fiona — Cora cerrou os olhos, mas a outra apenas jogou a trança escura por cima do ombro com um olhar convencido.
— Na-na-não, querida. Eu só fui mais esperta. Aprendam a perder e me passem os vinte por cento da mesada como combinado.
— Chega por hoje, meninas! — o pai chamou da janela, interrompendo a discussão. — Hora de entrar.
As três correram para dentro. A mesa do almoço estava posta, o aroma agradável da comida quente e fresca tomava conta do ambiente.
— Frango agridoce com purê de batatas! — Fiona deu pulinhos e jogou os braços em volta da governanta — Você é um anjo Ophelia!
— Seu pai pediu que eu as agradasse antes do almoço, sabem por que não é? — Ela deu um sorriso de canto e Fiona bufou indo para o lavabo.
— Provas, provas, provas. De que adianta meu pai ser meu professor se ele vai agir como professor e não como pai?
— Está delirando Fiona — Cora riu secando as mãos e se sentou a mesa.
— E hoje — Começou seu pai enquanto se servia — Vão ser duas, ciências e matemática.
— Por que tenho que fazer isso? — Fiona fez uma careta se jogando na cadeira. — Isso é tão chato. Eu não vou usar nada disso na vida.
— Vai sim. E nem tudo é chato, Fiona. É bom aprender um pouco de tudo. Assim a gente descobre do que gosta — comentou Cora, e levou uma colher do purê até a boca, divino.
— Você diz isso, mas já tem vinte anos, já sabe um pouco de tudo... e não faz nada.
O pai lançou um olhar breve e pesado para Fiona, mas Cora riu baixo.
— Não é tão simples assim. Eu tenho cogitado medicina... mas ainda não estou pronta pra me mudar pra cidade. E não tenho pressa.
— Medicina? — Elara a olhou com interesse. — Por causa da mamãe?
Cora ergueu os olhos, e soltou um sorriso fraco.
— A mamãe não era médica, só uma alma muito boa.
O pai as observou com a melancolia que sempre surgia quando o assunto chegava na mãe delas. Ela dedicou a vida a ajudar os outros, mas no fim não havia como ajudá-la. E Cora não podia evitar sentir um pouco de culpa.
Ophelia apareceu com uma nova travessa, interrompendo o assunto.
Mas o olhar de Cora se fixou no topo da escada.
O retrato ainda causava dor. Já faziam dois anos que sua mãe se fora, mas a saudade ainda era sufocante. Ela sorria na pintura — o sorriso leve de quem escolhera a simplicidade, mesmo vindo de uma das famílias mais influentes do reino. Crescera na Capital, cercada de luxo, com os melhores professores. Mas se apaixonou por um estudante de ciências e, sem hesitar, trocou o brilho da cidade pela quietude do campo. Plantava flores, ria alto, ajudava os outros, e criava as três filhas com paciência infinita.
Desde sua morte, os cinco se esforçavam para viver com sua ausência ali, distante de tudo. Elara, a mais nova, com quatorze, era dolorosamente parecida com a mãe: Cabelos loiros e ondulados, rosto redondo, olhos grandes e castanhos, era mais doce e graciosa que Fiona e Cora juntas. Fiona, com dezesseis, era enérgica, impulsiva e teimosa. Tinha os cabelos escuros e lisos do pai, a pele cor de canela e os olhos de um verde inquieto. As três eram diferentes em tudo, menos no afeto.
— Você tá escutando? Se for pra universidade na capital vai deixar seu quarto pra mim não é? — Disse Fiona com um sorriso travesso.
— Eu devia ficar, um quarto com maior é só mais espaço para Fiona fazer bagunça — Protestou Elara e as duas começaram a se estapear.
— Ninguém vai ficar com meu quarto.
Depois do almoço, enquanto Elara e Fiona iam para a sala de estudos bufando, Coraline desviou pelo corredor de pedra que levava aos fundos da casa. Empurrou a porta de madeira que rangia sempre do mesmo jeito. O cheiro familiar de terra, álcool e resina a envolveu imediatamente.
O laboratório do pai era uma mistura de estufa, oficina e biblioteca. As prateleiras estavam repletas de frascos âmbar e pequenos potes de cerâmica com etiquetas rabiscadas. Um feixe de luz atravessava a claraboia, pousando sobre a bancada central, iluminando uma única flor com as pétalas separadas e o caule aberto, um serviço em andamento.
— Não encoste nisso — Avisou seu pai entrando no laboratório.
— Eu nem ousaria. Nunca vi essa antes — Cora cruzou os braços parando atrás Do pai enquanto ele se curvava diante da flor e pegava os instrumentos de prata ao lado.
— Véu-de-Mirantha. Essa é uma planta mágica — Ele disse sorrindo e voltou a raspar o caule.
Cora ergueu as sobrancelhas, será que tanto tempo respirando aquele ar tinha o deixado louco?
— Hmm, é alucinógena também?
Seu pai riu e depositou o conteúdo num frasco de vidro.
— Encontraram algumas dessas numa expedição em Tarenthe, nas montanhas.
