 
            A Garota Cega e o Dono do Morro
(Melody)
O mundo de Melody não tinha cores. Era feito de cheiros, temperaturas e texturas. Sua audição, um sonar sempre ligado, traçava o mapa do Orfanato Lar da Criança Abandonada. Ela conhecia cada rangido do piso de madeira no corredor dos dormitórios, o ritmo desigual do ventilador de teto na sala de estar e o cheiro enjoativo de desinfetante barato que tentava, sem sucesso, mascarar o odor de comida requentada.
Trezentos e sessenta e cinco dias por ano, ela contava os passos. Quinze passos do colchão mofado até o banheiro comunitário. Oito passos para alcançar a cantina. Seis anos. Era o tempo que ela estava ali, desde o dia em que um acidente de carro levou sua mãe e, com ela, a luz dos seus olhos e a sanidade de seu pai.
Ele, que deveria ser seu porto seguro, a transformou em um fardo, em um lembrete vivo de sua perda. A última frase de seu pai, antes de entregá-la à Irmã Lúcia, ainda ecoava com o peso de uma condenação: "Você tirou ela de mim. Cega. Inútil."
No orfanato, a cegueira não era vista como uma deficiência, mas sim como uma anomalia, um palco para a crueldade infantil e a falsa piedade adulta.
As crianças, curiosas e sem filtros, faziam dela um alvo constante. Elas sussurravam, "Cega, cega, ela não pode te ver!", e testavam seu limite. Melody aprendera a distinguir a aproximação pelo som leve e rápido dos tênis e o cheiro adocicado de doces escondidos. Ela podia sentir a massa de ar se movendo quando a mão de um garoto se levantava, pronta para tocar seu cabelo cacheado ou cutucar seu ombro. Ela só se encolhia um pouco, deixando a indiferença ser sua única resposta. Se não reagisse, o jogo perdia a graça.
Os adultos eram piores. Eles tinham a compaixão piegas, com voz arrastada, como se a escuridão tivesse emburrecido seu cérebro. "Pobrezinha, como pode uma menina tão bonita não poder ver o céu?" Melody odiava o toque gentil, o excesso de cuidado que a fazia sentir-se frágil, um objeto delicado que precisava ser manuseado com medo de se quebrar. Ela não era frágil. Ela havia sobrevivido.
Irmã Lúcia, a diretora, exalava a aversão disfarçada. A freira era uma mulher grande, de cheiro forte de lavanda e julgamento. Ela nunca dava a Melody um elogio ou um toque reconfortante, apenas tarefas. Dobrar lençóis secos, arrumar livros na biblioteca (onde Melody memorizava a ordem pelo cheiro e pelo desgaste das capas), ou descascar vegetais na cozinha. Era um trabalho que exigia concentração e não visão, mas Melody sabia que era a forma de a Irmã afastá-la do convívio, tornando-a produtiva e silenciosa.
Melody completaria dezoito anos em duas semanas.
O pensamento da maioridade era a única estrela no seu céu escuro. A liberdade. Ela tinha guardado algumas notas amassadas que as poucas visitas de caridade lhe davam, dinheiro suficiente para um quarto minúsculo e um rádio velho. Ela não precisava de muito; apenas um lugar onde pudesse ser Melody e não Melody, a cega.
Naquela manhã fria, o som diferente do portão principal, mais pesado e menos comum que o da entrega de pães, a despertou de seus devaneios. Dois pares de passos firmes e o ruído inconfundível do casaco de lã de seu pai ecoaram pelo hall. O cheiro dele – tabaco barato e algo amargo – atingiu Melody com a força de um soco.
Ele não a visitava há mais de um ano. Por que agora?
"Irmã Lúcia," a voz de seu pai era áspera, quase irreconhecível. "Eu vim buscar minha filha."
Melody apertou os lábios. Buscar? A palavra a fez tremer. Ele não estava ali para levá-la para casa. A voz dele não tinha amor, apenas... negociação.
A conversa se arrastou em sussurros
na sala da direção, interrompida apenas pelo leve roçar de papéis. Melody se forçou a ficar imóvel na soleira da porta, usando toda a sua força de vontade para captar a vibração das palavras.
Então, ela ouviu a frase que congelou seu sangue:
"Ela é maior de idade, Irmã. E o Coringa paga bem por ela."
Melody não ouviu a resposta da freira, não ouviu o som da caneta, não ouviu mais nada além do zumbido agudo em seus ouvidos. A liberdade que ela ansiava não viria com o asfalto, mas sim com um traficante, uma venda e um homem cujo nome soava como uma piada de mau gosto sobre a morte.
Seu pai. O homem que a abandonou iria agora vendê-la para o inferno. A escuridão, ela percebeu, estava prestes a ficar infinitamente mais densa e cruel.
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Atualizado até capítulo 42
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Celma Farias da Silva
autora começando hoje 20/10/25
2025-10-21
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