A luz do escritório é diferente da luz do mundo de fora. É fria, escolhida para não projetar sombras. E, por um segundo, sinto que ela foi feita para mim — para que nada do que estou sentindo escape sem ser visto.
Raul está ali, encostado na mesa larga, de madeira, como se fosse um trono moderno. Os dedos tamborilavam no tampo, o relógio caro brilha, e o sorriso que ele me oferece não tem nenhuma ternura — é só controle.
— O que você faz aqui, Helena? — pergunta, com aquela ironia mansa que me dá enjoo. — Pensei que você tivesse entendido.
Dou dois passos à frente. Meu corpo treme, mas eu não vou ceder. Não hoje.
— Por que você me fez ser demitida?
A pergunta corta o ar entre nós, simples e necessária. É a última coisa que eu ainda precisava ouvir para sair da minha própria boca para acreditar no que ele é capaz de fazer.
Raul dá de ombros, como quem comenta o clima:
— Porque eu posso. — Ele contorna a mesa, aproxima-se um pouco, inclina a cabeça. — Porque eu tenho outra pessoa melhor para colocar no seu lugar, alguém que não me dá dor de cabeça. E porque você confundiu as coisas.
— Eu confundi? — repito, num sussurro que arde. — Eu perdi meu emprego, Raul. O único que paga meu aluguel. Você não tirou uma vaga. Você arrancou a minha paz.
Ele sorri. Aquele sorriso torto de quem aprecia o próprio poder.
— Você sempre foi dramática. Olha, dá para resolver. — Encosta-se na frente da mesa, cruzando os braços sobre o peito. — Esquece o que aconteceu ontem. Esquece o que você viu com a Duda. A gente continua… do meu jeito. Sem anúncios, sem rótulos, sem ninguém do meu círculo sabendo. Você gosta de mim, eu te acho gostosa, cada um no seu lugar. Simples.
A palavra “simples” me atravessa como uma lâmina gelada.
— “Simples” é viver escondida para você não ter que me encarar na luz do dia? — Minha voz sai firme, surpreendendo a mim mesma. — Simples é eu fingir que não vi você com outra no sofá em que eu decorei para nós dois? Simples é perder meu emprego porque você não suportou meu “não”?
Um músculo salta no maxilar dele. Não é culpa. É irritação.
— Você está sendo ingrata — sentencia, como um juiz. — Eu te ajudei. Levei comida para você quando precisava, paguei algumas coisas…
— Você levou porque quis — corto, rápido. — Eu nunca pedi. E “ajuda” não compra silêncio, não compra corpo, não compra dignidade.
Ele dá um passo em minha direção; instinto me manda recuar, mas fico. Fico por mim, pela menina de dezesseis anos que um dia se encolheu no próprio corpo para sobreviver. Fico pela mulher de vinte que aprendeu a respirar mesmo com dificuldades.
— Vamos evitar escândalos, Helena — ele diz, agora baixo, a voz afiada de ameaça. — Você não quer se queimar. Eu posso tornar sua vida muito fácil… ou muito difícil.
— Ela já está difícil — respondo, e a verdade da frase me dá um tipo estranho de coragem. — E mesmo assim, eu escolho sair daqui com o pouco que me resta: minha dignidade.
Por um segundo, acho que ele vai rir. Em vez disso, ele revira os olhos, volta para a cadeira e, como se estivesse entediado com um fornecedor, balbucia:
— Então vá. Mas não apareça na empresa, não me procure, não faça cena. Se precisar de alguma coisa, fale com a Duda.
O nome dela, dito com tanta naturalidade, me dá uma ânsia metálica na língua. Duda — a amiga que montou comigo a surpresa, que me levou até a sala, que cravou a faca e ainda sorriu. Eu respiro. Uma. Duas. Três vezes.
— Não vou precisar de nada de vocês — digo, ajeitando a alça da bolsa no ombro. — Suas coisas eu deixo na lanchonete. Você manda buscar.
Ele ergue o queixo.
— A porta é ali.
Olho para a maçaneta, tão simples quanto a palavra que ele usou para me reduzir. Agradeço por dentro por meus pés ainda obedecerem ordens. Agradeço por não ter gritado. Agradeço por conseguir sair.
A recepcionista me lança um olhar que mistura educação com prudência. Sorrio, é o máximo que consigo, e caminho pelo corredor amplo que leva ao elevador. As paredes são de um cinza sóbrio, os quadros parecem caros, os tapetes absorvem passos e memórias. Me vejo, num reflexo do vidro, e mal me reconheço: blusa branca simples, jeans surrado, cabelo preso às pressas, olhos vermelhos. Ainda assim, há algo na forma como levanto o queixo que me lembra: estou de pé.
O elevador, brilhante como um espelho novo, demora uma eternidade para chegar. Quando as portas deslizam, silenciosas, entro sozinha. Aperto o térreo e, enfim, deixo que os olhos se encham. Uma lágrima, depois outra. Não são soluços barulhentos, não são desabafos grandiosos. É um pranto contido, silencioso, que escorre com raiva e cansaço pelas laterais da minha dignidade.
Enquanto os números descem, uma lembrança sobe: eu, aos dezesseis, na rua, com um saco de roupas, um corpo doendo, um coração tremendo. Eu, hoje, aos vinte, descendo do 30º andar de um prédio que brilha, com uma sacola de intenções quebradas, um corpo cansado e um coração que decidiu que não vai mais tremer. Não desse jeito.
