O LOBISOMEM NO MORRO

O LOBISOMEM NO MORRO

####PRÓLOGO

Quando os Cães Uivaram

Eu era criança quando a desgraça arrebentou a porta do nosso barraco.

Tinha nove anos. O mundo, até então, era pequeno: o colo da minha mãe, o riso tímido do meu pai, o cheiro de feijão barato e a vista torta do morro. Naquela noite, o morro mostrou os dentes.

Entraram aos pontapés. Derrubaram meu pai no chão batido, arrastaram ele pelos braços, cuspiram na cara dele. Tomaram minha irmã de treze anos como quem toma um objeto.

— Aqui quem manda é a força — disseram. — A tua filha agora é nossa.

Minha mãe me prendeu ao peito. Eu gritei. Não adiantou. A Galeguinha — pele clara do sol do sertão, olhos azuis de promessa, cabelo loiro preso num laço pobre — foi levada.

Meu pai se arrastou até a soleira, implorando, e eu vi a cena que nunca esqueci: um homem grande, reduzido à poeira. Eles riram. O morro riu com eles.

Poucos dias depois, a Galeguinha escolheu o vazio. Desceu o penhasco com o corpo inteiro, e o morro devolveu só silêncio.

Ali eu entendi: alguns lugares devoram o que é puro.

Nessa noite, deitado no chão do barraco, ouvi a minha própria voz por dentro:

Espera.

Hoje teu pai chora. Amanhã eles choram.

Espera.

Eu esperei. Cresci no tempo e na raiva. Meu pai encolheu no tempo e na culpa. Continuou trabalhando como quem empurra uma carroça quebrada: por mim, pela minha mãe, pelas duas irmãs menores. Às vezes ele me olhava como quem tentava adivinhar o que eu ia me tornar. Talvez, no fundo, ele soubesse.

Quando fiz dezoito, não foi a lua que me chamou. Foi um repeteco de horror: um homem encurralando outra menina na beira da escadaria de concreto, o mesmo script, a mesma covardia.

Algo dentro de mim estourou. O ar ficou cortante. O som, distante. As coisas certas de repente se encaixaram: a fúria, o faro, a certeza.

Meu pai me segurou dentro do barraco, os olhos fundos, a voz que só saía em sussurro:

— Filho… não vira o que teu avô foi. Lá no Nordeste, ele se alimentava de gente. Eu fugi pra te salvar disso. Eu não herdei… você herdou. Pelo amor de Deus…

Eu olhei pra ele e falei:

— Eu não sou fome, pai. Eu sou sentença.

Não precisei de lua. Precisei de vontade.

Aprendi a me mover sem ruído, a virar sombra nas sombras. Estudei. Treinei o corpo. Treinei a calma. Treinei a fera até ela aprender meu nome. O morro tem olhos, mas eu virei aquilo que olhos não pegam: passo mudo, cheiro de chuva, escuridão andando.

Os cães foram os primeiros a me reconhecer. Não latiram. Cercaram. Cheiraram o meu silêncio e deitaram perto, como se repousassem aos pés de um altar. Toquei a nuca de um, cocei a orelha de outro, e sussurrei:

— Falta pouco.

Na primeira noite de lua cheia, eu disse à matilha:

— Hoje vocês vão chorar bem alto.

Na segunda, eu prometi ao morro:

— Hoje quem chora são vocês.

E assim foi feito.

A primeira sentença saiu limpa. Encontrei o homem que fazia com a nova menina o que fizeram com a minha. O meu corpo se alongou para onde precisava, ossos que rangem, músculos que lembram. Pele que rasga para abrir lugar àquilo que sou quando preciso ser. Não pela fome. Pelo veredito.

Fui silencioso. Quando acabou, havia sangue, havia um pescoço vazio do grito, havia uma marca que ninguém confundiria. O morro acordou com rumores: “Quem fez isso?” E eu, por dentro, respondi: Eu. Mas ninguém me ouviu.

Vieram outras noites. O boato cresceu.

Uns diziam que era um homem.

Outros, um cachorro.

Teve quem jurasse ter visto um lobo alto como um poste.

A palavra fantasma voltou às bocas que rezam. Ninguém explicava os cachorros: eles sempre sabiam antes. Primeiro gemiam baixo, como se lamentassem o mundo. Depois, de uma só vez, uivavam — e o uivo fazia o morro gelar.

Eu virei vizinho de todos. Andei solto como vira-lata, recebi carinho de criança, ganhei restos de pão. Passei entre eles invisível. O morro tem “dono”; o “dono” me afagou a cabeça numa noite, rindo:

— Olha meu lobinho.

Eu levantei os olhos para ele e pensei: o último.

Na madrugada que a velha Dona Mazinha nunca esqueceu, os cães choraram como antigamente. Ela disse para a filha:

— Quando eles choram desse jeito, é morte incerta. Faz cinco anos que eu não escuto assim. Amanhã, cê vai ver coisa nova.

Rita deu de ombros, mas fechou a janela com as mãos tremendo.

Eu estava no alto, onde o vento é mais frio e o barulho morre. O “dono” do morro havia mandado juntar seus homens para um “recado”. Eu atravessei a reunião como vento que corta.

Meu corpo foi o que precisava ser: humano-lobo, garras onde antes havia dedos, dentes como ferramentas, olhos sem piedade. Fui rápido. Fui preciso. Fui a faca que não brilha.

A cabeça caiu primeiro, como fruta madura.

O tronco titubeou, ainda tentando entender que já era.

A caixa torácica abriu num estalo, obediente, como porta de armário antigo.

A mão esquerda recebeu o coração — pesado, quente, cuspindo o último resto de batida.

O ventre se abriu em tripas expostas, para que todo mundo visse o que o morro guarda por dentro.

E, no sangue, deixei o papel que sempre deixo, a caligrafia firme, sem floreio:

Sentença cumprida.

Silêncio.

Os outros não tiveram tempo de gritar. O mundo, naquele vão de segundos, ficou só de respirações cortadas, um poste zumbindo, um cão isolado chorando longe — e eu partindo, fantasma, sem pegada, sem sombra, sem testemunha.

Às cinco e meia, o morro virou alarme.

Rita, no caminho pro trabalho, estacou no beco, o coração na boca.

— Meu Deus…

Os traficantes que sobraram juntaram-se em torno do corpo como moscas sem rumo. A velha Mazinha chegou devagar, os olhos rasos d’água, e sussurrou para ninguém e para todos:

— Eu falei.

Quem matou?

Uns apontaram pro céu. Outros pro chão. A maioria não disse nada.

Mas todo mundo entendeu o recado: voltou.

Eu passei por eles no caminho de casa, manso, com a língua de fora, o rabo balançando devagar, o pelo sujo de poeira. Uma criança me fez carinho na cabeça. Um homem me chamou de “galego”.

Ninguém viu o que os cães veem.

Ninguém ouviu o que o morro ouve quando eu respiro.

Eu não como.

Eu elimino.

Não sou espetáculo, nem lenda de cantoria. Sou a lei que entra onde a lei não sobe.

Sou o erro corrigido com as próprias mãos.

Sou o que os culpados enxergam um segundo antes do fim.

Sou o que disseram que não existe.

Sou o que ninguém reconhece, embora todos conheçam.

Sou O Lobisomem no Morro.

E isto foi apenas o começo.

Mais populares

Comments

Rosyanny Nerys

Rosyanny Nerys

gostei parece ser um bom livro

2025-10-04

0

Ver todos

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!