— Uma flor, no meio das montanhas, no inverno?
— Agora sabe por que chamam ela de mágica. Para os nativos, ele já é bastante conhecida, e é usada há séculos em rituais para provocar estados de torpor ou sonhos vívidos. Uma dose errada, e pode causar coma.
Cora arqueou as sobrancelhas.
— E o senhor guarda isso aí na estufa da nossa casa?
Ele riu baixo.
— Trancado. E com etiqueta vermelha, como todos os que podem matar ou curar, dependendo de quem usa.
Ela observou a flor com atenção, gravando seu formato — delicada, com cinco pétalas levemente translúcidas.
— Parece inofensiva...
— A maioria parece. Mas é por isso que estudamos. Para não nos enganarmos com aparências — ele a olhou, tirou os óculos soltando o ar pelo nariz, e seu tom mudou, mais suave — Eu não sabia dos seus planos sobre cursar medicina.
— É a primeira coisa que me vem à mente quando penso em carreira, mas desaparece logo depois — Cora deu de ombros.
— Por que?
Cora se afastou, passando os dedos distraidamente sob a lombada dos livros.
— Por que é um curso longo, eu vou ficar muito tempo fora, e quando for exercer aqui é longe de tudo, vou ter que me mudar, ficar longe de vocês.
— E o que mais?
— Quem disse que tem mais?
— Eu sei o quanto nos ama Cora, mas sei também que não é apegada assim. Além disso, uma casa é apenas uma construção, eu e as meninas com certeza nos mudariamos para a cidade, seria até melhor para Fiona e Elara terem mais companhia da idade delas.
Cora respirou fundo e assentiu, se virando para encarar o pai.
— Eu quero ajudar a salvar vidas, mas não sei se sou capaz de ver uma se perder sob meus cuidados. Eu vi... Durante aquele surto, a mamãe fazer de tudo para ajudar, e não ser o suficiente. E quando foi a vez dela, apenas observar, sabendo o quanto o que podemos fazer é limitado, é algo que vou carregar pro resto da vida...
— Ho Cora... — Seu pai se levantou, os olhos úmidos.
Cora ouviu passos no corredor e limpou os olhos imediatamente, Ophelia abriu a porta com a respiração ofegante.
— Meu senhor... — chamou — Tem alguém na porta, e deseja falar com o senhor.
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As três irmãs se empilharam atrás da porta do escritório enquanto seu pai conversava com um homem misterioso. Vestia preto dos pés à cabeça, devia ter uns quarenta anos, cabelos castanhos escuros com alguns fios brancos penteados para trás. Uma cicatriz na boca se destacava na pele escura.
— Não consigo ouvir nada — sussurrou Elara.
— Não consigo ver nada — resmungou Fiona.
— É porque não deviam — Ophelia surgiu e puxou as duas pelas orelhas, afastando-as da porta.
— Quem é esse homem? — perguntou Cora.
— Se fosse da sua conta, já saberia — respondeu Ophelia com a sobrancelha franzida.
A porta se abriu.
— Coraline — chamou seu pai.
As quatro se retesaram. Ele fez um gesto para que ela entrasse. Cora olhou para o homem por cima do ombro do pai e, sem dizer nada, o seguiu para dentro do escritório, agora subitamente frio. A porta se fechou atrás deles.
— É um prazer conhecê-la, senhorita Coraline — disse o homem, a voz grave, porém gentil. — Eu me chamo Aiden Alexander e sirvo à coroa como Capitão da Guarda Real.
Alexander. Esse era um nome que aparecia diversas vezes nos livros de história, por incontáveis gerações, sempre ao lado da família real — seus protetores leais. Seus cães de guarda cegos.
Ele tinha olhos cor de mel amáveis, apesar das olheiras de preocupação e das cicatrizes de guerra.
— O prazer é meu, Capitão Alexander.
— Querida... — seu pai segurou a mão dela e a guiou até o sofá. Estavam frias e suadas, um pouco trêmulas até. — Tudo vai parecer confuso agora, mas peço que escute o Capitão Alexander. Tudo vai fazer sentido.
O homem respirou fundo e se sentou na outra ponta do sofá.
— Suponho que a senhorita saiba quem são os De Vance?
— Claro. A família da minha mãe.
— Exatamente. Seu bisavô teve dois filhos, e cada um teve uma filha: Sienna, sua mãe, e Primrose, a nossa rainha.
— Eu conheço a árvore genealógica da minha família, capitão.
Ele assentiu e prosseguiu.
— Há vinte anos, numa noite, durante o banquete da festividade de primavera, o palácio sofreu um ataque. A senhorita deve ter conhecimento das tensões que o reino sofria naquela época.
— Claro. Nosso vizinho Tarenthe tentava tomar as fronteiras depois que o Rei se recusou a oferecer ajuda para o povo que sofria nas mãos de um inverno rigoroso — disse Cora, e seu pai apertou sua mão levemente, num aviso.
Oh. Ela supostamente não deveria falar mal do rei na frente de um guarda da coroa. O homem pigarreou e continuou.
