Eles viajariam três horas a cavalo até a cidade onde estava a comitiva do Capitão, para então seguir uma longa jornada de uma semana até a capital.
Não falaram muito durante o trajeto, o capitão apenas explicou que ele estava ali com pessoas da confiança dele, que a ajudariam a se tornar Cordelia, mas que acreditavam que ela era apenas uma sombra, alguém fisicamente semelhante com pessoas importantes, e completamente descartáveis. Ele não disse, mas Cora sabia exatamente o que significava essa posição.
Eles chegaram a uma pousada simpática na cidade depois de algumas horas. Subiram as escadas de madeira até um quarto limpo e aconchegante.
— Vou trazer sua comida em breve. Não saia deste quarto a não ser que eu venha te buscar, entendeu? E não abra a porta a menos que eu diga que sou eu.
— Entendido.
— Tem um baú com alguns itens que pode precisar embaixo da cama.
— Obrigada.
Ele acenou com a cabeça e saiu.
Cora suspirou e puxou o baú. Havia alguns vestidos simples, mas que, pela qualidade do material e da costura sofisticada, claramente eram caros. Havia também itens de higiene, roupas íntimas, sapatos confortáveis, uma capa grossa e um medalhão. Quando o abriu, viu um rosto extremamente parecido com o seu: o formato retangular do rosto, os olhos grandes e amendoados, lábios finos em cima e carnudos embaixo. Mas seus cabelos eram longos, claros, brilhantes e cheios de ondas — diferentes dos lisos e escuros de Cora. Olhos caídos, sorriso melancólico... ela parecia tão pálida e frágil. Aquela era sua irmã, Cordelia.
Guardou o medalhão e escolheu algumas roupas. Tomou uma ducha rápida e, ao sair e se vestir, escutou uma batida na porta.
— Sou eu — disse Alexander, e Cora abriu.
Ele empurrou um carrinho para dentro do quarto.
— Aqui está seu jantar. E quero que conheça quem vai te acompanhar quando eu não estiver presente. Cerise, Riona — ele chamou, e duas figuras entraram.
Cerise não era muito alto, usava roupas pesadas e escuras sobre o corpo definido. Tinha ombros largos e rosto quadrado, olhos escuros pequenos e afiados, lábios carnudos, as feições delineadas numa expressão carrancuda e cabelos curtos pretos. Bonito, muito bonito.
Já Riona tinha um sorriso acolhedor e olhos claros e divertidos, pele escura, lábios grossos, cabelos escuros, amarrados no topo da cabeça com várias tranças na raiz. Seu corpo curvilíneo vestia o mesmo uniforme.
— Muito prazer! — Riona sorriu, acenando.
— O prazer é meu. Por favor, cuidem de mim. Estou em suas mãos.
— Pode contar conosco. Você realmente se parece com a princesa, mas vou ter algum trabalho até te deixar perfeita — Riona fez um biquinho. — Ah, é! Eu vou te acompanhar como sua criada daqui pra frente. Já Cerise vai continuar como soldado. Pode comer e descansar. Amanhã, quando partirmos, começamos as lições.
— Certo, obrigada.
Ela sorriu, girando nos saltos para sair, e Cerise fez uma mesura antes de se retirar também.
— Bom descanso — disse Alexander.
— O senhor também. Boa noite.
---
— Você ficou relaxada não é? Mesmo sendo uma sombra — disse Riona, dando a volta em torno de Cora e examinando-a de cima a baixo com olhos treinados.
— A situação exige urgência, então me perdoe por pegá-la de surpresa, Célia — respondeu Alexander, usando o nome falso que haviam acordado.
Célia Rhymes: nobre menor, filha de um contribuinte da guarda de uma cidade esquecida, treinada desde jovem para se tornar sombra do reino.
— Mas você conhece o básico, ao menos? — Riona arqueou uma sobrancelha.
— O que seria “o básico”?
— A Princesa Cordelia fala cinco dialetos, é mestra no piano, violino e harpa, uma exímia dançarina e cantora...
— Ah, o básico — Cora soltou o ar, ansiosa — Acredito que não tenha motivos para se preocupar.
— Prefiro ver com meus próprios olhos — disse Riona, piscando. — Primeiro o piano. Sonata para o Luar, de Finch Van Syprees. — Indicou o instrumento posicionado no salão da pousada.
