Capítulo 2: O Peso do Silêncio e o Som de um Nome

A descoberta da amostra viável da cura criou um novo e estranho ritmo dentro do bunker. A esperança, um visitante raro naqueles dias, agora pairou no ar como um perfume delicado, misturando-se com o cheiro constante de ferrugem, pó e desinfetante.

Kaio praticamente vivia em seu pequeno laboratório improvisado, uma sala que outrora fora um escritório, agora tomada por microscópios, frascos de vidro e anotações meticulosas. Seus olhos, cercados por sombras de cansaço, brilhavam com um fogo científico que nem mesmo o apocalipse conseguira apagar.

— A estrutura do vírus é... fascinante — ele murmurava para si mesmo, manipulando a amostra com a precisão de um ourives. Sua prótese do braço esquerdo, uma obra-prima da engenharia de seu pai, movia-se com uma fluidez quase orgânica. — Ela ataca o sistema límbico, mas deixa o córtex motor intacto... é uma praga inteligente.

Andier era sua sombra constante. O francês de olhos verdes não demonstrava abertamente seus sentimentos, mas sua devoção era palpável. Ele mantinha vigília na porta do laboratório, suas katanas sempre ao alcance. Seus olhos, no entanto, raramente se fixavam nas ameaças externas, mas sim nas costas curvadas de Kaio, numa mistura de preocupação e uma admiração que beirava a reverência.

— Você precisa comer, Kaio — disse Andier, sua voz suave quebrando o silêncio concentrado. Ele colocou um prato com rações enlatadas e uma maçã um pouco murcha na mesa, ao lado de um frasco.

Kaio ergueu os olhos, um sorriso cansado surgindo em seu rosto.

—Obrigado, Andier. Só mais meia hora, prometo.

— Você disse isso há duas horas — retrucou Andier, sem rancor, cruzando os braços. Era uma dança familiar entre eles.

Do outro lado do bunker, a dinâmica entre May e Matheus era um contraste caótico. May, energizado pela recente ação, parecia determinado a quebrar a couraça de Matheus de uma vez por todas.

— Então, é isso? — perguntou May, balançando as pernas enquanto estava sentado em uma pilha de caixas, observando Matheus afiar uma faca com uma pedra. O som shink, shink era o único que Matheus parecia disposto a produzir. — Você vai ficar me encarando com esses olhos de lobo daqui até a eternidade zumbi? Não vai me contar como conseguiu ficar tão bom em esfaquear coisas? Ou como mantém o cabelo tão hidratado no fim do mundo? É um segredo? É sebo de zumbi?

Matheus não respondeu. Seus dedos longos moviam a lâmina contra a pedra com um ritmo constante e hipnótico.

— Tudo bem, tudo bem. Jogo do silêncio. Eu sou ótimo nisso — May pulou da pilha de caixas e começou a andar em círculos. — Aposto que você era um modelo. Ou um assassino de aluguel. Algo dramático. Eu, por outro lado, era um estudante terrível. Minha mãe... — A menção dela fez sua voz fraquejar por uma fração de segundo, mas ele se recuperou rapidamente, forçando um sorriso mais largo. — Minha mãe dizia que eu tinha TDAH e um péssimo senso de humor. Ela acertou em cheio, não é?

Shink, shink.

May parou atrás de Matheus, olhando para seus ombros largos e as costas tensas. A energia maníaca pareceu esvair-se dele por um momento, deixando para trás apenas um garoto assustado e traumatizado.

— É só... o silêncio é muito barulhento, sabe? — sua voz saiu num sussurro, quase uma confissão. — Quando está quieto, é a única coisa que eu consigo ouvir.

Matheus parou. O som da faca sendo afiada cessou. Seus ombros, que estavam rigidamente erguidos, abaixaram-se um milímetro. Ele não se virou, mas sua atenção estava agora completamente focada na voz quebrada de May.

Foi nesse momento de vulnerabilidade que os sensores de movimento na periferia do bunker emitiram um alerta baixo. Andier estava ao lado do painel em um instante, seus olhos verdes escaneando as telas.

— Movimento. Múltiplos alvos. Vinte, talvez trinta. Se aproximando rapidamente — ele anunciou, sua voz um tom mais grave.

O bunker inteiro entrou em estado de alerta. Kaio guardou a preciosa amostra em um cofre blindado. Matheus se levantou, a faca agora firmemente empunhada em sua mão, seus olhos amarelos brilhando com uma luz predatória na penumbra.

May, é claro, sorriu.

—Dia de festa! E eu nem me arrumei.

Eles se posicionaram nas vigias. A horda era maior do que qualquer outra que haviam visto antes, atraída talvez pela atividade recente ou por pura má sorte.

— Andier, você e May na saída leste. É o ponto mais fraco. Segurem eles o máximo que puderem. Matheus, você cobre a entrada principal. Eu fico no sistema de câmeras e guio vocês — ordenou Kaio, sua voz tremendo um pouco, mas firme.

Andier e May correram para a saída leste, um corredor estreito que levava ao nível do solo. Quando Andier abriu a porta, a primeira leva de zumbis já estava lá. O francês se moveu como um redemoinho, suas katanas descrevendo arcos prateados no ar, cada movimento calculado e letal. Era uma dança de morte graciosa e eficiente.

