O sol já tinha subido quando a polícia finalmente deu as caras.
Eu ainda estava por perto, só que ninguém sabia.
Eles chegaram devagar, como quem pisa em terreno minado. Dois sargentos. Um velho, calejado, com a barriga estufada e o olhar cansado. Outro novo demais, ainda com cheiro de academia de polícia, tentando disfarçar o medo.
Entraram na sala. Primeiro olharam os corpos. Depois, respiraram pela boca, porque o ar já estava grosso, empastado de ferro e podridão. O mais velho balançou a cabeça devagar. O novato tremia a mão no coldre, como se a pistola fosse salvá-lo de alguma coisa.
— Oito homens decapitados… — murmurou o garoto. — E o chefe… meu Deus do céu… o coração arrancado, vísceras espalhadas… e ainda essa… essa humilhação.
Ah, eu queria rir. Queria gargalhar alto, porque eles ainda não tinham entendido nada. Para eles era horror, para mim era arte. Cada víscera no lugar certo, cada pedaço de carne compondo uma pintura. O coração na mão esquerda, a cabeça na direita. Uma exposição de justiça, e eles olhando como se fosse só brutalidade.
O novato engoliu seco, e sua voz saiu como um soluço:
— Isso aqui não é guerra de tráfico, não. Isso aqui foi ódio. Foi coisa pessoal.
O mais velho franziu a testa, revirou o papel que eu deixei em cima da mesa com a ponta da caneta. A leitura foi seca, sem enfeite:
— Aqui tá escrito. Sentença cumprida.
E completou, como se decretasse junto comigo:
— Isso aqui não é recado de boca rival. Isso aqui é execução.
Quase aplaudi. Quase levantei e disse: “Parabéns, sargento, você acertou na mosca.”
Mas eu não podia. Não ainda.
Foi aí que um dos sobreviventes abriu a boca. Um rato de esgoto que teve a sorte de não estar na casa naquela hora. Estourou em raiva, a voz embargada, cuspindo mais medo que coragem:
— Mais respeito com o nosso chefe, porra!
Eu vi o sargento mais velho virar a cabeça devagar. Encostou o olhar pesado naquele verme e respondeu com calma, como quem mastiga a própria ironia:
— Chefe o quê, rapaz? Vocês mesmos chamaram a gente aqui. Se chamaram, agora vão ter que ouvir.
E então ele fez a pergunta que ninguém queria responder:
— Como é que oito homens armados não reagiram? Hein? Vocês estavam chapados? Tavam noiados?
Silêncio.
Um silêncio que eu conheço bem.
Silêncio de medo. Silêncio de quem sabe que a resposta não cabe nas regras desse mundo.
Porque quem dorme diante da fera não acorda.
Foi então que a voz veio de fora. Uma mulher, dessas que vivem na soleira da porta, olhos sempre atentos ao movimento do beco. Ela gritou sem pudor:
— Só quem ficou vivo foi o cachorro!
Ah, e como eu tive que morder a língua pra não rir.
Todos viraram a cabeça, quase em sincronia. E lá estava eu. Um cão claro, pelo champanhe, olhos azuis, sentado diante da porta como se nada tivesse acontecido. O ar carregado de sangue não me incomodava. Aquele era o meu perfume.
Alguns moradores se benzeram, desenhando cruzes no ar com dedos trêmulos. Outros recuaram, puxando as crianças para dentro de casa. E uma delas, de voz fina, quase inocente, murmurou:
— É o lobinho do chefe…
Pronto. Bastou uma frase de criança para o boato se espalhar como fogo em palha seca: o único sobrevivente da chacina foi o cachorro.
Eu me levantei. O sangue seco estalava na minha pelagem clara, mas ninguém ousou se aproximar. Passei pelo portão de ferro de cabeça erguida, língua de fora, rabo balançando devagar. Para eles, eu era só o cachorro de estimação do chefe voltando da ronda.
E dentro de mim, eu gargalhava.
Gargalhava como um Coringa de viela, um palhaço sangrento. Eles não viam nada. Ninguém percebia que o mesmo “lobinho” que eles acariciavam nas ruas era o carrasco que tinha transformado o morro em tribunal.
Querem saber o que é engraçado?
É ver policial com pistola na cintura rezando baixinho.
É ver traficante armado até os dentes tremendo diante de um vira-lata.
É ver uma comunidade inteira acreditando que o cachorro sobreviveu… quando, na verdade, o cachorro era o assassino.
Esse é o tipo de piada que só eu posso contar. Piada escrita em sangue.
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Atualizado até capítulo 32
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