Vocês pensam que por eu morar no morro, eu usava droga?
Não.
Vocês pensam que por eu viver entre eles, eu era um deles?
Nunca.
Eu aprendi cedo que o veneno que circulava no morro não era só o pó que vendiam nos becos. Era a podridão que entrava nas casas, o riso debochado dos que mandavam, a sensação de que a vida ali não valia nada. Eu não queria aquilo dentro de mim.
Eu trabalhei. Ajudei meu pai a carregar sacos, a empurrar carroças, a se manter vivo mesmo quando o peso da culpa quase quebrava suas costas. Eu tirei meus pais do morro, porque não queria que minhas irmãs menores acabassem como a Galeguinha — devoradas pela crueldade.
Mas eu fiquei.
Fiquei no barraco. Fiquei nas escadarias, nas ruas estreitas, nos becos que cheiravam a esgoto e pólvora. Fiquei porque eu tinha uma promessa. Porque o morro ainda me devia.
De dia, eu era só mais um rosto. Trabalhava, estudava. Faculdade à noite, sono curto de madrugada, caderno sujo de café e suor.
Mas ninguém nunca me chamou pelo meu nome. Para todos eu era só o “Galego”, o “Galeguinho”, o cachorro perdido que estudava mas continuava ali, como se não tivesse saída.
E eu deixava. Deixava rirem. Deixava me verem pequeno. Deixava me reduzirem a apelido.
Porque eles nunca perceberam que quem ri por último é quem sangra por dentro primeiro.
Quando chegava da faculdade, entrava no meu barraco, jantava com calma — o arroz simples, o feijão ralo. Mudava de roupa.
E então vinha o ritual.
A pele humana não era prisão, mas também não era verdade. Aos poucos, eu me despia dela. Me tornava o vira-lata que todo mundo pensava que era só mais um da matilha do morro. Eles achavam que eu era só mais um cachorro, vivendo do resto, dormindo no canto.
Mas eu estava ali disfarçado. Observando.
Aprendendo.
Esperando.
E nessa noite, o chefão pagou a conta.
Pagou pelo que fez com minha irmã. Pagou pelo que fez com meu pai. Pagou pelo riso que o morro inteiro soltou às custas do nosso sofrimento.
Eu entrei na casa dele em silêncio. Fingi ser o animal de estimação que ele achava que tinha. Deixei que ele me chamasse de “meu lobinho”. Deixei que risse, que mandasse trazer carne, que se sentisse seguro.
Mas vocês querem saber a verdade?
Enquanto eu fingia mastigar, eu só contava os segundos.
Enquanto eles dormiam, eu só afinava a lâmina que carrego dentro de mim.
Enquanto os cães do lado de fora gemiam, eu já ouvia os gritos que viriam.
E quando a lua bateu o ponto certo, eu deixei cair a máscara.
Vocês acham que já viram horror?
Não.
O horror começa quando o corpo humano se abre de dentro para fora, quando ossos estalam como lenha seca, quando a carne se rasga para dar passagem ao que não deveria existir.
O horror começa quando os olhos brilham como fogo azul no escuro.
Quando o vira-lata se ergue em duas patas.
Quando a respiração enche o quarto como um trovão abafado.
A partir daí, não há salvação.
Só sentença.
A faculdade terminou tarde naquela noite. Eu desci do ônibus com os olhos pesados, mas o cansaço nunca alcança o que vive dentro de mim. A carne reclama, os músculos doem, mas algo em meu sangue nunca dorme, nunca se rende, nunca descansa. Carrego em silêncio uma fome que não é de comida, uma tensão que não é de estudo, um chamado que nenhuma sala de aula pode calar.
Peguei o atalho de sempre, a rua de barro, a escadaria estreita que serpenteia até o alto do morro. Cada degrau era memória. Cada pedra era cicatriz. O mundo ao redor parecia adormecido, mas eu sabia — o morro nunca dorme de verdade. Ele apenas finge.
E quando alcancei a beira, deixei a pele humana para trás.
O corpo se contraiu. Primeiro os dedos, que se curvaram até estalar. Depois as pernas, que rangeram como madeira podre. Minha coluna se arqueou com um som que teria feito qualquer mortal desmaiar. A dor é antiga, mas para mim virou música. Ossos rangendo, músculos retorcendo, cada fibra se abrindo para que o outro eu, o verdadeiro, saísse.
Pelos claros começaram a brotar, queimando como brasas que se acendem ao contrário: não para fora, mas de dentro para fora. A pele humana rasgou-se em linhas invisíveis, e debaixo dela surgiu o que eu sempre fui. Em segundos, o rapaz magro e estudioso desapareceu. Em seu lugar, um lobo de pelagem champanhe, olhos azuis que cortam a noite como lâminas.
O lobinho. É assim que eles me chamavam. Como se diminutivo pudesse esconder o tamanho da fera.
Caminhei leve, silencioso, até a casa do chefão. O portão de ferro cheirava a sangue seco e pólvora. Parei diante da porta e arranhei a madeira com as garras, suave, ritual antigo que eles já conheciam.
O som ecoou pela sala e logo veio a voz grossa, satisfeita, carregada de falsa afeição:
— Olha só quem chegou! O meu lobinho.
“Meu”. A palavra sempre me queimava por dentro. Eu não era de ninguém. Nunca fui. Mas deixei escapar apenas um rosnado baixo, escondido na garganta.
Ele mandou chamar um dos capangas.
— Sirva um bife pro lobinho. E traga água limpa. Ele tem que descansar.
Eles riram, debocharam, como sempre. Para eles, eu era só um cachorro de luxo, um brinquedo exótico que o chefão gostava de exibir. Nenhum deles ousava dizer isso alto demais, porque ninguém contrariava o dono do morro.
Colocaram diante de mim um prato com carne ainda sangrenta e um balde de água limpa. Abaixei a cabeça. Mastiguei devagar, fingindo comer. Engoli o silêncio, não a carne. Eles não sabiam que eu só esperava.
A noite engoliu a casa. Primeiro, as vozes diminuíram. Depois, o peso da bebida e da droga fez os corpos tombarem. Sofás, cadeiras, até o chão serviu de berço para os mortos-vivos que ainda respiravam. O chefão, largado na poltrona, roncava alto, a pistola caída perto da mão. Ele não sabia, mas já estava com os pés na cova.
Eu fiquei imóvel. O relógio da parede cuspiu suas horas. Uma. Duas. Meia-noite. Duas da manhã. Cada badalada era um chamado. E quando os cães lá fora começaram a se inquietar, gemendo baixo, eu soube que era hora.
Meus olhos queimaram em azul mais forte. O corpo tremeu. Cresceu. Rompeu o disfarce. Patas se tornaram mãos com garras longas. O dorso se arqueou, expandindo até a pele se rasgar. A mandíbula estendeu-se, revelando dentes que não servem para mastigar — mas para cortar.
O silêncio foi quebrado pela minha respiração pesada. O lobinho havia sumido. O lobisomem estava ali.
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Atualizado até capítulo 32
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