— Rebeldes invadiram o palácio naquela noite para saquear e manter nobres como reféns. A rainha Primrose estava no sétimo mês de gestação. Entrou em trabalho de parto com o choque, e as criadas conseguiram tirá-la do salão por meio das passagens de serviço. Ela deu à luz na ala dos criados. E infelizmente a criança nasceu sem vida.
Sua voz falhou por um momento e ele limpou a garganta antes de prosseguir.
— O problema é que, àquela altura, a rainha já havia sofrido vários abortos. E o rei já tinha outra esposa, uma nobre de Tarenthe, oferecida em casamento como promessa de paz. Naquela situação, um filho de Tarenthe como herdeiro da nossa coroa não era um bom cenário.
— Mas a rainha Primrose tem uma filha, e ela é herdeira.
As mãos de seu pai se contraíram. Cora o olhou, confusa. O capitão continuou:
— Depois de perder a criança, a rainha se isolou numa mansão da família De Vance. E muitos quilômetros dali, numa outra propriedade dos De Vance, Sienna Prydwen dava à luz a duas meninas saudáveis.
A mente de Cora ficou em branco por um segundo. Seu pai prendeu o ar e desviou o olhar para o chão, o maxilar cerrado.
— Duas?
— A você, Coraline Prydwen... e à princesa de Domhall, Cordelia.
Tinha tantas perguntas que não sabia por onde começar. As palavras morreram em sua boca, olhou para seu pai, que cobria a boca com uma mão e olhava para o nada como se estivesse dentro de uma memória.
— Pai? — Cora perguntou, e ele ergueu os olhos marejados.
— Fizemos de tudo para impedir. Sua mãe sofreu tanto... Sienna não queria entregar vocês. Ela nunca se importou com o peso do nome que carregava. Vocês eram mais importantes que qualquer coisa para ela.
— Mas o duque de Vance não aceitaria que sua filha fosse humilhada pela corte por não conseguir dar à luz um herdeiro — o capitão se retesou enquanto seu pai se afastava até a janela. — E jamais permitiria que o filho de uma estrangeira subisse ao trono. Se isso acontecesse, ela seria destituída de seu posto de rainha-mãe e Magdalenne de Tarenthe se tornaria a primeira esposa. Então ele conseguiu convocar um Sábio, para que Sienna não pudesse recusar... e para que o segredo fosse mantido no mais absoluto sigilo.
Sábio.
A corte de Domhall supostamente tem sábios que guiam o reino com seus supostos poderes. As histórias eram absurdas, diziam que alguns viam o futuro, outros já tinham vivido mais de duzentos anos. Na visão de Cora, eram fantasias aumentadas de tanto serem contadas e recontadas. Mas o fato era que havia pessoas poderosas — e perigosas — na corte.
— Naquela noite, eu e Sienna tivemos que jurar lealdade a coroa — explicou seu pai — Sua mãe aceitou o acordo, mas com a condição de que Cordelia sempre fosse sua filha. Entregá-la ao ninho de cobras que é a corte já era doloroso o suficiente. Cordelia sempre soube que é filha de Sienna, e ela a visitava sempre que estava na mansão da família.
— E por que estão me contando isso agora? — perguntou Cora, tentando manter a compostura, mas com o coração tremendo.
— Cordelia foi envenenada — o capitão baixou a voz, sério, urgente. — Está em coma há uma semana. Estamos fazendo tudo que podemos... mas, no fim das contas, não sabemos quando... — uma sombra passou pelos olhos dele, medo, e o "se" não conseguiu ser proferido — ela vai acordar.
— Então vocês querem substituir a princesa herdeira de novo? — cuspiu com a voz trêmula. — E o que acontece quando atacarem outra vez? Tem mais alguma irmã que eu não saiba?
— Coraline...
— Isso tudo é loucura, pai. É completamente absurdo... — Cora se levantou e saiu da sala a passos largos.
As irmãs já não estavam mais bisbilhotando — Ophelia devia tê-las colocado para correr.
Desceu as escadas ouvindo o sangue bombear nos ouvidos, a cabeça latejando. Parou de repente, olhando para a pintura da mãe no topo da escada.
Cerrou os dentes e correu para fora de casa.
Cora correu até os estábulos, selou sua égua e cavalgou para além dos portões da propriedade.
Era algo que fazia com frequência — talvez o vento nos ouvidos abafasse seus pensamentos, e a mente clareava.
Parou ao chegar ao pequeno lago a alguns minutos de casa. Subiu na árvore cujos troncos já traziam as marcas de seus pés — um refúgio de tantos anos. Não era uma casa na árvore propriamente dita, mas um assoalho de madeira com alguns tecidos presos aos galhos e almofadas. Acendeu as velas dentro dos frascos de vidro e encarou o pavio arder.
Se deitou ali, encarando as estrelas no céu escuro.
Sabia pouco sobre a família de sua mãe. Sabia que tinha pessoas importantes, e dela já vieram muitos Reis e Rainhas consortes, mas não sabia que tinha pessoas com seu sangue tão egoístas.
