SENHORA KANG

SENHORA KANG

INTRODUÇÃO

     Anne  recolheu os pedaços do seu coração e fechou a mala, era primeira vez que viajaria para fora do Brasil, embora tivesse planejado inúmeras vezes essa viagem, jamais imaginou realizá-la assim.

    Tudo em mãos, passagem, passaporte, reserva do hotel. A coragem ela teria que buscar do outro lado do mundo, levando consigo as cinzas do marido. O destino, Seul, Coreia do Sul, em outras circunstâncias seria esplêndido conhecer a família cujo sobrenome ela carrega, porém, esse agridoce de sentimentos a deixava imensamente desconfortável. Tantos planos e sonhos desfeitos, mas ela tinha que ser forte, por ela, pela família de lei que a aguardava e principalmente por ele…

    O caminho até o aeroporto foi carregado de suspiros e lembranças, um triste adeus passava pela janela do carro, as árvores acenavam enquanto o vento lhe beijava a face. No aeroporto a sensação de vazio aumentava, famílias e casais sorridentes tirando suas selfies enquanto sua companhia de viagem era uma urna de porcelana. As lágrimas queriam aflorar, mas não se permitiu, pelo mesmo motivo se despediu dos poucos amigos dias antes, ela precisava encarar tudo isso sozinha.

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    Finalmente cheguei ao aeroporto internacional, após doze horas e meia de voo, era bem-vinda a pausa de duas horas para conexão. Meu corpo gritava desesperadamente por um café e uma cama, mas desconfortáveis cadeiras eram a única opção, assim parti na caçada a cafeína. Encontrei uma cafeteria, um lugar pequeno e abarrotado de turistas falando alto e em idiomas que eu nem sequer sabia existirem. Juntei-me a manada tentando fazer meu pedido quando fui empurrada por um “cosplay” de Ana Maria  e cai em cima de  alguém esparramando quase todo o conteúdo da minha bolsa.

     Um asiático muito mal-humorado todo sujo de café se levantou esbravejando muito, nem imagino o que deve ter dito, mas coisa boa com certeza não era. Ajoelhei tentando catar as minhas coisas e o resto da minha dignidade me desculpando em inglês com o sujeito que continuava a praguejar. Seu terno xadrez era chamativo e logo viramos o centro das atenções, morrendo de vergonha me desculpei novamente, apanhei a bolsa do chão e sai correndo dali. Me escondi no banheiro, após lavar o rosto e me acalmar um pouco notei minha jaqueta toda suja de café.

     — Maravilha! Eu devia andar comum aviso na testa “desastre ambulante” para prevenir a humanidade. — Resmunguei.

    Tirei a jaqueta e quando fui colocar na bolsa outra incrível surpresa, aquela não era a minha!

    — Droga, droga, droga! — sapateei feito criança.

    Revirei tudo desesperada, celular, passaporte, passagem e o mais importante o “bilhete” das bagagens, nada era meu! Queria muito chorar, mas não tinha tempo para isso, com a hora do embarque se aproximando a única solução era encontrar o “terno xadrez” e destrocar as bolsas. Voltei correndo para a cafeteria, mas nada, nem sinal. Saguão, estacionamento e nada, nem sinal de vida e meu voo já estava na segunda chamada! Percorri as lojinhas como louca quando avisto uma calça xadrez. Claro que ele tirou o terno sujo!

    Ele discutia com a atendente de uma loja quando me viu, correu em minha direção bufando de raiva com a atendente em seu encalço gritando os seguranças. O circo estava armado, o segurança tentava segurá-lo enquanto ele me segurava pelo pulso e a atendente gritando feito uma louca, um verdadeiro pandemônio! Fomos levados para a sala da segurança do aeroporto, e claro, perdi a conexão!**

     Aquela situação era mais que absurda, eu estava irritada, cansada e constrangida, aguardando sozinha em uma sala de interrogatório de filme americano. Um policial veio entregar a minha bolsa e me liberar. Sem muita esperança, corri para guichê da companhia aérea que informou que o voo mais próximo seria na manhã seguinte. Liguei para Seul para que alguém apanhasse a minha bagagem e mais importante a urna funerária, Shin meu cunhado era o único da família que eu tinha contato, embora nunca tenhamos nos visto, sempre gentil, disse que cuidaria de tudo. Só me restava encontrar um lugar para pernoitar.

    O táxi me deixou em um hotel não muito longe do aeroporto, uma construção antiga recém-reformada. Uma senhora muito simpática me atendeu na recepção e por muita sorte consegui o último quarto disponível por um preço razoável. O quarto era simples, com cama, sofá, penteadeira e um pequeno guarda roupas. Sem ‘internet’ ou tv., mas isso pouco importava, o que queria era um banho e esquecer desse dia tenebroso. Havia uma banheira no pequeno banheiro, uma gota de conforto muito bem-vinda, rapidamente a enchi e tratei de mergulhar nela. A água quente era um alívio aos meus músculos tensos e o cansaço me apunhalou de vez me fazendo adormecer.

