As mãos do guerreiro, trêmulas, passaram a arrumar o roupão de algodão puro que caíra sobre os ombros do escriba durante o ímpeto. Era um gesto contraditório: quase um cuidado amoroso, quase um adeus silencioso.
O silêncio se fez outra vez, quebrado apenas pelo som dos tecidos sendo ajeitados e pela respiração ainda irregular dos dois. Dae-Hyun ergueu-se, afastando-se lentamente, como se cada passo em direção à porta fosse um peso a mais sobre seus ombros. Antes de cruzar o limiar, parou e, sem voltar o rosto, murmurou com voz grave:
— Me perdoe... mas não poderia partir sem dizer o que sinto.
E então se foi, deixando para trás o perfume do soju, o calor da pele e uma inquietação que Kyun-Seonk sabia que não desapareceria tão cedo.
A manhã veio com uma luz pálida que parecia pesar menos do que o silêncio que os dois carregavam. As ruas internas do palácio cheiravam a incenso e a folha de papel úmida das telas; o vento outonal empurrava folhas secas contra os degraus, lembrando a todos que a guerra havia deixado rastros — nas casas, nas roupas, nos olhos.
Kyun-Seonk vestiu-se com calma ritualística: o hanbok limpo, sem ornamentos, a faixa bem ajustada, o pergaminho e os pincéis enrolados sob o braço como se fossem uma extensão de si. Dae-Hyun, por sua vez, prendeu a espada com a mesma precisão com que respirava: movimento mecânico, olhar que tentava não procurar nada. Mas procurou. Sempre procurou.
A comitiva que os acompanhou rumo ao Palácio da Rainha era uma pequena constelação do poder: logo atrás do trono do Rei, em assuntos protocolares que envolviam adoções e registros familiares, compareciam o Yeonguijeong — o Primeiro Ministro — com seus passos medidos e a expressão de quem carrega decisões de Estado; o Ijo panseo, ministro dos Assuntos Pessoais, com seus rolos de registros e selos; o Byeongjo panseo, ministro da Guerra, cuja presença lembrava que a política se apoiava também na espada; um sanggung antigo, ostentando correntes de prata e o olhar sempre alerta; e algumas damas de companhia mais próximas da Rainha, cujos sorrisos suaves pareciam amortecer os cantos afiados da corte.
Para um escriba real, ali estava a gravidade e o burburinho das histórias que moldavam destinos; para um guarda, a necessidade de segurar a ordem num lugar onde afeição e política podiam tantas vezes se cruzar.
O salão da Rainha tinha outra atmosfera que o do rei não possuía: era um lugar de misericórdia que, por costume, se vestia de maciez. As paredes eram cobertas por pinturas de paisagens outonais, as lanternas exibiam rendas que suavizavam a claridade; algumas cortinas de seda azulado se abriam para um jardim interno, espalhando o cheiro morno de mostarda amarga e de chá. No centro, a Rainha sentava-se num estrado mais baixo, mas seu porte tornava-a imediatamente maior do que qualquer elevação: trajava robes claros, o rosto tranquilo, mãos que pareciam sempre prontas a trazer algum consolo.
Havia algo nela de maternal sem ser maternalista — uma santa discreta que, mesmo cercada por poder, preferia resgatar vidas. Corriam boatos no palácio que, quando podia, ela acolhia crianças rejeitadas: filhos de concubinas caídas, órfãos de batalhas, miúdos que o destino descartara.
Hoje, era dia de oficializar a adoção de mais uma dessas vidas.
Antes de a cerimônia começar, um menino pálido foi trazido ao estrado. Tinha talvez sete anos, olhos grandes demais para a face magra, e as mãos que segurava o pano que o cobria tremiam à mercê da formalidade.
A Rainha sorriu para ele com uma autoridade tão funda que parecia tornar a frase “este é agora meu filho” numa sentença de salvação. Quando falou, sua voz enchia o salão sem forçar: “Que fique registrado, por minha vontade — este menino será reconhecido como filho desta Casa, com direitos e cuidados. Que a providência nos guie a ele um futuro que lhe foi negado.” Havia, na sua fala, a intenção deliberada de rebentar pequenas correntes: naquele gesto, muitos viam não apenas o ato de adotar, mas uma sentença contra a crueldade que a vida adulta fazia em crianças.
