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SENHORA KANG

INTRODUÇÃO

     Anne  recolheu os pedaços do seu coração e fechou a mala, era primeira vez que viajaria para fora do Brasil, embora tivesse planejado inúmeras vezes essa viagem, jamais imaginou realizá-la assim.

    Tudo em mãos, passagem, passaporte, reserva do hotel. A coragem ela teria que buscar do outro lado do mundo, levando consigo as cinzas do marido. O destino, Seul, Coreia do Sul, em outras circunstâncias seria esplêndido conhecer a família cujo sobrenome ela carrega, porém, esse agridoce de sentimentos a deixava imensamente desconfortável. Tantos planos e sonhos desfeitos, mas ela tinha que ser forte, por ela, pela família de lei que a aguardava e principalmente por ele…

    O caminho até o aeroporto foi carregado de suspiros e lembranças, um triste adeus passava pela janela do carro, as árvores acenavam enquanto o vento lhe beijava a face. No aeroporto a sensação de vazio aumentava, famílias e casais sorridentes tirando suas selfies enquanto sua companhia de viagem era uma urna de porcelana. As lágrimas queriam aflorar, mas não se permitiu, pelo mesmo motivo se despediu dos poucos amigos dias antes, ela precisava encarar tudo isso sozinha.

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    Finalmente cheguei ao aeroporto internacional, após doze horas e meia de voo, era bem-vinda a pausa de duas horas para conexão. Meu corpo gritava desesperadamente por um café e uma cama, mas desconfortáveis cadeiras eram a única opção, assim parti na caçada a cafeína. Encontrei uma cafeteria, um lugar pequeno e abarrotado de turistas falando alto e em idiomas que eu nem sequer sabia existirem. Juntei-me a manada tentando fazer meu pedido quando fui empurrada por um “cosplay” de Ana Maria  e cai em cima de  alguém esparramando quase todo o conteúdo da minha bolsa.

     Um asiático muito mal-humorado todo sujo de café se levantou esbravejando muito, nem imagino o que deve ter dito, mas coisa boa com certeza não era. Ajoelhei tentando catar as minhas coisas e o resto da minha dignidade me desculpando em inglês com o sujeito que continuava a praguejar. Seu terno xadrez era chamativo e logo viramos o centro das atenções, morrendo de vergonha me desculpei novamente, apanhei a bolsa do chão e sai correndo dali. Me escondi no banheiro, após lavar o rosto e me acalmar um pouco notei minha jaqueta toda suja de café.

     — Maravilha! Eu devia andar comum aviso na testa “desastre ambulante” para prevenir a humanidade. — Resmunguei.

    Tirei a jaqueta e quando fui colocar na bolsa outra incrível surpresa, aquela não era a minha!

    — Droga, droga, droga! — sapateei feito criança.

    Revirei tudo desesperada, celular, passaporte, passagem e o mais importante o “bilhete” das bagagens, nada era meu! Queria muito chorar, mas não tinha tempo para isso, com a hora do embarque se aproximando a única solução era encontrar o “terno xadrez” e destrocar as bolsas. Voltei correndo para a cafeteria, mas nada, nem sinal. Saguão, estacionamento e nada, nem sinal de vida e meu voo já estava na segunda chamada! Percorri as lojinhas como louca quando avisto uma calça xadrez. Claro que ele tirou o terno sujo!

    Ele discutia com a atendente de uma loja quando me viu, correu em minha direção bufando de raiva com a atendente em seu encalço gritando os seguranças. O circo estava armado, o segurança tentava segurá-lo enquanto ele me segurava pelo pulso e a atendente gritando feito uma louca, um verdadeiro pandemônio! Fomos levados para a sala da segurança do aeroporto, e claro, perdi a conexão!**

     Aquela situação era mais que absurda, eu estava irritada, cansada e constrangida, aguardando sozinha em uma sala de interrogatório de filme americano. Um policial veio entregar a minha bolsa e me liberar. Sem muita esperança, corri para guichê da companhia aérea que informou que o voo mais próximo seria na manhã seguinte. Liguei para Seul para que alguém apanhasse a minha bagagem e mais importante a urna funerária, Shin meu cunhado era o único da família que eu tinha contato, embora nunca tenhamos nos visto, sempre gentil, disse que cuidaria de tudo. Só me restava encontrar um lugar para pernoitar.