Cora assentiu e se sentou. Seus dedos pousaram sobre as teclas com naturalidade. A madeira, fria sob os dedos, contrastava com a memória quente da infância — aquela era a música favorita de sua mãe. Tocavam juntas sempre que podiam.
Começou a tocar e o quarto ao redor sumiu, seus olhos pareceram um pouco mais leves, o piano estava quase esquecido em sua casa desde a partida da mãe, mas era bom ouvir aquele som de novo.
Quando concluiu, ergueu os olhos para Riona, que sorria satisfeita.
— Dança.
Foram para um dos quartos mais amplos. Cerise se posicionou no centro e estendeu a mão. Cora a aceitou — era áspera, marcada por calos e cicatrizes, mas quente e firme. Ele pousou uma mão na cintura dela, e ela o segurou pelo ombro. Tenso no início, o movimento se tornou fluido com o som das palmas compassadas de Riona. Ele dançava bem. Muito bem. E era ainda mais bonito de perto.
— Muito bom! — exclamou Riona. Seguiram-se testes de língua, política, geografia e história. Cora passou por todos com facilidade.
A noite caiu. Estavam reunidos no quarto de Cora na pousada.
— Devo admitir que está muito bem preparada — disse Riona. — Perdoe-me por ter duvidado de você.
— Não se preocupe. Vendo o retrato da princesa, devo admitir que talvez eu devesse ter cuidado um pouco mais da aparência.
— Isso, ao menos, podemos resolver facilmente. Primeiro: sua pele está bronzeada demais e há algumas sardas visíveis — começou Riona, já em modo profissional. — O cabelo... bem, usaremos apliques, mas será necessário clarear alguns tons. A estatura é perfeita, a cintura aceitável, não exigirá grande tortura. No entanto...
Fez uma pausa dramática, olhando para Cora com pesar fingido.
— Uma grave escassez no busto. E Cordelia tem um apreço por decotes generosos.
— Não estamos na época do frio?
— Cordelia gosta muito de decotes — reforçou.
— Entendo. Capitão Alexander — chamou Cora. Ele ergueu os olhos do monte de papéis que examinava. — Qual história estão usando para justificar a ausência da princesa?
— Que ela fugiu para a mansão da família depois de uma discussão com a rainha. Nada fora do comum.
— A mansão de Vance fica ao noroeste, perto da fronteira com Tarenthe, correto? Uma região muito fria. Os trajes de lá seguem um estilo diferente da capital... podemos usar essa estadia para justificar uma mudança súbita nas roupas da princesa.
Riona bateu palmas, encantada.
— Eu gostei de você, Sombra. Cordelia sempre gostou de ser o centro das atenções, então uma reinvenção repentina faz parte do repertório. Mudamos o estilo, fechamos um pouco os vestidos para esconder certa... Ausência — sorriu de canto — e ainda assim respeitamos a extravagância dela. Muito bem pensado.
---
A noite caiu, e Cora sentia o peso do dia nos ombros. O Capitão fazia sua ronda habitual, conferindo trancas e janelas com precisão quase ritual. Era cauteloso. Paranoico, talvez. Ela suspirou e baixou os olhos para a lista de tarefas que Riona deixara para sua rotina nas próximas semanas. Memorizar, praticar, aperfeiçoar.
— Capitão — chamou, apertando as folhas entre os dedos.
Ele se virou, o rosto parcialmente iluminado pela vela sobre a mesa.
— Pode me chamar pelo nome.
— Claro, como queira. Alexander, vocês sabem quem fez isso com Cordelia?
Os ombros largos dele se retesaram sob o tecido grosso do casaco escuro, que parecia absorver a luz.
— Ainda não sabemos. Um dia ela estava bem, no outro... não acordou mais. Suspeitamos de veneno. Naquele dia, havia visitantes de Calethia no palácio. O clima estava... tenso, por alguns problemas recentes, mas jamais imaginariamos que culminaria num ataque.
— Calethia... o país da terceira esposa — murmurou Cora. — Como ela é?
— Lady Mirande. Alegre, gentil. Tem um filho pequeno, três anos. Cuida dos acordos comerciais entre Calethia e Domhall principalmente. Desde que chegou, financiou a reforma dos portos e criou leis sobre o comércio marítimo. O setor cresceu bastante graças a ela.