As portas se abrem no térreo. O saguão me engole com seu mármore impecável, plantas altas, perfume caro, vozes que parecem deslizar. Eu inspiro, seco o rosto com a parte interna do punho, e organizo a única coisa que ainda posso organizar: meus passos.
O mundo fora do vidro é outro. Luz do fim da manhã, carros, buzinas, conversa, passos, entregadores, ternos e saltos. Uma coreografia caótica que costuma me assustar, mas hoje me dá um senso estranho de pertencimento: aqui embaixo, todo mundo está tentando chegar a algum lugar.
Penso em passar na lanchonete para avisar a Luzia que deixarei a sacola com as coisas dele. Penso na conta de luz, na de água, no aluguel que vence em cinco dias. Penso na minha irmãzinha, no cabelo dela, preso com uma xuxinha amarela que eu mesma comprei um dia, escondido. Penso em mim, em como ainda existo apesar de tudo.
E então, distraída por todas essas versões de quem sou, eu não vejo.
O choque é seco, concreto, inevitável. Meu ombro acerta um muro — não, não é um muro; é um peito. Um corpo. Um corpo firme como um muro. Eu dou um passo para trás, meus dedos soltam a bolsa, meu coração dispara. Antes que eu possa me equilibrar, um som estala no mármore: um celular escapa de uma mão alheia, toca o chão, desliza, para com a tela virada para baixo.
O silêncio depois do estalo parece ainda mais alto do que o saguão inteiro.
— Olha por onde anda — a voz vem grave, firme, sem necessidade de volume para impor respeito. Ela corta o burburinho ao redor e encontra meu ouvido como um comando.
Ergo o rosto num reflexo que eu não controlo e, por um instante, o tempo decide observar junto comigo.
Ele é alto. Muito. Ombros largos, postura ereta, a gravata perfeitamente alinhada a um terno que não é apenas caro — é impecável. A barba aparada desenha o rosto com precisão, o maxilar firme acentua a impressão de força, e os olhos… os olhos são de um claro que contrasta com tudo ao redor, como fragmentos de céu guardados num lugar onde nada deveria ser suave.
— Você também não olhou — respondo, num impulso que tenta salvar a dignidade do tropeço. — E… seu celular. — Meu olhar salta para o aparelho no chão, como se aquela fosse a única realidade segura onde pousar.
Me abaixo, as mãos trêmulas, e alcanço o retângulo frio. Um risco atravessa a lateral da carcaça, mas a tela parece intacta. Eu o seguro como quem segura uma prova de crime e me viro, oferecendo.
Ele não se apressa. Observa primeiro — a mim, o celular, o modo como minha respiração ainda não encontrou seu ritmo. Só então estende a mão. Os dedos são longos, decididos; a pele, quente. Quando o aparelho passa do meu para o dele, um microcontato atrevido arrepia meus nervos.
— Não precisa pagar — diz, como se lesse, com uma calma que não combina com o comando anterior. A voz baixa, segura, tem um timbre que vibra sem esforço.
Eu trago uma mecha de cabelo para trás da orelha, num gesto automático, e só então percebo que ainda há sal nos meus cílios. Ele percebe antes de mim.
— Você está chorando.
Não é uma pergunta. É um veredito. E, por isso, me desconcerta mais do que qualquer “por quê” poderia fazer.
Abro a boca para negar, para erguer uma muralha qualquer, mas nada sai. Apenas um “não é nada” que não engana nem o ar.
Os olhos claros dele não apertam, não acusam, não invadem. Só sustentam. E, por um instante desconfortavelmente longo, eu me vejo nessa sustentação — pequena, desalinhada, inteira.
Respiro. Uma vez. Duas. O saguão volta a fazer barulho, a vida retoma o passo, e meu corpo entende que precisa escolher entre fugir ou ficar.
Eu não escolho. O destino escolhe por mim.
Porque ele inclina minimamente a cabeça, como quem mede uma distância, dá um meio passo para o lado, abrindo espaço para que eu passe. E eu… eu não passo. Fico. Segurando a alça da bolsa com força desnecessária, sentindo o ar entrar, sair, arder.
É nesse intervalo de um segundo — esse que decide se a vida vai para a esquerda ou para a direita — que percebo duas coisas ao mesmo tempo: a primeira é que acabei de colidir com um tipo de presença que desarma sem tocar; a segunda é que, por mais que eu queira, não consigo simplesmente seguir adiante como se nada tivesse acontecido.
Os dedos dele ajustam a gravata. O gesto é mecânico, elegante, quase um hábito. Quando volta a olhar para mim, o saguão inteiro parece diminuir de tamanho.
E então, antes que a minha coragem se mova, a voz dele volta — menos áspera, mais certa:
— Venha.
Não há ordem. Não há súplica. Há convite. E é exatamente isso que me assusta.
O coração bate a resposta que a boca não consegue dar.
E a vida, outra vez, prende a respiração.
Continua...
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Atualizado até capítulo 32
Comments
Irene Saez Lage
Tem dia que as coisas ficam tão difícil que se soubesse a gente abria um buraco e sumia dentro dele
2025-10-04
4
Fátima Ribeiro
Wow wow 🙏🙏
autora, que obra prima está este inicio.🙏🙏
Muito bom💖💖
2025-10-06
0
Marcia Mota
Estória muito bem escrita, uma narrativa perfeita ❤️.
2025-10-02
1