     Algum tempo depois acordei, me enrolei na toalha e meio cambaleante fui em direção a cama quando tropecei em algo, acendi o abajur e não pude acreditar! Era aquela miserável calça xadrez jogada no chão do quarto e todo esparramado na minha cama aquele homem nu!

    Era o que faltava para chegar no meu limite, esse imbecil me fez perder a minha conexão, quase me fez ser presa no aeroporto e quase perder as cinzas do meu marido! Voei para cima dele com todas as minhas forças. Tapas e murros, puxões de cabelo e berros com os mais variados insultos, eu queria mesmo matá-lo, pena que a minha satisfação durou pouco tempo. Mesmo desnorteado pelo sono, o idiota me rendeu em dois minutos, segurou meus pulsos e girou o corpo por cima de mim me prendendo na cama.

      — Você de novo mancha de café! —  disse ele com um sorriso perverso nos lábios.*

    Me debati tentando me livrar do peso do seu corpo nu em cima do meu, mas quanto mais eu sacudia e gritava mais ele pressionava e apertava meus pulsos.

    — Continue a se debater, por favor, sua toalha já se soltou e…

    Desgraçado! Ele estava olhando meus seios. Comecei a gritar feito uma louca quando alguém finalmente abriu a porta, um homem e a senhora que me recepcionou apareceram. A cena naquele momento não parecia em nada com o que realmente estava acontecendo, eu só queria fechar meus olhos e desaparecer da face da terra.

    O bastardo finalmente saiu de cima de mim, procurando algo para vestir enquanto eu arrumava minha toalha furiosa.

     — Exijo saber quem deixou esse homem entrar no meu quarto! — gritei.

     — Seu quarto? Você deve estar louca, este quarto é meu! — Retrucou o pervertido.

     A senhora olhou para o homem que a acompanhava com um olhar triste…

    — Desculpe, eu devo ter feito confusão de novo. — Disse ela e saiu do quarto com lagrimas nos olhos.

    Lembrei-me da senhora que cuidou de mim no orfanato, eu a tinha como avó, afastada devido ao Alzheimer, aquele era o mesmo olhar perdido, senti pena da pobre mulher. O homem então confirmou minha suspeita e revelou que às vezes ela alugava o mesmo quarto para pessoas diferentes porque se esquecia e que infelizmente não havia mais quartos disponíveis. Pediu inúmeras desculpas, mas teríamos que dividir o quarto dadas as circunstâncias.

    Mesmo com a confusão esclarecida, não mudava o fato que teria que dividir o quarto com aquele ser detestável.

    — Escute aqui, não sei quem você é e tão pouco quero saber, não fale comigo, não me olhe e nem pense em me tocar novamente, seu pervertido! Só quero que essa noite passe logo para poder pegar meu avião e esquecer que você existe e mais uma coisa, você dorme no sofá! —  peguei minha bolsa e corri para o banheiro.

    Após me vestir corri para a cama, o imbecil já estava acomodado no sofá, confesso que ele mal cabia ali, mas pouco me importava seu conforto. Apaguei as luzes e fui dormir. Na manhã seguinte, meu detestável companheiro de quarto havia sumido e um agradável aroma de café invadia o quarto. Na penteadeira uma bandeja de café da manhã com pão de queijo e tudo. Meu estomago rugiu, passei o dia estressada e acabei não comendo nada. Devorei tudo, principalmente o pão de queijo.

    Comecei a me arrumar e organizar minhas coisas, conferir se o “terno xadrez” não trocou as bolsas novamente.

    — Francamente!? Porque ele usa uma bolsa feminina? — pensei alto.

    Tudo certo, passaporte, passagem, hora de ir, só faltava uma coisa, me despedir daquela senhora. A encontrei toda sorridente no balcão da recepção.

    — Bom dia! —  eu disse, mas sem muita esperança de que ela me reconhecesse.

    — Bom dia, minha querida! Como estava o seu café da manhã?

    — Muito gostoso, como a senhora sabia que sou brasileira e encontrou pão de queijo?*

    — Não fui eu, querida, seu marido acordou bem cedo e preparou tudo aquilo. Um bom homem, deve gostar muito de você. Ele já foi?

    Completamente desconcertada pelo equívoco, só pude concordar com um aceno e um sorriso enquanto dizia adeus. Mal sabia ela que meu marido estava numa urna funerária, provavelmente aterrissando em Incheon.

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Comments

Dona Cida Oliveira

Dona Cida Oliveira

Interessante autora,vou ler SUCESSO

2023-11-23

2

Marcia Rodrigues

Marcia Rodrigues

Nesse encontro já dá para subentender que eles seram o casal 💑 romântico do livro 📖

2022-10-03

11

Viviane Pereira

Viviane Pereira

muito bom estou gostando.

2022-10-01

1

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