    O táxi me deixou em um hotel não muito longe do aeroporto, uma construção antiga recém-reformada. Uma senhora muito simpática me atendeu na recepção e por muita sorte consegui o último quarto disponível por um preço razoável. O quarto era simples, com cama, sofá, penteadeira e um pequeno guarda roupas. Sem ‘internet’ ou tv., mas isso pouco importava, o que queria era um banho e esquecer desse dia tenebroso. Havia uma banheira no pequeno banheiro, uma gota de conforto muito bem-vinda, rapidamente a enchi e tratei de mergulhar nela. A água quente era um alívio aos meus músculos tensos e o cansaço me apunhalou de vez me fazendo adormecer.

     Algum tempo depois acordei, me enrolei na toalha e meio cambaleante fui em direção a cama quando tropecei em algo, acendi o abajur e não pude acreditar! Era aquela miserável calça xadrez jogada no chão do quarto e todo esparramado na minha cama aquele homem nu!

    Era o que faltava para chegar no meu limite, esse imbecil me fez perder a minha conexão, quase me fez ser presa no aeroporto e quase perder as cinzas do meu marido! Voei para cima dele com todas as minhas forças. Tapas e murros, puxões de cabelo e berros com os mais variados insultos, eu queria mesmo matá-lo, pena que a minha satisfação durou pouco tempo. Mesmo desnorteado pelo sono, o idiota me rendeu em dois minutos, segurou meus pulsos e girou o corpo por cima de mim me prendendo na cama.

      — Você de novo mancha de café! —  disse ele com um sorriso perverso nos lábios.*

    Me debati tentando me livrar do peso do seu corpo nu em cima do meu, mas quanto mais eu sacudia e gritava mais ele pressionava e apertava meus pulsos.

    — Continue a se debater, por favor, sua toalha já se soltou e…

    Desgraçado! Ele estava olhando meus seios. Comecei a gritar feito uma louca quando alguém finalmente abriu a porta, um homem e a senhora que me recepcionou apareceram. A cena naquele momento não parecia em nada com o que realmente estava acontecendo, eu só queria fechar meus olhos e desaparecer da face da terra.

    O bastardo finalmente saiu de cima de mim, procurando algo para vestir enquanto eu arrumava minha toalha furiosa.

     — Exijo saber quem deixou esse homem entrar no meu quarto! — gritei.

     — Seu quarto? Você deve estar louca, este quarto é meu! — Retrucou o pervertido.

     A senhora olhou para o homem que a acompanhava com um olhar triste…

    — Desculpe, eu devo ter feito confusão de novo. — Disse ela e saiu do quarto com lagrimas nos olhos.

    Lembrei-me da senhora que cuidou de mim no orfanato, eu a tinha como avó, afastada devido ao Alzheimer, aquele era o mesmo olhar perdido, senti pena da pobre mulher. O homem então confirmou minha suspeita e revelou que às vezes ela alugava o mesmo quarto para pessoas diferentes porque se esquecia e que infelizmente não havia mais quartos disponíveis. Pediu inúmeras desculpas, mas teríamos que dividir o quarto dadas as circunstâncias.

    Mesmo com a confusão esclarecida, não mudava o fato que teria que dividir o quarto com aquele ser detestável.

    — Escute aqui, não sei quem você é e tão pouco quero saber, não fale comigo, não me olhe e nem pense em me tocar novamente, seu pervertido! Só quero que essa noite passe logo para poder pegar meu avião e esquecer que você existe e mais uma coisa, você dorme no sofá! —  peguei minha bolsa e corri para o banheiro.

    Após me vestir corri para a cama, o imbecil já estava acomodado no sofá, confesso que ele mal cabia ali, mas pouco me importava seu conforto. Apaguei as luzes e fui dormir. Na manhã seguinte, meu detestável companheiro de quarto havia sumido e um agradável aroma de café invadia o quarto. Na penteadeira uma bandeja de café da manhã com pão de queijo e tudo. Meu estomago rugiu, passei o dia estressada e acabei não comendo nada. Devorei tudo, principalmente o pão de queijo.

    Comecei a me arrumar e organizar minhas coisas, conferir se o “terno xadrez” não trocou as bolsas novamente.

    — Francamente!? Porque ele usa uma bolsa feminina? — pensei alto.

