O Cativeiro Da Raposa Negra.

O Cativeiro Da Raposa Negra.

Capítulo 1 - O cântico da Lua.

Diz-se que, em noites de lua cheia, a deusa raposa de seis caudas caminhava pela terra sob o disfarce da escuridão. Sua beleza encantava as florestas e seu poder moldava os rios e ventos. Foi em uma dessas noites que um homem humano, perdido na mata, cruzou seu caminho. Contra todas as leis divinas, a deusa se apaixonou — e desse amor proibido nasceram os primeiros Kitsune, filhos de dois mundos.

Livres como o vento, os híbridos construíram clãs em meio à floresta, vivendo em harmonia com a terra. Mas poucos descendentes herdaram o sangue puro da deusa de seis caudas, e entre eles estavam Shai, a Grande Líder, e sua filha Aiyra, a última esperança do povo.

Shai governava o Clã Kitsune Negro, abrigado na floresta do Sul, protegendo os seus contra os avanços cruéis do império humano. Desde cedo, ensinara Aiyra a ser líder: a usar o arco e a espada, a comandar o clã e, acima de tudo, a controlar sua transformação. Pois a raposa dentro deles não era apenas força — era essência. Para não perderem a alma selvagem, todo Kitsune deveria se transformar ao menos uma vez por mês. Negar isso era perder a bênção da deusa, enfraquecer o corpo até a doença.

Naquele dia, sob o sol suave da tarde, Shai estava no rio. Sentada à beira da água, de olhos fechados, mantinha-se em meditação. A brisa leve balançava seu longo cabelo negro e, quando um som discreto chegou por trás dela, suas orelhas de raposa se mexeram.

— Está atrasada. — disse com um sorriso sereno. — Venha se banhar, já trouxe seu kimono.

De trás das árvores, Aiyra surgiu, com os olhos dourados brilhando de malícia. Seu corpo estava coberto de sangue da caçada, e na mão trazia quatro coelhos pendurados pelas patas. A cauda negra balançava em triunfo.

— Nossa, suas orelhas são boas demais! — riu. — Eu até tentei vir devagar...

Shai se virou lentamente, abrindo os olhos para observar a filha. Aiyra estava nua, marcada pela caça, mas sorria com orgulho juvenil.

— Precisa melhorar sua respiração — advertiu a mãe, calma, mas firme. — Ainda é muito alta, consigo ouvir cada passo seu.

— Ah,Riyah… (Mãe ) — Aiyra ergueu os coelhos, triunfante. — Olha só, trouxe quatro para a vila. Nada mal, não é?

Shai sorriu diante do entusiasmo da filha. Mas seus olhos guardavam uma gravidade que Aiyra ainda não percebia.

— Hoje é o dia da sua apresentação à deusa. — disse, com um tom mais solene. — Sua dança e seu cântico não são apenas tradição… são o elo que mantém a bênção da raposa sobre nós.

Aiyra continuou sorrindo, sem notar o peso daquelas palavras. Para ela, ainda era uma celebração, não o presságio de responsabilidades e sombras que logo cairiam sobre seu povo.

Aiyra deixou os coelhos no chão e correu até o rio. Com um salto gracioso, mergulhou nas águas claras. Shai observava com um sorriso discreto, vendo a filha emergir, os longos cabelos negros colados ao corpo enquanto se lavava.

— Riyah… — chamou a jovem, a voz suave ecoando sobre a correnteza. — Vi uns humanos estranhos enquanto caçava. Fiz como me pediu e me escondi.

Shai abriu lentamente os olhos, fixando-os na filha.

— Muito bem. — respondeu com firmeza. — Não devemos nos aproximar deles. Os humanos fedem ao sangue da própria espécie… não são confiáveis.

— Eu senti o fedor deles… — murmurou Aiyra, com expressão de nojo, suas orelhas se abaixando instintivamente.

Por um instante, Shai ergueu o olhar para o alto das árvores, como se pudesse farejar o perigo na própria brisa. Um calafrio sutil percorreu sua espinha, mas ela nada disse. Apenas aguardou a filha sair do rio.