May, por sua vez, era o caos personificado. Ele usava tudo o que estava à mão — um pedaço de cano, uma cadeira quebrada, seu próprio corpo em movimento constante — para criar distrações e golpes brutais. Ele ria enquanto lutava, uma risada alta e um pouco desequilibrada que ecoava pelo corredor.

— QUASE pegou, careca! — ele gritou, desviando de uma investida. — Sua mãe deve ter vergonha de você!

Enquanto lutavam lado a lado, uma estranha sincronia começou a surgir. A precisão mortal de Andier criava aberturas para os ataques imprevisíveis de May, e a agitação de May distraía as criaturas o suficiente para que os golpes de Andier fossem fatais.

Na entrada principal, Matheus era uma sentinela silenciosa. Ele não buscava a luta, mas a deixava vir até ele. Os zumbis que se aproximavam eram despachados com uma economia de movimento assustadora. Um golpe rápido, um estalo de pescoço, uma faca no crânio. Ele era um muro, impenetrável e frio.

De repente, a voz de Kaio veio pelo intercomunicador, urgente.

—Andier! Dois deles passaram pelo seu flanco direito! Eles estão indo em direção aos barris de combustível! Se eles derrubarem...

Andier, no meio de seu combate, não podia se virar. — May! —

May, que acabara de empurrar um zumbi contra a parede, olhou para trás e viu a ameaça. Sem hesitar, ele correu. Mas um dos zumbis que Andier estava enfrentando se virou e agarrou a perna de May, fazendo-o cair de bruços no chão.

— Merda! — gritou May, tentando se libertar.

Foi então que uma sombra passou por cima dele. Matheus. Ele deve ter deixado seu posto na entrada principal, movendo-se com uma velocidade sobrenatural. Seus olhos amarelos flamejavam no corredor escuro. Ele não usou sua faca. Com as mãos nuas, ele agarrou a cabeça do zumbi que prendia May e torceu com uma força brutal, arrancando-a quase do corpo com um estalo seco e horrível.

Ele então se virou para os dois zumbis perto dos barris. Em dois movimentos fluidos e silenciosos, eles estavam mortos no chão.

O corredor ficou em silêncio, exceto pela respiração ofegante de May. Ele olhou para cima, para Matheus, que estava de pé sobre ele, seu peito subindo e descendo levemente. Pela primeira vez, May viu algo além de gelo naqueles olhos de lobo. Havia uma fúria contida, um instinto protetor tão feroz quanto o dele próprio era autodestrutivo.

Matheus estendeu a mão. May, sem seu sorriso habitual, pegou-a e se levantou. A mão de Matheus era grande, áspera e incrivelmente quente. Ele não a soltou imediatamente.

— Obrigado, Gritinho — sussurrou May, sua voz séria.

Matheus apenas acenou com a cabeça, uma única vez, antes de soltar a mão dele e voltar para seu posto, mas não sem antes lançar um último olhar para garantir que May estava inteiro.

A horda foi contida. A ameaça, afastada. Quando a adrenalina baixou, a exaustão tomou conta de todos. Kaio veio correndo, aliviado, verificando se Andier estava bem antes de olhar para os outros.

Mais tarde, na calmaria pós-batalha, May estava sentado no chão, encostado na parede, limpando o sangue de sua faca. Matheus se aproximou e se sentou ao seu lado, um ato simples, mas que significava mundos. O silêncio entre eles agora era diferente. Não era mais um muro, mas um espaço compartilhado.

— May — a voz de Matheus era um ruído baixo e áspero, como se não fosse usada há séculos.

May ficou imóvel, olhando para frente. Era a primeira vez que Matheus dizia seu nome.

— O silêncio... — Matheus começou, escolhendo as palavras com cuidado. — Para mim, é mais barulhento quando estou sozinho.

Ele não disse mais nada. Não era necessário. May virou a cabeça e olhou para ele, e desta vez, seu sorriso não era uma máscara. Era pequeno, trêmulo, mas real. Ele havia conseguido. Ele havia encontrado uma brecha na fortaleza.

Enquanto isso, no laboratório, Kaio observava Andier limpar suas katanas.

—Você foi incrível lá fora — disse Kaio, sua voz suave.

Andier parou o que estava fazendo e olhou para Kaio, seus olhos verdes sérios.

—Eu faço o que é necessário para te proteger, Kaio. Sempre.

A intensidade daquela declaração pairou no ar entre eles, carregada de tudo o que não era dito. Kaio corou levemente e baixou os olhos para a amostra, mas um pequeno sorriso teimoso persistiu em seus lábios.

O bunker estava salvo por mais um dia. E dentro de suas paredes de metal, quatro corações, cada um quebrado à sua maneira, começavam a aprender que, talvez, no fim do mundo, as peças que faltavam pudessem ser encontradas nos outros. A cura, eles perceberam, não estava apenas em um frasco. Estava também no toque de uma mão, na sombra de um protetor, no som de um nome sussurrado no escuro.

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