    Tudo certo, passaporte, passagem, hora de ir, só faltava uma coisa, me despedir daquela senhora. A encontrei toda sorridente no balcão da recepção.

    — Bom dia! —  eu disse, mas sem muita esperança de que ela me reconhecesse.

    — Bom dia, minha querida! Como estava o seu café da manhã?

    — Muito gostoso, como a senhora sabia que sou brasileira e encontrou pão de queijo?*

    — Não fui eu, querida, seu marido acordou bem cedo e preparou tudo aquilo. Um bom homem, deve gostar muito de você. Ele já foi?

    Completamente desconcertada pelo equívoco, só pude concordar com um aceno e um sorriso enquanto dizia adeus. Mal sabia ela que meu marido estava numa urna funerária, provavelmente aterrissando em Incheon.

CAPÍTULO 2

           A viagem foi longa, porém tranquila, creio que estou sentindo o fuso horário, me sinto enjoada. Shin prometeu me buscar no aeroporto quando liguei antes de embarcar e saber se tudo chegara em segurança.

           O desembarque foi rápido e o aeroporto de Incheon é bonito, limpo e organizado, não é à toa que dizem ser um dos melhores do mundo, fiquei realmente impressionada. Fui direcionada para a sala vip onde me serviram um cappuccino e pude aguardar em uma poltrona aconchegante. Algumas pessoas circulavam por lá em seus ternos bem cortados, provavelmente viajando a negócios. Sinceramente me senti deslocada com meu jeans rasgado, camiseta e tênis e nem quero imaginar como deve estar meu cabelo. Vendo todas aquelas pessoas elegantes não pude deixar de imaginar como Shin se parecia. Só sei que meu marido o amava muito e era o único que ele mantinha contato após brigar com a família e ir para o Brasil em busca dos seus próprios sonhos.

           Não faço ideia de como serei recebida, sei que tradicionalmente aqui os pais devem aprovar os casamentos, que Haneul e eu atropelamos tudo isso e hoje conhecerei meus sogros para se despedirem do filho, talvez seja a primeira e última vez que os veja, talvez até me odeiem e me culpem pela morte de Haneul, simplesmente não sei como encara-los.

            Apesar da ansiedade, o cansaço foi maior e cochilei, quando abri meus olhos um homem estava à minha frente de pernas cruzadas em um elegante terno risca de giz me olhando fixamente. Endireitei a postura  constrangida, disfarçadamente passei a mão pelos lábios para verificar se não estava suja de baba porque somente algo desse tipo justificaria aquele olhar, porém ele continuou a observar cuidadosamente cada gesto meu.

                -- Bem-vinda Ane, é um prazer finalmente conhece-la.

            Meu queixo caiu, esse homem alto de traços delicados, uma pele perfeita e voz de trovão era o Shin? Impossível, as poucas fotos que meu marido tinha, mostravam um rapaz franzino, cheio de espinhas que só usava moletom. Completamente atordoada apenas estendi minha mão em cumprimento que ele firmemente segurou.

                 -- Desculpe se a assustei, você parecia cansada e não quis perturbar.

                 -- Shin é realmente você? Desculpe, mas as fotos me fizeram pensar que um menino

viria me buscar, quando você cresceu tanto?

            Acredite eu tinha que olhar para cima para ver seus olhos castanhos, ele era pelo menos

uns 20 centímetros mais alto que eu, me senti uma anãzinha.

            Ele sorriu e passou a mão nos cabelos castanhos, quase loiros, uma mania igual ao que o irmão tinha quando se sentia nervoso. Tão diferentes fisicamente, mas uma certa familiaridade nos gestos, a forma tranquila de falar, a forma tímida de sorrir, era estranho, como uma sensação de dejavu.

                   -- Sou eu mesmo. Já você é exatamente como meu irmão descrevia. Sinto nos conhecermos nessa circunstância. –  havia muito pesar nessas últimas palavras.

              Saímos do aeroporto e um carro luxuoso com motorista nos aguardava. Depois de uns 30km aproximadamente chegamos ao nosso destino, Cheongdam. Passamos por lojas de grife, restaurantes exuberantes, galerias e boates, obviamente um lugar onde vive a nata e confesso que não esperava por isso, eu sabia que a família Kang vivia bem, mas isso é um tremendo exagero.