Kyun-Seonk acomodou-se à mesa de escriba com a reverência de sempre. O pincel entre seus dedos tinha aquela carga quase religiosa: cada traço deveria ser exato, porque as palavras, seladas e guardadas, teriam força para mover propriedades, posições, destinos. Ele mergulhou o pincel na tinta — o som húmido do pincel tocando a superfície do tinteiro — e começou a transcrever.
A caligrafia era lenta, medida; “Pela graça de Sua Majestade a Rainha, decretamos…”, e depois os detalhes do registro: nome do adotado, data, testemunhas, selos. As letras se alinhavam como sentinelas. Escrever, para Kyun-Seonk, era uma forma de proteger o mundo de si mesmo, e nele havia a estranha consciência de que traduzir amor em papel já era uma forma de sacrifício.
Dae-Hyun ficou de pé, não muito longe, numa posição que o colocava entre o público e a Rainha, mas não era só segurança o que fazia: era presença. As multidões que assistiam à adoção — ministros, damas, alguns assistentes do palácio — moviam-se em reverência, e por vezes olhavam para os dois irmãos. Dae-Hyun mantinha a postura, mas era óbvio que os olhos dele, de quando em quando, escapavam para Kyun-Seonk.
O escriba abaixava a cabeça, os traços precisos, os dedos macios segurando o pincel; a máscara do trabalho escondia o rosto, mas não os ombros tensos. Existia aí, no silêncio entre tinta e olhar, uma corda prestes a arrebentar.
Quando chegou o momento de assinar com o selo, o Ijo panseo aproximou-se com o rolo de lacre e, entre cerimônia e minudência, selou os termos. A Rainha, com ternura pública, fez um gesto de benção sobre o menino; as damas puxaram discretas toalhas para enxugar seu rosto; o Yeonguijeong murmurou algumas palavras de protocolo. Foi um momento de delicada solenidade — a Rainha transformando desgraça em possibilidade.
Para Kyun-Seonk, observar aquilo era uma dor doída, porque lembrou-lhe das mães que perdera, das perguntas sem resposta que pendiam sobre sua própria origem; a adoção o atingia por empatizar com o menino que agora teria uma casa onde, talvez, algo parecido com acolhimento poderia florescer.
A aproximação deles, na mesa do escriba, achou uma razão prática: a sala era estreita; as fileiras de nobres e servidores comprimiam o espaço. Dae-Hyun avançou para conferir a segurança do entorno e, justamente naquele movimento, sua mão encontrou uma posição que parecia inteiramente profissional — a palma encostando, por instinto, na lombar de Kyun-Seonk para ajudar o escriba a erguer-se e receber o papel selado. O toque foi mínimo: a carícia de um guerreiro que ajusta a postura de outro; ninguém notaria se não fosse a carga que o gesto trouxe.
Porém, aos corpos que se conheciam em intimidade, até o menor contato diz segredos. A mão de Dae-Hyun passou por baixo das costas de Kyun-Seonk — por baixo do tecido leve, as pontas dos dedos roçando a linha da coluna — apenas o suficiente para sustentar, apenas o bastante para que um frio eléctrico subisse da pele para o cérebro. Kyun-Seonk estremeceu, um ruído soturno que quase foi abafado pelo murmúrio dos presentes. Sentiu a pele inteira despertar; um arrepio percorreu-lhe a nuca até o cós das roupas, e por um segundo o pincel tremeu, fazendo a gota de tinta escorregar quase sendo imperceptível.
Ele reteve o movimento, recolocou a mão no tinteiro com naturalidade forçada, e evitou erguer os olhos.
Dae-Hyun, percebendo o reflexo, demorou um compasso. O gesto havia sido técnico, mas a intenção foi outra coisa qualquer: cuidado que disfarçava desejo, segurança que ocultava avidez. Permaneceu por um segundo com a mão aquecendo a lombar do irmão, sentindo sob o tecido a respiração mudada.