Aiyra caminhou até a margem, e Shai se aproximou com um tecido branco nas mãos. Sem dizer palavra, começou a secar delicadamente os cabelos e as orelhas da filha, passando depois pela cauda volumosa.

— Devagar com a minha cauda, Riyah… — protestou Aiyra, franzindo o rosto em um sorriso brincalhão.

Shai riu, a seriedade se dissolvendo por um instante.

— Temos que secar direito, ou ficará pingando e molhará seu kimono.

Aiyra riu também, deixando-se cuidar.

— Tudo bem…

A cena parecia simples, mas escondia o peso de gerações. O toque de Shai não era apenas de mãe — era de líder, de guia, de guardiã da herança da deusa. E naquele dia, mais do que nunca, os olhos da deusa estariam sobre Aiyra.

Aiyra vestiu seu kimono branco com detalhes negros, ajeitando a faixa na cintura, enquanto Shai dobrava com cuidado o tecido usado para secá-la. As duas caminharam lado a lado pela trilha que levava à vila, seus passos leves acompanhados pelo farfalhar das folhas.

Ao chegarem, foram recebidas pelo cenário vivo de seu povo: crianças híbridas corriam rindo entre as cabanas, suas caudas balançando ao vento, enquanto os adultos conversavam em torno das fogueiras, preparando ervas, tecidos e armas. Sempre que Shai passava, inclinavam-se em respeito, tocando a testa como sinal de reverência à grande líder.

Aiyra, com a energia juvenil ainda pulsando no corpo, correu até a cabana do curandeiro Adom. Abriu a cortina de palha e entrou sorridente.

— Trouxe quatro deles! — anunciou, erguendo os coelhos recém-caçados.

Adom levantou o rosto. Seus longos cabelos brancos, presos em um rabo de cavalo, caíam sobre as costas. Os olhos violeta cintilaram sob a luz do fogo. Ele sorriu e se curvou levemente.

— Nossa… a caçada foi boa pelo visto.

Aiyra riu, orgulhosa:

— Foi agradável.

Adom levantou-se, fechando uma gaveta de madeira onde guardava ervas e frascos. Virou-se para ela, ajeitando a túnica escura que usava.

— Está preparada para a dança?

— Sim — respondeu Aiyra com confiança. — Minha mãe me preparou para isso.

Adom sorriu outra vez, a ponta de sua cauda branca balançando suavemente atrás dele.

— E como está sua orelha? — perguntou Aiyra, lembrando-se do ferimento recente.

Adom tocou delicadamente a ponta da orelha esquerda, onde ainda havia uma marca.

— Está melhor. A cicatrização dos nossos é rápida.

Nesse momento, Shai entrou na cabana. Adom curvou-se imediatamente, reverente.

— Grande líder… é uma honra.

Shai sorriu com gentileza.

— Olá, Adom. Como está hoje?

— Está tudo perfeito — respondeu o curandeiro, com um brilho tranquilo no olhar.

— A vila aguarda ansiosa pelo cântico desta noite.

Shai cruzou os braços e olhou para a filha, com um semblante que misturava orgulho e seriedade.

— Então, Aiyra… que a deusa esteja pronta para receber a sua voz.

A noite havia caído sobre a vila. A grande fogueira já ardia no centro, iluminando as máscaras de raposa usadas por todos os híbridos. Crianças e adultos aguardavam em silêncio respeitoso.

Dentro da cabana, Shai penteava os longos cabelos negros da filha, que cantarolava suavemente.

— Está pronta? Preparada? — perguntou Shai, a voz firme, mas carregada de orgulho.

Aiyra sorriu, seus olhos dourados brilhando à luz da chama.

— Sim, estou!

Shai sorriu em resposta. Nesse instante, os guerreiros leais Raoni e Koda entraram. Com as máscaras já cobrindo seus rostos, eles se curvaram diante da grande líder.

— Está tudo pronto, grande líder.

— Claro — respondeu Shai, assentindo. — Então vamos, Aiyra.

A jovem ajeitou o kimono, sua cauda balançando suavemente atrás de si, e seguiu a mãe. Ao saírem, a vila inteira já aguardava em expectativa.