              Paramos em frente a um prédio todo espelhado, uma espécie de porteiro saiu pea porta giratória e nos guiou para fora do carro com uma saudação formal. Tudo muito surreal para mim,  a entrada toda em mármore, lustres pomposos em cristal e delicadas rosas brancas compunham com maestria o ambiente suntuoso. Não havia muitas pessoas na portaria, mas olhares nada discretos eram direcionados a mim,Shin percebendo meu desconforto sorriu e ofereceu seu braço que aliviada aceitei. Ao entrar no elevador respirei mais tranquilamente.

                     -- Relaxe Ane, não é você que eles estavam olhando e cochichando, é que eu nunca trouxe uma mulher no meu apartamento. Serei o assunto da semana, não se incomode com eles. Ok?

                     -- Ok, mas é sério que nunca trouxe uma mulher aqui? Uma namorada, nem mesmo uma

amiga? – Questionei em tom de brincadeira.

                     -- Muito sério, tirando a minha mãe e a secretaria que me ajudam com o funcionamento e limpeza, você é minha primeira convidada. Não tenho relacionamentos, meus amigos não são tão próximos e além disso, gosto de manter minha privacidade.

                     -- Quanta honra Sr. Kang Shin, mas se me permite, eu poderia ficar em um hotel. – E no mesmo instante me arrependi dessa afirmação, ele respirou fundo e com um tom muito sério respondeu.

                     -- Ane, eu jamais a deixaria enfrentar meus pais e passar por esse luto sozinha. Somos família, vou cuidar de você como meu irmão faria.

              O elevador chegou na cobertura, Shin disparou para a porta, me recompus e entrei no apartamento. Na entrada uma sapateira, já que é um habito asiático não entrar em casa de sapatos, tirei meu tênis e o guardei, uma pantufa de zebra estava me esperando e não pude evitar de rir com elas na mão.

                     -- Desculpe por isso, foi a minha secretaria quem escolheu, acho que ela pensou que você seria um pouco, como posso dizer, extravagante? Venha conhecer o resto da casa. – Disse ele indicando o caminho.

               Tudo muito sóbrio e clássico, uma sala ampla com janelas de vidro, dois sofás aconchegantes em forma de L e uma televisão enorme, ao lado uma mesa de jantar com oito lugares, envernizada na cor marfim com cadeiras em couro, a cozinha era o sonho de qualquer dona de casa, pequena e organizada com uma variedade de utensílios em inox.  

               O quarto era a cara do dono, uma cama king, prateleiras repletas de livros, uma escrivaninha com notebook, agendas e pastas. O closet imenso com uma parte cuidadosamente vazia.

                    -- Bom, por enquanto você vai ficar nesse quarto e teremos que dividir o closet,

suas malas já estão aqui, depois de descansar arrume com calma.       

                    -- Mas você vai ficar onde? – Perguntei sentindo um grande incômodo.

                    -- Na sala, mas não se preocupe, eu esvaziei o escritório para você decorar como quiser, amanhã iremos ver móveis e qualquer outra coisa que precise, quero que essa seja realmente a sua casa Ane. -respondeu me tranquilizando.

                Como não me comover com tudo isso, Shin sabia que eu era órfã e agora viúva recomeçando a vida em um país estranho, ele acabou se tornando o mais próximo que eu poderia ter de família. Segurando a emoção, só pude dizer obrigada. Fui deixada no quarto com ordens para descansar e um banho era tudo o que eu mais queria.

                 Dizer que dormi é pouco, praticamente entrei em coma, a exaustão e irritação da viagem, e a tristeza dos últimos acontecimentos me derrubaram. Não sei ao certo por quanto tempo apaguei e levando em conta o fuso eu estava mais perdida que nunca. Saltei da cama para a janela, estava amanhecendo e um cheirinho de café dominava o lugar, motivo mais que suficiente para me arrancar do quarto.

                Descalça, descabelada e de “pijama”, bem, não dava para chamar de pijama shorts e regata, mas nunca gostei daqueles pijamões tipo vovó, no máximo uma camisola de seda que era o suficiente para o clima brasileiro. Segui meu nariz até a cozinha e me deparei com Shin coando o café.

                      -- Bom dia!  -  me cumprimentou com seu melhor sorriso.

                      -- Bom dia! Mas por favor não me diga que você é do tipo que acorda cantando!? – Resmunguei

me debruçando no balcão com meu mau humor.