Era um toque pequeno, mas que rasgou uma trama antiga entre eles — aquela espécie de fio que, se puxado, poderia soltar tudo.
Nenhum dos dois desfez o laço público. Era preciso manter compostura. A Rainha encerrou a audiência com palavras de cuidado, e a criançada foi levada para o palácio interior, onde as amas aguardavam. O público dispersou-se com reverência e conversa baixa.
O Yeonguijeong fez uma inclinação formal para a Rainha e passou adiante alguma recomendação; o Ijo panseo inclinou-se para Kyun-Seonk com um aceno que significava aprovação pelo cuidado com a redação. “Bem escrito”, murmurou, e Kyun-Seonk respondeu com uma leve inclinação, segurando ainda o calor no corpo como se fosse algo invisível que o impedisse de se mover com naturalidade.
Ao sair do salão, Dae-Hyun manteve-se próximo; não por dever protocolar, mas por uma necessidade que não queria confessar nem a si mesmo. Kyun-Seonk caminhava alguns passos à frente, as mãos entrelaçadas na faixa do traje, os pensamentos pegajosos. Eles atravessaram galerias perfumadas, corredores onde os criados passavam com bandejas e onde os cães do palácio dormiam enrolados em mantas.
Em certo ponto, em que o fluxo de pessoas apertou e uma fila os obrigou a andar lado a lado, a mão de Dae-Hyun, agora impossível de conter, deslizou de novo — dessa vez, em bruto, ao longo da costura do hanbok, até pousar na parte inferior das costas de Kyun-Seonk. Um gesto quase protetor, quase possessivo. Kyun-Seonk sentiu as pernas fraquejarem por instante; ajustou a respiração, como se quisesse engolir aquela nova onda de calor.
Eles não trocaram palavras. Não precisaram. Havia entre eles um acordo tácito de silêncio: a tentação existia, latente; a proximidade era física e emocional; e ambos, naquele momento, decidiram que o mundo ainda não podia ceder. Ainda. Ambos tinham consciência de que, se deixassem aquilo crescer, perderiam mais do que o calor de um toque; perderiam postos, nomes, a tênue paz que o general Jong-Hoon esforçara para garantir. Havia deveres, e havia perigos; havia, também, um afeto que já não cabia em rótulos simples.
Quando alcançaram o pátio do salão da Rainha, Dae-Hyun finalmente recuou a mão e ajeitou o cabo da espada como quem ajusta a realidade. Ele lançou-lhe um olhar furtivo — uma tempestade contida — e, sem pedir licença, aproximou-se o suficiente para que só Kyun-Seonk ouvisse: “Ficarei ao teu lado, sempre que puderes permitir.” A promessa foi dita tão baixinho que podia ser posta entre as pétalas secas do chão e se perderia com o vento; mesmo assim, Kyun-Seonk escutou. Respondeu com um aceno que foi tanto agradecimento quanto censura.
Enquanto a comitiva se fragmentava — ministros retornando aos seus ofícios, damas acompanhando a Rainha com graus variados de devoção, eunucos carregando documentos — a mão fantasmal de Dae-Hyun ficou gravada na pele de Kyun-Seonk como um brasão invisível. O empregou a si mesmo a lembrar que mesmo um toque pequeno podia mudar tudo. E, por ora, decidiram ambos conter a chama: desejavam, sabiam, mas escolheram adiar o incêndio. No retorno, cada um carregou consigo não apenas o peso das obrigações, mas a sensação latente de que, a qualquer momento, bastaria um gesto a mais para que o mundo deles desabasse — e talvez, de forma estranha e temerária, para que se tornasse inteiro.
No fim do dia, quando as luzes do palácio tremularam e as sombras alongaram-se como dedos, Kyun-Seonk limpou a tinta das mãos e deixou que aquele calor — que ainda vinha por baixo da pele como um segredo — fosse, por enquanto, apenas um sinal. Dae-Hyun, enquanto isso, caminhou com passos retos, mas com a promessa interna de não desistir tão cedo. O toque fora pequeno; o efeito seria imenso.
continua....
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 29
Comments