Shai conduziu a filha até diante da fogueira. O povo fez silêncio. O coração de Aiyra batia acelerado, mas ela respirou fundo. Então ergueu a voz:

“Lumé sharu,

Aylen nari,

Veyla miryen,

Oriah kitsu.”

(Lua dos espíritos,

Amor ao meu povo,

Harmonia na floresta,

Esperança da raposa.)

Sua voz suave ecoou, encantadora, como se fosse um sussurro vindo da própria floresta.

“Riyah tayru,

Serin ashie,

Naiya suvah,

Sharu lioren.”

(Mãe protetora,

Serenidade das águas,

Alegria do sol,

Espíritos que guardam a vida.)

Ela começou a dançar. Os fios de seus cabelos negros, o tecido do kimono e a cauda balançavam em perfeita harmonia com o ritmo. Atrás dela, outros membros da tribo juntaram-se à dança, enquanto guerreiros batiam tambores e instrumentos ecoavam sob a lua cheia.

Shai observava com os olhos marejados de orgulho. Sua filha, herdeira da raposa de seis caudas, estava radiante.

“Kitsu nari,

Veyla haru,

Aylen miryen,

Tayru lumé…”

(Raposa e povo,

Harmonia dos irmãos,

Amor da floresta,

Proteção da lua.)

O povo sorria, batia palmas, acompanhava o ritmo com alegria. Por um instante, parecia que nada poderia quebrar aquela noite sagrada.

Mas então Shai congelou, suas orelhas se ergueram. O cheiro pútrido dos humanos tomou o ar. Ela mal teve tempo de reagir quando o primeiro disparo ecoou.

As armas de fogo rugiram, rasgando o som dos tambores. O fogo inimigo caiu sobre cabanas, destruindo o ritual em segundos. Gritos preencheram a vila.

— CORRAM! PARA A FLORESTA! VAMOS, VAMOS! — gritou Aiyra, a voz embargada de desespero.

Koda surgiu ao lado dela, protegendo-a enquanto ajudava mulheres e crianças a fugir. Raoni rugia contra os invasores, sua espada cintilando. Bolas de fogo lançadas pelos inimigos explodiam, queimando cabanas e árvores ao redor.

No meio do caos, Aiyra avistou Adom tentando libertar um jovem preso sob os destroços.

— ADOM! — gritou, correndo até ele.

Com esforço, ajudou o curandeiro a levantar a madeira e salvar o rapaz.

— Vá! Saiam daqui! — ordenou ela.

Adom a encarou com o olhar firme e preocupado.

— E você?

— Vou atrás da Riyah! — respondeu sem hesitar.

— AIYRA, NÃO! VOLTE! — gritou o curandeiro, mas a jovem já corria, desaparecendo entre fumaça e chamas.

Shai se movia como um furacão no campo de batalha. Seus olhos ardiam em fúria, suas garras afiadas dilaceravam cada soldado que ousava se aproximar. Não era à toa que era chamada de Grande Mãe — a líder do clã, a guardiã de seu povo.

De longe, em uma elevação, o imperador Akirito observava. Seus olhos azuis, frios como o gelo, estreitaram-se diante da cena.

— Senhor… é ela. A líder do clã — sussurrou um de seus servos. — É extremamente perigosa…

Um sorriso cruel surgiu nos lábios do imperador.

— Me dê um rifle. Adoro caçar raposas.

O servo acenou rapidamente, trazendo-lhe a arma. Akirito a pegou com calma, como se fosse um jogo. Seus dedos firmes seguraram o gatilho, e ele mirou.

No campo, Shai invocava a Lança das Almas. A arma mística brilhava em sua mão, cortando o ar quando arremessada contra os inimigos, sempre retornando a ela em um giro flamejante. Os guerreiros híbridos disparavam flechas, derrubando muitos soldados, mas os rifles dos humanos rasgavam o ar com trovões mortais.

Enquanto isso, Aiyra corria pela vila em chamas. Koda estava ao seu lado, ajudando os sobreviventes. No caminho, a jovem avistou corpos dos seus espalhados pelo chão — irmãos, vizinhos, amigos. O peito dela ardeu em ódio e dor.

Um guerreiro híbrido ferido caiu diante dela, um tiro cravado na perna.

— Koda! Leve-o, depressa! — ordenou Aiyra.