— Então a relação com Calethia nunca esteve tão boa.
— Exato. E por serem uma ilha distante, jamais foram tocados pelas guerras do continente. Sempre estiveram do nosso lado... financeiramente falando.
— Não são um poderio militar. Seria burrice atacar a herdeira de um reino que tem feito tanto por eles.
— Concordo. Não há lógica. Mas... também não podemos descartar nada. Calethia tem acordos com mais de um reino.
— E qual era a fonte da tensão?
Alexander hesitou, o olhar voltando à janela.
— Alguns problemas no mar — respondeu, vago. — Mas... se formos puxar o fio desde que a Rainha perdeu a primeira herdeira... qualquer um pode ser visto como inimigo.
Cora ficou em silêncio por alguns segundos, depois falou baixo:
— Posso te fazer outra pergunta? Se não estiver incomodando...
— Não se preocupe — disse ele, apoiando-se casualmente no batente da janela. — Pergunte o que quiser.
— Qual foi exatamente a promessa feita ao Sábio?
Ele respirou fundo, demorando alguns segundos antes de responder.
— Só quatro pessoas sabem com exatidão o que foi dito naquela noite: seu pai, a Rainha, o Patriarca... e o próprio Sábio.
— E o Rei?
— Não sabe que Cordelia não é sua filha.
Cora se endireitou, surpresa.
— Como isso é possível?
— Durante o ataque, escoltei a Rainha até a ala dos criados. Anielisse, a criada que está com ela desde que subiu ao trono aos vinte e um, foi junto. O palácio era caos. Chamaram o Rei, mas ele não conseguiu nos alcançar. Quem veio foi o pai da Rainha. Mandou levá-la imediatamente para os aposentos. Anielisse fez o parto... e a criança não sobreviveu. O Patriarca, então, mandou dizer ao Rei que a gravidez se tornara de risco e que a Rainha precisava ser levada a propriedade da família, onde receberia cuidados adequados e estaria segura. O Rei concordou. A Rainha passou cerca de duas semanas se recuperando. Depois seguiram para a residência da sua família... com o Sábio.
Ele fez uma pausa, a voz grave, mais baixa agora:
— O Patriarca foi claro. Esse segredo não deveria ser revelado. E eu... mantenho minha palavra. Pelo Reino. Pela honra dos meus amigos.
— Como funciona um acordo com o Sábio?
— Só a família real entende de verdade como os Sábios funcionam, eles são como conselheiros nas sombras.
— E o senhor acredita que eles tem algo... Extraordinário?
— Sinceramente, não sei. Eu sei que mantenho segredo por lealdade, e não por causa de algum pacto com algum bruxo ou seja lá o que eles se consideram. É meu trabalho proteger o Reino, e meus amigos.
— Entendo... obrigada pelo seu tempo, Capitão.
Ele assentiu, com um sorriso breve.
— Prometo protegê-la o melhor que puder. Ninguém imaginava que a vida de Cordelia estivesse sob ameaça.
Cora assentiu devolvendo o sorriso. O capitão fez uma reverência e saiu, trancando a porta por fora.
Cora se sentou na cama, o coração inquieto. Nunca precisou se preocupar com nada. Teve tempo de sobra para aprender idiomas, música, para viajar, observar, absorver. Mas agora, tudo era ameaça.
Cordelia havia sido pega de surpresa — e viva por pouco. Mas... se o objetivo fosse assassiná-la, por que o trabalho não fora concluído?
Ela se levantou, caminhando até a janela. Esperando que o vidro frio sob a testa ajudasse a clarear os pensamentos. Os dedos tamborilaram no parapeito.
Um amador teria feito isso?
Mas um amador correria esse risco?
Se alguém ganharia algo com sua morte... Falhar não era uma opção.
Por que Cordelia ainda estava viva?
Tudo fora tratado como tentativa de golpe. Mas ninguém questionava o fracasso da tentativa?
Pensou em sair da cabine, procurar Alexander, mas a dúvida travou seus pés. Talvez nem ele soubesse tudo. Talvez... ninguém ali fosse digno de confiança.
Apoiada contra a parede, murmurou para si mesma:
— Em que história você foi se meter, Coraline?
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 65
Comments
Maria Ines Groff Ferreira
está interessante
2022-07-25
2