                      -- Não, não canto bem, esse talento apenas meu irmão tinha, sinto muito, alguém

tinha que nascer bonito. - Brincou ele.

                Realmente ele era, mesmo com um pijama ridículo de bolinhas ele parecia saído de um filme, desconfio que mesmo que usasse roupas de mendigo ou se enrolasse em sacos de lixo, com essa cara e esse corpo bem definido ele ficaria incrível. Uma grande injustiça na minha opinião, como se não bastasse ser rico.

                      -- Hahaha\, engraçadinho\, me dê logo esse café que o cheiro está me matando!!!

                     -- Eu nunca vi um ser tão viciado em café como você! Toma, cuidado que está muito quente. –  colocando a xícara fumegante diante dos meus olhos.

                Sentei direito no banquinho e segurei a xicara com as duas mãos aproveitando seu calor e sentindo o aroma inigualável, por um instante fechando os olhos me senti em casa. É isso o que café era para mim, um cheiro e gosto de casa, um aconchego, um carinho, um acalento. Passei tantos anos da minha vida sozinha no orfanato, crescendo e vendo todos irem embora, encontrando quem os amasse e confortasse enquanto eu ficava com os meus livros e um copo de café, secretamente ansiando pelo dia que alguém dividiria isso comigo.

               Foi assim que conheci Haneul, em um curso de barista...

                   -- Ei, ei, ei acorda! – Chiou ele para me tirar do devaneio.

                   -- Desculpe. Me lembrei do seu irmão, pena que nunca vamos tomar café os três juntos... Como você aprendeu a fazer café? -  falei antes que o clima ficasse pesaroso e experimentei o café.

                   -- Nos EUA, fiz minha faculdade lá e meu colega de quarto era quase tão viciado quanto você.

                   -- Forte e não tão doce. Aprovado irmãozinho, acho que depois de três desse eu consigo acordar.

                Shin riu trazendo uma bandeja com frutas da qual eu fiz careta quando posta a minha

frente.

                   -- O que? Vai dizer que você não come pela manhã?

                   -- Exato, basta café e tudo fica perfeito! –  e beijei minha xicara enquanto ele sacudia a cabeça em desaprovação.

                   -- Coma pelo menos uma fruta, por favor, e use a pantufa, não me faça ficar

preocupado com você.

               Muito contrariada peguei um pedaço de maçã, suspirei e coloquei na boca dele.

                   -- As pantufas de zebra eu até engulo, mas não me obrigue a comer pela manhã.  –  e me servi de mais café enquanto ele resmungava algo ininteligível.

              Terminei minha terceira xicara de café quando percebi que Shin me olhava intrigado.

                  -- O que foi?

                  -- Você é rabugenta assim todo o dia?

                  -- Só porque não acordo sorrindo não significa que sou rabugenta.  Na verdade, eu acordo com o cérebro em branco e aos poucos programo mentalmente o que preciso fazer durante o dia, é assim que funciono e gosto dessa rotina. Logo você acostuma, basta não fazer perguntas difíceis pela manhã. Então qual a programação de hoje?

                  -- Bom, vamos resolver a questão dos moveis para o seu quarto e creio que teremos que comprar algumas roupas para você!

                  -- Porque roupas? Eu trouxe bastante! – Disse até um pouco indignada.

                  -- Porque logo vai nevar e creio que você não está preparada para isso!

            Apenas resmunguei para sua cara de deboche, afinal ele tinha razão, mesmo se morasse no sul do Brasil, neve era coisa rara e eu realmente não estava preparada para uma nevasca, na verdade eu nunca tinha visto a neve...

CAPÍTULO 3

Em meio a bagunça das minhas malas me vesti o melhor possível, jeans, cacharrel, botas e meu mais grosso casaco, tudo em preto. Levei um susto quando sai do quarto e dei de cara com o Shin me aguardando no sofá, jeans, blusa gola alta e casaco de lã, tudo em branco. Até mesmo seu cabelo claro contrastava com o breu do meu, éramos como “yin” e “yang”, o dia e a noite personificados sobre a sombra de uma boca em carmim.

        Fiquei com vontade de me bater, eu realmente precisava me acostumar com a ideia de que Shin cresceu e não era mais o menino magricela que imaginei durante anos, meu cunhadinho se tornou um belo homem.