Koda não hesitou, carregando o homem em direção aos outros sobreviventes.

Aiyra continuou sozinha, os olhos ardendo em lágrimas e fúria. No caminho, um humano apareceu. Ela correu e saltou sobre ele, suas garras atravessando o pescoço do inimigo. O sangue quente respingou em seu rosto. Sem pensar, ela arrancou dele um arco e flecha e começou a disparar contra outros soldados, matando sem piedade.

No alto, o imperador mantinha a mira em Shai.

— Senhor, precisamos recuar. Ela está acabando com nossos homens! — implorou o servo.

Akirito ignorou. Seus olhos azuis estavam fixos na figura majestosa da líder que lutava. Então, calmamente, ele mirou nas costas dela… e puxou o gatilho.

O estampido ecoou pela floresta.

Aiyra parou, o arco abaixando de suas mãos. Lentamente, virou-se em direção ao som.

Shai estava de pé, ereta como sempre… mas então seu corpo vacilou. Por um instante, sorriu com orgulho, como se confirmasse a força da filha à distância. Em seguida, caiu de joelhos e tombou no chão, a lança escorregando de sua mão.

— Ótimo… a líder já foi. Vamos embora. Foi uma ótima caçada hoje. — disse o imperador, satisfeito.

Seus homens se curvaram, e os servos gritaram ordens de retirada. O exército começou a recuar, deixando para trás apenas destruição e fogo.

Aiyra gritou:

— RIYAH!

Largando o arco, correu em desespero, tropeçando entre cinzas e corpos. Caiu de joelhos ao lado da mãe, puxando-a para seu colo.

— Ahh, Riyah… não… não, Riyah! — sua voz se partia entre soluços, as lágrimas escorrendo por seu rosto.

O sangue deslizava da boca de Shai, mas ainda assim ela sorriu para a filha. Sua mão fraca tocou o rosto da jovem.

— Agora… você tem que proteger nosso povo… minha filha… — sussurrou, sua voz quase sumindo. — Os proteja como eu protegi…

Com esforço, Shai estendeu a mão, empunhando a Lança das Almas. Os dedos tremiam, mas ela conseguiu entregá-la à filha.

Aiyra a pegou com firmeza. Assim que seus dedos se fecharam na arma sagrada, a lança brilhou e se ligou ao seu corpo, queimando como fogo espiritual. Uma tatuagem surgiu em seu pulso, um símbolo ancestral.

Shai sorriu, seus olhos já turvos.

— Eu te amo… minha pequena raposa…

Sua mão escorregou e caiu no chão. Os olhos dourados perderam o brilho. Um vento frio soprou, trazendo consigo o cheiro de sangue e fumaça. A lança desapareceu de sua mão, selada em sua alma.

— Não! Não, Riyah! Ah, Sharu! — gritou Aiyra, chorando em agonia. (Sharu — espírito celestial.)

Mas não houve resposta.

Koda surgiu correndo, o olhar fixo na cena. Seu coração pesou ao ver a grande líder sem vida. Agora, diante dele, estava a nova guardiã do clã.

— Temos que ir, Aiyra. Agora. Eles podem voltar a qualquer momento! — disse com urgência.

A jovem olhou uma última vez para a mãe. Tocou suavemente seus olhos, fechando-os. Inclinou-se e depositou um beijo em sua testa.

— Eu irei honrar sua vontade, Riyah… eu prometo. Por todo o nosso povo.

Então, erguendo-se, deixou o corpo da mãe no campo de batalha.

Ela e Koda correram até a borda da floresta. Antes de atravessar, Aiyra se virou uma última vez. Viu sua vila em ruínas, metade de seu povo morto… e o corpo de sua mãe caído entre as cinzas. Uma chama de ódio queimou em seu peito.

— Kraesh veyra. (A fúria corre como o vento.)

— Meyra naru. (Esperança é fogo.)

Koda assentiu em silêncio, tocando o ombro dela. Juntos, seguiram para a escuridão da floresta.

Aiyra não era mais apenas filha.

Era a nova líder do clã Kitsune.

E, em seus olhos, a promessa da raposa negra cintilava: o ódio pelos humanos.

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