(Melody)
O cheiro da fumaça do cigarro e do rancor preenchia o espaço exíguo do carro. Melody estava no banco de trás, encolhida, o vestido de algodão fino parecendo um papel molhado contra sua pele. Seu pai, o homem que a vendia, estava ao volante, e o silêncio era tão pesado quanto a culpa que ele se recusava a sentir.
Depois daquela frase fatídica – "E o Coringa paga bem por ela" – a realidade se tornou um nevoeiro de horror. A Irmã Lúcia, com sua aversão disfarçada, apenas assinara os papéis com a pressa de quem se livrava de um problema. Não houve abraços de despedida ou palavras de conforto, apenas o ranger da porta do orfanato fechando-se para sempre.
Melody não podia ver o rosto de seu pai, mas podia ouvir o clic-clic irritante da unha dele batendo no volante, uma manifestação de sua ansiedade e de sua raiva contida. Ele não estava triste; estava incomodado. Incomodado por ter que fazer a entrega, incomodado pela presença dela.
Ela tentou falar, a voz um fio trêmulo:
"Pai… o que você fez? Quem é Coringa?"
O clic-clic parou abruptamente. O silêncio que se seguiu foi um presságio.
"Cala a boca, Melody. Você não tem o direito de perguntar nada," ele rosnou. "Eu não teria que estar fazendo isso se você não tivesse... feito aquilo. Você é o meu erro. Você me custou tudo. Agora você vai pagar a dívida. E não se preocupe, o Coringa gosta de meninas... delicadas."
O motor acelerou, e o som ambiente mudou: o asfalto liso foi trocado por paralelepípedos rachados, e o cheiro neutro da cidade deu lugar a uma mistura intensa de esgoto, lixo queimado e umidade. Eles estavam subindo. Subindo para o que, Melody não sabia, mas seu tato dizia que as construções estavam mais próximas, mais precárias.
A viagem durou o tempo que levou para o medo solidificar seu estômago. O carro parou com um solavanco violento. Melody ouviu a porta do motorista abrir e fechar, o som de botas pesadas se aproximando.
"Chegaram" A voz era grave, gutural, carregada de uma satisfação doentia. Esse era o Coringa.
"Trouxe a mercadoria, como combinado," o pai de Melody respondeu, a voz surpreendentemente servil. O homem que a abandonou era agora um cão submisso diante do traficante.
A porta traseira se abriu. Melody sentiu a sombra fria do Coringa sobre ela. O cheiro dele era uma combinação nauseante de suor, fumo e um perfume barato e forte que tentava, pateticamente, esconder algo podre.
"Ah, sim. A peça principal. Tão indefesa, não é? A cegueira dá um charme especial. O masoquismo dela vai ser a minha alegria," ele riu, uma risada seca e rouca que arranhava o ar.
A mão dele agarrou o braço dela. Não era um toque, era uma prensa, os dedos apertando sua carne com a força de um alicate. Melody soltou um arquejo de dor e medo.
"Sua dívida está paga, velho. Agora some daqui antes que eu me divirta com você também," Coringa sibilou para o pai.
Melody ouviu o som da carteira se abrindo, o flic-flic de notas sendo contadas, e, em seguida, o som mais alto de todos: a porta do carro de seu pai batendo, o motor ligando e o pneu cantando na fuga.
Ele se foi. Ele a vendeu e a abandonou pela segunda e última vez.
O aperto no braço de Melody se intensificou, quase quebrando a circulação. "Vamos, meu anjo cego. Você tem muito a me ensinar sobre dor."
Ela foi arrastada para dentro de um barraco. O chão era de terra batida e cimento frio. O ar era pesado, abafado, e o silêncio interno era interrompido apenas pelo som distante de música alta vinda do morro.
O Coringa a jogou sobre algo que parecia ser um colchão sujo e mofado.
"Este será o seu novo lar, Melody. E eu serei o seu único deus. Não adianta gritar. Ninguém aqui escuta. Ninguém aqui se importa. E você... você não pode se defender, não é? Isso é o que me dá prazer. A sua absoluta e total impotência."
A liberdade se tornou um pesadelo. A dívida de seu pai se tornou o preço da sua alma.
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Atualizado até capítulo 42
Comments
Luciara Oliveira
e as fotos ?
2025-10-30
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