        Descemos ao saguão do prédio e aguardamos o carro sob olhares nada discretos, não ajudou muito quando o porteiro me chamou senhorita e Shin o corrigiu em alto e bom-tom como se avisasse a todos no recinto que eu era a senhora Kang. Engoli aquilo a seco e sorri, mas quando entramos no carro longe dos olhares curiosos belisquei sua costela com toda a minha força.

          -- Aiiiiiiiiiiii! Ficou louca!

          -- Louco ficou você! Agora eles vão pensar que você casou comigo seu moleque!

          -- Primeiro, eu tenho quase 30 anos, você não pode me chamar moleque. Segundo, eu

disse alguma mentira? Você é a senhora Kang!

           -- Sim, eu sei que sou! O problema é a maneira como você disse e, além disso, posso te chamar pirralho, moleque, do que eu quiser, sou mais velha que você!

        Emburrei e continuamos o caminho em silêncio até pararmos em uma loja gigante com cara de “shopping”. Não esperei ele abrir a porta do carro e fui à frente batendo os pés de raiva. Realmente a loja era imensa com vários pisos repletos de móveis de “designers” renomados, uma butique moveleira. Nenhum dos atendentes veio ao meu encontro, mas quando Shin entrou parecia que um enxame encontrara sua abelha rainha.

          -- Senhor Kang seja bem-vindo, que prazer em revê-lo! — Disse uma das vendedoras

extremamente animada.

        Fiquei pensando se era devido à gorda comissão, já que provavelmente meu cunhadinho era um cliente regular, mas talvez não fosse o caso. Shin era inegavelmente bonito, de família rica, bem-sucedido e agora único herdeiro, um bom partido eu diria, essa deve ser apenas uma de suas muitas admiradoras.

          -- Senhorita Yang, o prazer certamente é meu, mas hoje quem está escolhendo a nova

decoração não sou eu e sim a SENHORA KANG. — Me apontando com um sorriso sarcástico.

        Minha vontade era de lhe bater até aquele sorriso virar lagrimas, se a intensão era me tirar do sério Shin estava conseguindo, mas como estávamos em público apenas revirei os olhos enquanto a senhorita Yang parecia em choque.

          -- Se-nho-ra Kang, prazer em conhece-la, por favor me acompanhe.

        Apenas acenei com a cabeça e observando a reação dela confesso que achei divertido, me segurei para não rir enquanto a seguia pelo corredor com Shin ao meu lado ainda estampando seu sorriso zombeteiro. Decidida a entrar em seu jogo o surpreendi segurando-o pelo braço e sorri perversamente.

         -- Senhorita Yang poderia nos mostrar camas bem reforçadas, a última infelizmente

não resistiu ao uso severo.

        Foi a vez de Shin ficar em choque e eu simplesmente adorei ver a cara desconcertada dele, a senhorita Yang parecia um tomate de tão vermelha, mas nos guiou até as camas. Eu particularmente não gostei de nada, tudo muito extravagante e o preço exorbitante, acabei comprando duas luminárias porque realmente gostei do ‘design’. Seguindo o teatrinho não soltei o braço do Shin em momento algum, até sairmos da loja.

          -- Satisfeito, dois podem jogar esse jogo cunhadinho! — Mas me arrependi imediatamente, o sorriso irônico desapareceu dando lugar a uma expressão furiosa e Shin tirou minha mão do seu braço bruscamente.

          -- Entre logo no carro Ane. — Sua voz era comedida, como a calmaria antes da tormenta e prontamente o atendi.

         Até agora eu apenas conheci seu lado gentil e cortês de bom anfitrião, mas um novo lado estava prestes a ser-me apresentado, isso me deixou apreensiva. Permaneci em silêncio e olhando para fora com os braços cruzados quando ele finalmente rompeu o silêncio.

           -- Ane, você realmente não entendeu o meu propósito, não é? Não entendeu que no nosso prédio eu queria que você fosse respeitada pelo seu status assim como nessa loja? Você não percebe o peso do seu sobrenome?

          -- Tudo que percebi foi você tentando se livrar de uma mulher grudenta e me pregando uma peça de péssimo gosto Senhor Kang!

          -- Ane, me escute com atenção. Não será fácil meus pais te reconhecerem como nora, mas você é uma Kang e precisa começar a se impor como tal, se você mal consegue fazer isso em uma loja como pretende encarar meus pais?