O herdeiro ser filho de uma estrangeira não devia importar, ele nasceu naquela terra, foi criado ali e tem o sangue do rei. Sua mãe era uma víbora sedenta por poder? Ou apenas mais uma jovem forçada a um acordo comercial?
Arrancaram sua irmã dos braços dos pais para proteger o ego de pessoas poderosas.
Aquele homem apareceu como se fizesse um pedido, mas Cora sabia: não havia escolha ali.
Mataram a verdadeira princesa. Atentaram contra sua irmã. Agora Cora seria só mais um acessório substituível.
Tentavam tanto proteger a imagem... e nunca foram capazes de proteger a própria princesa.
Agora entendia a aversão dos pais pela coroa. Agora via por que, mesmo com uma linhagem nobre, sua mãe escolhera se afastar. Mas os problemas da corte corrompida ainda a seguiram.
A cabeça doía, os pensamentos transbordavam.
Decidiu ignorar.
E adormeceu com a vista para o manto escuro salpicado de prata.
*
Cora atravessou os portões da propriedade junto com o anoitecer. Avistou nas escadas da frente da casa uma figura encolhida nos degraus, abraçando as próprias pernas.
— Cora? — Fiona se levantou.
— Fiona? O que está fazendo aqui?
— Estava te esperando. Vi quando saiu da sala do papai... você parecia assustada.
Assustada... Cora pensou que estivesse com raiva, mas não. Não havia por que se irritar com algo que já estava feito a muito tempo. O medo era do agora — e do que estava por vir.
— Aquele homem... ele veio pedir que eu fosse para a capital — Disse vagamente.
— Por quê? Quem ele é?
Cora respirou fundo e apertou as rédeas.
— Alguém que trabalha para nossa família.
— E o papai?
— Ele não gosta da ideia. Você sabe como esses nobres são.
— Eu iria, se fosse você.
— Por quê?
— Porque você está perdendo tempo nesse lugar — disse Fiona, pegando as rédeas da irmã e seguindo para os estábulos. — Sério, você devia fazer algo de verdade na capital. Sabe... Eu não gosto de estudar. Matemática me apavora. Olhar um livro já faz minha mente voar pra qualquer lugar, menos pro que eu tô lendo. Mas você? Você sempre foi inteligente. Focada. Sem medo.
— Não é verdade. Estou com bastante medo agora.
— Mas vai mesmo assim, né?
Não por coragem, não por vontade.
Chegaram ao estábulo. Fiona começou a tirar a sela da égua.
— Lembra daquele velho nojento perturbando as meninas na saída da escola? Você foi lá e deu uma lição nele, mesmo sabendo que ele era da guarda.
— Foi ótimo passar a noite na cadeia.
— A festa do pijama que as meninas fizeram pra te agradecer foi melhor. Cora, você é incrível — disse Fiona, segurando suas mãos. — E eu sempre achei esse lugar pequeno demais pra sua grandiosidade.
— Tá me elogiando tanto por quê? Não vou deixar meu quarto pra você.
As duas riram. Fiona baixou os olhos, quase triste.
— Você nunca teve vontade de sair daqui, Cora?
— Por que eu teria? Tenho vocês. Nunca precisei me preocupar.
— Eu tenho. Quando fizer dezoito, quero me alistar na guarda.
— A guarda? Eu não fazia ideia.
— É. Não sou inteligente como você ou o papai. Nem doce como a mamãe ou a Elara. Mas descobri que sou forte, ajudando o cocheiro com os sacos de ração percebi isso. E pensei: talvez eu possa ajudar as pessoas do meu jeito.
— Quem disse que você não é inteligente? Você sempre ganha no pique-esconde com suas táticas mirabolantes. Você é gentil, e divertida. Você vai ser a melhor soldado do mundo, Fiona.
Fiona sorriu e a abraçou, fungando em seu ombro. Cora a abraçou de volta e ficaram ali por alguns instantes, até o vento gelado da manhã atravessou as janelas, bagunçando seus cabelos. Fiona estremeceu.
— Entra. Eu vou logo depois de você — Disse Cora num sussurro.
— Certo. Não demora — disse Fiona limpando os olhos e correndo para casa.
Cora passou a mão pela crina da égua e respirou fundo.
Assim que entrou na casa, Cora se deparou com a figura imponente do Capitão na sala. Estava sentado no sofá, a postura reta mesmo em descanso, e a xícara de porcelana nas mãos ásperas parecia pequena e deslocada. As cicatrizes que riscavam seu rosto contrastavam com a suavidade do ambiente — uma casa de campo simples, com o cheiro morno de café fresco e madeira aquecida pela lareira crepitando no canto
— Senhorita Coraline.
— Capitão Alexander.
Baixou a xícara, ainda meio cheia, com a expressão carregada, e olhou para ela com olhos sombrios, marcados por noites mal dormidas.
— Você pensou o suficiente?
Cora hesitou. Olhou para a xícara, para o uniforme, para o jeito contido com que ele segurava a própria respiração. Então respondeu, mais por instinto do que certeza:
— Esqueci de perguntar, mas... é um convite ou um ultimato?
Alexander sustentou o olhar por um instante. Em seguida, desviou os olhos e colocou a xícara sobre a mesinha lateral com extremo cuidado.
