O dia seguinte foi mais que inquietante. Acordei cedo e cumpri a mesma rotina de sempre: acompanhei Amélie nas aulas particulares, depois na natação, e pela manhã ajudei-a com os deveres. Almoçamos juntas e, em seguida, fomos brincar no jardim, onde o verde começava a ressurgir depois do rigoroso inverno. A neve dera lugar às primeiras flores. A Sra. Allen não se afastava de mim, como se encontrasse conforto em minha companhia.
Do banco de madeira, observei Amélie escalar uma pequena cerejeira que começava a florir. A menina era cautelosa em cada movimento, zelando pela própria segurança. Ao meu lado, a Sra. Allen sorria enternecida com a graciosidade da pequena.
— Fico contente que Amélie encontrou em você o abrigo que precisava... você trouxe mais vida para essa menina, Srta. Lia.
Havia ternura em sua voz, o mesmo olhar carinhoso que uma avó lançaria a um neto.
— Apenas cumpro minhas obrigações, Sra. Allen.
Ela me observou com curiosidade, como quem tenta decifrar um enigma.
— Diga-me, querida: está feliz aqui?
A palavra "feliz" soou estranha. Há muito tempo eu não sabia mais o que era isso. Poderia dizer que não, que a rotina era monótona, repetida dia após dia, sem espaço para surpresas. Mas também havia gratidão. Tinha um trabalho, um teto, e isso já era muito. Não ousaria negar.
— Certamente, Sra. Allen.
Ela suspirou, o olhar perdido no jardim.
— O Sr. Fairchild nunca se casou, Sra. Allen? — perguntei.
— Teve muitas namoradas, mas nunca foi muito longe... até noivou uma vez, mas não levou adiante. A moça, Srta. Sophie, apesar de bela e de boa família, era um poço de arrogância. Creio que ele não achou que serviria para ser uma boa esposa.
— Estranho um homem de quase quarenta anos ainda solteiro.
— Ele parece não se importar com isso. Acredito que prefira a liberdade de ir e vir a ter uma mulher ditando sua vida. Você sabe como somos, Lia... cedo ou tarde, quando casadas, acabamos por tomar o controle.
— Absolutamente não, Sra. Allen. Somente uma mulher sem propósito quer viver em função do marido. Quem tem vida própria jamais precisa sufocar ninguém.
Ela riu suavemente.
— Talvez esteja certa... mas quando casar-se vai entender. Enfim, gostou de jantar com o patrão ontem?
Senti minhas faces corarem. O que dizer? Não gostei de suas perguntas incisivas, nem de seu olhar cortante. Mas limitei-me:
— O Sr. Fairchild tem uma personalidade forte. Confesso que sua forma de se dirigir a mim me assustou um pouco.
— Logo se acostumará, querida. Aliás, não o verá com tanta frequência. Ele só quis conhecer a babá da filha. Aposto que agora a deixará em paz.
— Espero que depois do jantar de hoje, sim.
Ela franziu o cenho.
— Como disse? Ele chamou você para jantar outra vez?
— Ele ordenou, Sra. Allen. Não me deu escolha.
— Estranho... muito estranho. Não é do feitio dele ter tanto interesse pelos funcionários. Está com medo, não está Srta. Lia?
— Não, senhora... apenas não me sinto confortável diante de um homem que me interroga sem parar, como se eu tivesse obrigação de responder.
— Entendo, querida. Mas não tema. O patrão não é um monstro, e eu estarei sempre por perto.
Assenti em silêncio, tentando me convencer de que suas palavras eram suficientes para me tranquilizar.
Naquele dia, a tarde passou mais rápido do que eu jamais havia percebido antes. O receio inquietante de encarar meu patrão novamente se misturava a um desejo silencioso de revê-lo. De decifrar aquele olhar, aquele semblante endurecido e indecifrável. E, ao mesmo tempo, o medo crescente das perguntas que me deixavam calada e aborrecida.
Outra vez diante do espelho, escolhi um vestido preto de mangas compridas, justo na cintura e com comprimento até o meio das pernas. Havia uma fenda discreta atrás, o bastante para dar elegância sem ousadia. Era comportado, cobrindo quase todo o corpo. Nos ouvidos, coloquei um par de brincos brancos em formato de conchas, feitos de ouro puro. Eram de minha mãe — uma das poucas lembranças que consegui resgatar antes de ser enviada ao internato. Se os tivesse deixado, certamente meu irmão os teria vendido, como fez com todo o resto.
Prendi o cabelo, calcei os sapatos e, após um último olhar no espelho, desci.
No salão de jantar, o Sr. Fairchild já me aguardava.
— Srta. Wilson... achei que não viria.
— Peço desculpas pelo atraso, senhor.
— Não se preocupe. Fui eu quem me adiantei. — Disse ele.
Notei a ausência de Amélie e perguntei:
— Onde está Amélie?
— Irá jantar em seu quarto. A Sra. Allen cuidará dela durante o nosso jantar. Agora, sente-se.
Obedeci, acomodando-me ao lado da cabeceira, onde ele estava. Logo o jantar foi servido. Estranhamente, até aquele momento, nenhuma pergunta me foi feita. Nenhuma invasão, nenhum olhar inquisitivo. Apenas silêncio. O único som que preenchia o ambiente era o delicado choque dos talheres contra a porcelana fina. E assim seguiu até o fim da refeição.
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(Pessoal, assim que terminarem de ler cada capítulo deixem sua curtida e se puder um comentário. Isso ajuda na obra e da mais incentivo ao autor para a continuação.)
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Atualizado até capítulo 84
Comments
Iracy Abreu
❤️🥰
2025-10-14
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