         Aquelas palavras foram piores que uma bofetada. Status, sobrenome? Será que ele se lembra quem sustentou Haneul até ele conseguir se estabilizar no Brasil? Mas o que esperar de uma família que praticamente virou as costas para o próprio filho? Infelizmente meu coração não se surpreendeu, não esperava uma acolhida calorosa, mas será que eles acreditam que vim atrás de dinheiro? Isso eu não poderia tolerar.

          -- Shin vamos para casa\, quer dizer\, sua casa. — Me contive\, não poderia levar aquela discussão adiante mesmo com vontade de gritar e falar umas boas verdades\, o mortório e a cerimônia em honra aos ancestrais seria no começo do mês\, até lá eu teria que conviver com ele e teria tempo para reavaliar a situação.

        Seguimos calados por todo o caminho até o apartamento, na portaria o senhor nos recebeu com um “bem-vindos de volta SENHOR E SENHORA Kang”, o que me irritou bastante, mas apenas sorri, Shin provara seu ponto de vista. O sorriso das pessoas na recepção indicava isso e o burburinho também foi menor. Distribui alguns sorrisos e segui para o elevador quando senti tudo se apagando…

        Acordei sozinha no quarto, a noite já havia caído, apenas as luminárias da escrivaninha estavam acessas, tentava me levantar quando Shin entrou com uma bandeja.

          -- Nem pense em levantar sozinha.

          -- Por quanto tempo eu apaguei? — Minha voz saiu fracamente.

          -- Por um dia inteiro. — Seu tom de voz demonstrava preocupação.

          -- Nossa, tudo isso.

        Deixando a bandeja na escrivaninha ele correu ajeitar os travesseiros para que eu me sentasse e cuidadosamente me ajustou. Na bandeja a minha frente uma sopa fumegante, uma porção de frutas e um chá estranho.

          -- O que é isso? — Indiquei a xícara.

          -- Chá de gengibre e você deve tomar ao menos um pouco.

        Fiz careta, mas com isso só consegui que ele se sentasse na cama para se certificar de que comeria tudo aquilo e francamente eu estava sem ânimo para discutir qualquer coisa. Meu estomago roncou então comecei pela sopa enquanto ele me analisava cuidadosamente.

          -- O que foi Shin? Não discutirei com você se é isso que te preocupa. — Falei abandonando a colher na bandeja e ele rapidamente segurou a minha mão.

          -- Me perdoa Ane.

        Suas mãos estavam quentes nas minhas, seus olhos castanhos firmes nos meus, desviei o olhar, mas ele me segurou pelo queixo.

          -- Falo serio Ane, me perdoa, fui… nem sei dizer o que fui, você já passou por

tanta coisa, fiquei apavorado quando te vi no chão… me perdoa por favor.

        Eu estava magoada, mas senti a sinceridade e o medo em suas palavras, respirei fundo, tirei sua mão e comecei a falar tudo o que pensava.

          -- Primeiro deixaremos claras algumas coisas. Eu nunca fui mulher de rodeios então vou direto ao ponto. Nunca quis absolutamente nada da sua família, nem dinheiro ou status, o que for, vim para cá por ser a vontade de Haneul e apenas isso, não desejo nada, apenas seguir com a vida como eu puder, talvez até deva reconsiderar ficar aqui…

          -- Não, Ane por favor, pense mais um pouco, tentarei não interferir ou discutir. Somos família, a vontade de Haneul era que cuidássemos um do outro, não quero que vá embora na primeira discussão, isso é normal, ainda estamos nos ajustando!

       Suas palavras faziam sentido, estávamos nos ajustando, nos conhecendo. Se esse era um indicativo do que me aguardava na família Kang era melhor me preparar para uma briga bem maior.

          -- Shin, esqueceremos esse assunto por enquanto afinal preciso ficar até o mortório, depois veremos…

        Voltei a minha sopa e ele a me observar.

           -- Está se sentindo melhor? Você ainda está pálida.

          -- Estou sim, tem sido muito com o que lidar nos últimos tempos. Um boa noite de sono e estou novinha em folha, não se preocupe.

        Comi toda a sopa, mas o restante não desceu, com muito custo Shin desistiu de me alimentar, levou a bandeja e acabei dormindo.

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