— É um pedido de socorro.
Ele se levantou com um rangido das botas pesadas e, com um gesto cerimonioso e surpreendente, ajoelhou-se. Abaixou a cabeça, pôs um punho no chão e a outra mão sobre o coração.
— Em nome do Rei, e do nosso Reino, eu imploro.
Cora ficou paralisada. O gesto do Capitão — rígido, solene, desesperado — a desarmou.
— Vocês não foram capazes de proteger a princesa... Duas vezes — ela disse num sussurro, sem conseguir controlar o tremor na voz. — O que vai acontecer comigo?
Alexander ergueu o rosto, ainda ajoelhado.
— Eu fui descuidado. Cordelia é... um espírito livre — Ele tentou sorrir, mas o que apareceu foi mais uma sombra de lembrança do que uma expressão de alegria — Eu a vi crescer. Já a tirei de árvores, fiz vigília na janela dela por noites, só para evitar que escapasse escondida... Ela vivia roubando meu cavalo para cavalgar sozinha — ele riu, um som curto, mas cheio de ternura. — Um momento de descuido, e quase a perdemos para sempre.
Ele se levantou devagar, como se o peso da memória o puxasse para baixo.
— Não posso prometer que nada de mal vai acontecer. Mas vou fazer tudo diferente desta vez. Me ajude a acabar com isso de uma vez por todas. Eu não... — ele parou, e respirou fundo. — Eu não posso ver o Rei e a Rainha, meus estimados amigos, passarem por essa dor outra vez, e não posso deixar o Reino desamparado.
Cora se abraçou, apertando os próprios braços. Seu coração batia acelerado. Não era medo apenas — era um vazio estranho, uma ânsia silenciosa.
— Estou com medo... — murmurou.
Alexander soltou o ar, deixando os ombros caírem.
— Não posso culpá-la por isso — respondeu com sinceridade. — Eu também estou.
O silêncio se estendeu entre eles. Pela janela, as folhas balançavam devagar ao vento. Cora olhou para fora, depois para o chão, e finalmente de volta para ele.
— Como ela é?
Alexander suspirou, e seus olhos se perderam num ponto distante da parede.
— Rebelde. Esperta. Com um senso de justiça que ultrapassa qualquer senso de autopreservação.
Ele sorriu de novo — agora de um jeito mais suave, mais sincero.
— Eu acho que usaria essas palavras pra descrever a mamãe — disse Cora.
— Cordelia sempre se sentia à margem. Mas... as visitas de Sienna eram seu porto seguro. Ajudaram a se levantar muitas vezes.
— À margem?
Alexander assentiu devagar.
— A vida de um herdeiro nunca é fácil. E a de um herdeiro num Reino em colapso... é insuportável.
Cora passou a língua pelos lábios, tentando encontrar palavras. Não havia resposta fácil.
— Acha que eu consigo fazer isso?
Alexander demorou a responder. Olhou para ela com uma intensidade que parecia atravessar a superfície.
— Eu não sei. Não te conheço bem. Mas... quando conversei com seu pai, ele disse que sua bondade e coragem seriam capazes de qualquer coisa.
Ele fez uma pausa, inclinando a cabeça.
— Ele me contou sobre a vez em que você foi presa.
Cora arregalou os olhos, sem saber se ria ou se se encolhia de vergonha.
— Não é como se eu não tivesse chorado e chamado pelo papai a noite inteira...
— Mas você foi presa por ajudar pessoas que nem conhecia — disse o Capitão, com um brilho orgulhoso nos olhos.
Cora abaixou os olhos. Cordelia. Pensou no que era carregar um pedaço de alguém que nunca conheceu — e agora, talvez, se tornar esse pedaço.
— Conto com sua ajuda, então, capitão Alexander.
Ele assentiu, com firmeza.
— Eu serei eternamente grato, Coraline.
Ela balançou a cabeça com leveza, sentindo um frio estranho no peito.
Cora subiu para seu quarto. Elara dormia tranquilamente em sua cama, os cílios longos e os cabelos claros brilhando sob a luz suave do amanhecer. Na ponta da cama, Fiona cochilava em uma posição desajeitada, os braços e pernas largados sem nenhuma elegância. Um leve ronco nasal escapava dela a cada expiração.
Cora sorriu com ternura ao vê-las assim. Deitou-se devagar entre as duas, tentando não acordá-las, mas Fiona resmungou, virando-se.
— Line...? — murmurou Elara, esfregando os olhos inchados de sono. — Você voltou.
— Desculpa por preocupar vocês — sussurrou Cora, apertando com carinho a mão pequena da irmã.
— Está tudo bem?
— Mais ou menos... A gente conversa depois, tudo bem? Volte a dormir...
Elara não respondeu, apenas aninhou-se contra ela, Fiona, com um grunhido preguiçoso, se aproximou também, jogando um braço pesado sobre o peito da irmã.
Assim, entrelaçadas como nos velhos tempos, dormiram as três.
---
— Ir embora?! Tão rápido? Hoje?! Por que tão de repente?! — Elara arfava entre lágrimas, o rosto vermelho e a voz embargada.
— Eu sei, é difícil — disse Cora — Mas é urgente.
— Quando você volta, Line? — Elara a Abraçou pela cintura com força, como se pudesse impedir que ela fosse.
Cora demorou um pouco para responder. Alisou os cabelos finos da irmã, tentando conter a própria emoção.
— Eu não sei, pode levar algumas semanas… ou meses. Talvez eu nem consiga visitar vocês nesse tempo.
— Pare de ser tão chorona, Lara! — esbravejou Fiona, embora sua voz falhasse um pouco. — Devia estar desejando uma boa viagem!
— Mas você também está chorando!
— É o tempo! Tá muito frio e deixa meus olhos úmidos! — Fiona correu e abraçou as duas, escondendo o rosto no ombro de Cora. — Volta logo, senão a gente vai até lá te buscar!
Cora riu, ainda que com os olhos marejados. Passou as mãos pelos cabelos das duas com cuidado.
— Não precisa se preocupar. Demore muito ou pouco, eu vou voltar. Prometo.
As duas assentiram, fungando. Fiona tirou o lenço do bolso de Elara e limpou seu nariz com um gesto desajeitado, e Elara retribuiu em seguida, limpando o de Fiona com uma delicadeza atrapalhada. Cora sorriu, o coração apertado.
— Já arrumei suas coisas, querida — disse Ophelia, aproximando-se com um sorriso calmo. Cora se virou e a abraçou forte.
— Obrigada, Ophe. Aproveite pra descansar agora que não vai ter tantos vestidos pra remendar.
— Boba — respondeu ela com carinho. — Não é nenhum incômodo.
Cora a abraçou de novo, mais apertado, como quem não queria soltar.
Seu pai, então, se aproximou. Parou diante dela, silencioso. As mãos trêmulas. As olheiras fundas. Os olhos úmidos.
— O senhor parece mais preocupado que eu, papai — disse Cora, pegando suas mãos. — Por favor, durma direito. Não pule as refeições. Saia de vez em quando pra tomar um pouco de sol. Promete?
Ele assentiu, engolindo em seco, e a puxou para um abraço apertado.
— Vou estar aqui, esperando quando você voltar, minha filha.
Ela fechou os olhos por um instante, sentindo o calor familiar do pai.
— Eu sei. Até logo — disse, abrindo um sorriso que tentava disfarçar a saudade que já doía no peito.
E então se afastou, com os olhos presos nos rostos de quem mais amava.
Eles viajariam três horas a cavalo até a cidade onde estava a comitiva do Capitão, para então seguir uma longa jornada de uma semana até a capital.
Não falaram muito durante o trajeto, o capitão apenas explicou que ele estava ali com pessoas da confiança dele, que a ajudariam a se tornar Cordelia, mas que acreditavam que ela era apenas uma sombra, alguém fisicamente semelhante com pessoas importantes, e completamente descartáveis. Ele não disse, mas Cora sabia exatamente o que significava essa posição.
Eles chegaram a uma pousada simpática na cidade depois de algumas horas. Subiram as escadas de madeira até um quarto limpo e aconchegante.
— Vou trazer sua comida em breve. Não saia deste quarto a não ser que eu venha te buscar, entendeu? E não abra a porta a menos que eu diga que sou eu.
— Entendido.
— Tem um baú com alguns itens que pode precisar embaixo da cama.
— Obrigada.
Ele acenou com a cabeça e saiu.
Cora suspirou e puxou o baú. Havia alguns vestidos simples, mas que, pela qualidade do material e da costura sofisticada, claramente eram caros. Havia também itens de higiene, roupas íntimas, sapatos confortáveis, uma capa grossa e um medalhão. Quando o abriu, viu um rosto extremamente parecido com o seu: o formato retangular do rosto, os olhos grandes e amendoados, lábios finos em cima e carnudos embaixo. Mas seus cabelos eram longos, claros, brilhantes e cheios de ondas — diferentes dos lisos e escuros de Cora. Olhos caídos, sorriso melancólico... ela parecia tão pálida e frágil. Aquela era sua irmã, Cordelia.
Guardou o medalhão e escolheu algumas roupas. Tomou uma ducha rápida e, ao sair e se vestir, escutou uma batida na porta.
— Sou eu — disse Alexander, e Cora abriu.
Ele empurrou um carrinho para dentro do quarto.
— Aqui está seu jantar. E quero que conheça quem vai te acompanhar quando eu não estiver presente. Cerise, Riona — ele chamou, e duas figuras entraram.
Cerise não era muito alto, usava roupas pesadas e escuras sobre o corpo definido. Tinha ombros largos e rosto quadrado, olhos escuros pequenos e afiados, lábios carnudos, as feições delineadas numa expressão carrancuda e cabelos curtos pretos. Bonito, muito bonito.
Já Riona tinha um sorriso acolhedor e olhos claros e divertidos, pele escura, lábios grossos, cabelos escuros, amarrados no topo da cabeça com várias tranças na raiz. Seu corpo curvilíneo vestia o mesmo uniforme.
— Muito prazer! — Riona sorriu, acenando.
— O prazer é meu. Por favor, cuidem de mim. Estou em suas mãos.
— Pode contar conosco. Você realmente se parece com a princesa, mas vou ter algum trabalho até te deixar perfeita — Riona fez um biquinho. — Ah, é! Eu vou te acompanhar como sua criada daqui pra frente. Já Cerise vai continuar como soldado. Pode comer e descansar. Amanhã, quando partirmos, começamos as lições.
— Certo, obrigada.
Ela sorriu, girando nos saltos para sair, e Cerise fez uma mesura antes de se retirar também.
— Bom descanso — disse Alexander.
— O senhor também. Boa noite.
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— Você ficou relaxada não é? Mesmo sendo uma sombra — disse Riona, dando a volta em torno de Cora e examinando-a de cima a baixo com olhos treinados.
— A situação exige urgência, então me perdoe por pegá-la de surpresa, Célia — respondeu Alexander, usando o nome falso que haviam acordado.
Célia Rhymes: nobre menor, filha de um contribuinte da guarda de uma cidade esquecida, treinada desde jovem para se tornar sombra do reino.
— Mas você conhece o básico, ao menos? — Riona arqueou uma sobrancelha.
— O que seria “o básico”?
— A Princesa Cordelia fala cinco dialetos, é mestra no piano, violino e harpa, uma exímia dançarina e cantora...
— Ah, o básico — Cora soltou o ar, ansiosa — Acredito que não tenha motivos para se preocupar.
— Prefiro ver com meus próprios olhos — disse Riona, piscando. — Primeiro o piano. Sonata para o Luar, de Finch Van Syprees. — Indicou o instrumento posicionado no salão da pousada.
Cora assentiu e se sentou. Seus dedos pousaram sobre as teclas com naturalidade. A madeira, fria sob os dedos, contrastava com a memória quente da infância — aquela era a música favorita de sua mãe. Tocavam juntas sempre que podiam.
Começou a tocar e o quarto ao redor sumiu, seus olhos pareceram um pouco mais leves, o piano estava quase esquecido em sua casa desde a partida da mãe, mas era bom ouvir aquele som de novo.
Quando concluiu, ergueu os olhos para Riona, que sorria satisfeita.
— Dança.
Foram para um dos quartos mais amplos. Cerise se posicionou no centro e estendeu a mão. Cora a aceitou — era áspera, marcada por calos e cicatrizes, mas quente e firme. Ele pousou uma mão na cintura dela, e ela o segurou pelo ombro. Tenso no início, o movimento se tornou fluido com o som das palmas compassadas de Riona. Ele dançava bem. Muito bem. E era ainda mais bonito de perto.
— Muito bom! — exclamou Riona. Seguiram-se testes de língua, política, geografia e história. Cora passou por todos com facilidade.
A noite caiu. Estavam reunidos no quarto de Cora na pousada.
— Devo admitir que está muito bem preparada — disse Riona. — Perdoe-me por ter duvidado de você.
— Não se preocupe. Vendo o retrato da princesa, devo admitir que talvez eu devesse ter cuidado um pouco mais da aparência.
— Isso, ao menos, podemos resolver facilmente. Primeiro: sua pele está bronzeada demais e há algumas sardas visíveis — começou Riona, já em modo profissional. — O cabelo... bem, usaremos apliques, mas será necessário clarear alguns tons. A estatura é perfeita, a cintura aceitável, não exigirá grande tortura. No entanto...
Fez uma pausa dramática, olhando para Cora com pesar fingido.
— Uma grave escassez no busto. E Cordelia tem um apreço por decotes generosos.
— Não estamos na época do frio?
— Cordelia gosta muito de decotes — reforçou.
— Entendo. Capitão Alexander — chamou Cora. Ele ergueu os olhos do monte de papéis que examinava. — Qual história estão usando para justificar a ausência da princesa?
— Que ela fugiu para a mansão da família depois de uma discussão com a rainha. Nada fora do comum.
— A mansão de Vance fica ao noroeste, perto da fronteira com Tarenthe, correto? Uma região muito fria. Os trajes de lá seguem um estilo diferente da capital... podemos usar essa estadia para justificar uma mudança súbita nas roupas da princesa.
Riona bateu palmas, encantada.
— Eu gostei de você, Sombra. Cordelia sempre gostou de ser o centro das atenções, então uma reinvenção repentina faz parte do repertório. Mudamos o estilo, fechamos um pouco os vestidos para esconder certa... Ausência — sorriu de canto — e ainda assim respeitamos a extravagância dela. Muito bem pensado.
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A noite caiu, e Cora sentia o peso do dia nos ombros. O Capitão fazia sua ronda habitual, conferindo trancas e janelas com precisão quase ritual. Era cauteloso. Paranoico, talvez. Ela suspirou e baixou os olhos para a lista de tarefas que Riona deixara para sua rotina nas próximas semanas. Memorizar, praticar, aperfeiçoar.
— Capitão — chamou, apertando as folhas entre os dedos.
Ele se virou, o rosto parcialmente iluminado pela vela sobre a mesa.
— Pode me chamar pelo nome.
— Claro, como queira. Alexander, vocês sabem quem fez isso com Cordelia?
Os ombros largos dele se retesaram sob o tecido grosso do casaco escuro, que parecia absorver a luz.
— Ainda não sabemos. Um dia ela estava bem, no outro... não acordou mais. Suspeitamos de veneno. Naquele dia, havia visitantes de Calethia no palácio. O clima estava... tenso, por alguns problemas recentes, mas jamais imaginariamos que culminaria num ataque.
— Calethia... o país da terceira esposa — murmurou Cora. — Como ela é?
— Lady Mirande. Alegre, gentil. Tem um filho pequeno, três anos. Cuida dos acordos comerciais entre Calethia e Domhall principalmente. Desde que chegou, financiou a reforma dos portos e criou leis sobre o comércio marítimo. O setor cresceu bastante graças a ela.
— Então a relação com Calethia nunca esteve tão boa.
— Exato. E por serem uma ilha distante, jamais foram tocados pelas guerras do continente. Sempre estiveram do nosso lado... financeiramente falando.
— Não são um poderio militar. Seria burrice atacar a herdeira de um reino que tem feito tanto por eles.
— Concordo. Não há lógica. Mas... também não podemos descartar nada. Calethia tem acordos com mais de um reino.
— E qual era a fonte da tensão?
Alexander hesitou, o olhar voltando à janela.
— Alguns problemas no mar — respondeu, vago. — Mas... se formos puxar o fio desde que a Rainha perdeu a primeira herdeira... qualquer um pode ser visto como inimigo.
Cora ficou em silêncio por alguns segundos, depois falou baixo:
— Posso te fazer outra pergunta? Se não estiver incomodando...
— Não se preocupe — disse ele, apoiando-se casualmente no batente da janela. — Pergunte o que quiser.
— Qual foi exatamente a promessa feita ao Sábio?
Ele respirou fundo, demorando alguns segundos antes de responder.
— Só quatro pessoas sabem com exatidão o que foi dito naquela noite: seu pai, a Rainha, o Patriarca... e o próprio Sábio.
— E o Rei?
— Não sabe que Cordelia não é sua filha.
Cora se endireitou, surpresa.
— Como isso é possível?
— Durante o ataque, escoltei a Rainha até a ala dos criados. Anielisse, a criada que está com ela desde que subiu ao trono aos vinte e um, foi junto. O palácio era caos. Chamaram o Rei, mas ele não conseguiu nos alcançar. Quem veio foi o pai da Rainha. Mandou levá-la imediatamente para os aposentos. Anielisse fez o parto... e a criança não sobreviveu. O Patriarca, então, mandou dizer ao Rei que a gravidez se tornara de risco e que a Rainha precisava ser levada a propriedade da família, onde receberia cuidados adequados e estaria segura. O Rei concordou. A Rainha passou cerca de duas semanas se recuperando. Depois seguiram para a residência da sua família... com o Sábio.
Ele fez uma pausa, a voz grave, mais baixa agora:
— O Patriarca foi claro. Esse segredo não deveria ser revelado. E eu... mantenho minha palavra. Pelo Reino. Pela honra dos meus amigos.
— Como funciona um acordo com o Sábio?
— Só a família real entende de verdade como os Sábios funcionam, eles são como conselheiros nas sombras.
— E o senhor acredita que eles tem algo... Extraordinário?
— Sinceramente, não sei. Eu sei que mantenho segredo por lealdade, e não por causa de algum pacto com algum bruxo ou seja lá o que eles se consideram. É meu trabalho proteger o Reino, e meus amigos.
— Entendo... obrigada pelo seu tempo, Capitão.
Ele assentiu, com um sorriso breve.
— Prometo protegê-la o melhor que puder. Ninguém imaginava que a vida de Cordelia estivesse sob ameaça.
Cora assentiu devolvendo o sorriso. O capitão fez uma reverência e saiu, trancando a porta por fora.
Cora se sentou na cama, o coração inquieto. Nunca precisou se preocupar com nada. Teve tempo de sobra para aprender idiomas, música, para viajar, observar, absorver. Mas agora, tudo era ameaça.
Cordelia havia sido pega de surpresa — e viva por pouco. Mas... se o objetivo fosse assassiná-la, por que o trabalho não fora concluído?
Ela se levantou, caminhando até a janela. Esperando que o vidro frio sob a testa ajudasse a clarear os pensamentos. Os dedos tamborilaram no parapeito.
Um amador teria feito isso?
Mas um amador correria esse risco?
Se alguém ganharia algo com sua morte... Falhar não era uma opção.
Por que Cordelia ainda estava viva?
Tudo fora tratado como tentativa de golpe. Mas ninguém questionava o fracasso da tentativa?
Pensou em sair da cabine, procurar Alexander, mas a dúvida travou seus pés. Talvez nem ele soubesse tudo. Talvez... ninguém ali fosse digno de confiança.
Apoiada contra a parede, murmurou para si mesma:
— Em que história você foi se meter, Coraline?
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