Diz-se que, em noites de lua cheia, a deusa raposa de seis caudas caminhava pela terra sob o disfarce da escuridão. Sua beleza encantava as florestas e seu poder moldava os rios e ventos. Foi em uma dessas noites que um homem humano, perdido na mata, cruzou seu caminho. Contra todas as leis divinas, a deusa se apaixonou — e desse amor proibido nasceram os primeiros Kitsune, filhos de dois mundos.
Livres como o vento, os híbridos construíram clãs em meio à floresta, vivendo em harmonia com a terra. Mas poucos descendentes herdaram o sangue puro da deusa de seis caudas, e entre eles estavam Shai, a Grande Líder, e sua filha Aiyra, a última esperança do povo.
Shai governava o Clã Kitsune Negro, abrigado na floresta do Sul, protegendo os seus contra os avanços cruéis do império humano. Desde cedo, ensinara Aiyra a ser líder: a usar o arco e a espada, a comandar o clã e, acima de tudo, a controlar sua transformação. Pois a raposa dentro deles não era apenas força — era essência. Para não perderem a alma selvagem, todo Kitsune deveria se transformar ao menos uma vez por mês. Negar isso era perder a bênção da deusa, enfraquecer o corpo até a doença.
Naquele dia, sob o sol suave da tarde, Shai estava no rio. Sentada à beira da água, de olhos fechados, mantinha-se em meditação. A brisa leve balançava seu longo cabelo negro e, quando um som discreto chegou por trás dela, suas orelhas de raposa se mexeram.
— Está atrasada. — disse com um sorriso sereno. — Venha se banhar, já trouxe seu kimono.
De trás das árvores, Aiyra surgiu, com os olhos dourados brilhando de malícia. Seu corpo estava coberto de sangue da caçada, e na mão trazia quatro coelhos pendurados pelas patas. A cauda negra balançava em triunfo.
— Nossa, suas orelhas são boas demais! — riu. — Eu até tentei vir devagar...
Shai se virou lentamente, abrindo os olhos para observar a filha. Aiyra estava nua, marcada pela caça, mas sorria com orgulho juvenil.
— Precisa melhorar sua respiração — advertiu a mãe, calma, mas firme. — Ainda é muito alta, consigo ouvir cada passo seu.
— Ah,Riyah… (Mãe ) — Aiyra ergueu os coelhos, triunfante. — Olha só, trouxe quatro para a vila. Nada mal, não é?
Shai sorriu diante do entusiasmo da filha. Mas seus olhos guardavam uma gravidade que Aiyra ainda não percebia.
— Hoje é o dia da sua apresentação à deusa. — disse, com um tom mais solene. — Sua dança e seu cântico não são apenas tradição… são o elo que mantém a bênção da raposa sobre nós.
Aiyra continuou sorrindo, sem notar o peso daquelas palavras. Para ela, ainda era uma celebração, não o presságio de responsabilidades e sombras que logo cairiam sobre seu povo.
Aiyra deixou os coelhos no chão e correu até o rio. Com um salto gracioso, mergulhou nas águas claras. Shai observava com um sorriso discreto, vendo a filha emergir, os longos cabelos negros colados ao corpo enquanto se lavava.
— Riyah… — chamou a jovem, a voz suave ecoando sobre a correnteza. — Vi uns humanos estranhos enquanto caçava. Fiz como me pediu e me escondi.
Shai abriu lentamente os olhos, fixando-os na filha.
— Muito bem. — respondeu com firmeza. — Não devemos nos aproximar deles. Os humanos fedem ao sangue da própria espécie… não são confiáveis.
— Eu senti o fedor deles… — murmurou Aiyra, com expressão de nojo, suas orelhas se abaixando instintivamente.
Por um instante, Shai ergueu o olhar para o alto das árvores, como se pudesse farejar o perigo na própria brisa. Um calafrio sutil percorreu sua espinha, mas ela nada disse. Apenas aguardou a filha sair do rio.
Aiyra caminhou até a margem, e Shai se aproximou com um tecido branco nas mãos. Sem dizer palavra, começou a secar delicadamente os cabelos e as orelhas da filha, passando depois pela cauda volumosa.
— Devagar com a minha cauda, Riyah… — protestou Aiyra, franzindo o rosto em um sorriso brincalhão.
Shai riu, a seriedade se dissolvendo por um instante.
— Temos que secar direito, ou ficará pingando e molhará seu kimono.
Aiyra riu também, deixando-se cuidar.
— Tudo bem…
A cena parecia simples, mas escondia o peso de gerações. O toque de Shai não era apenas de mãe — era de líder, de guia, de guardiã da herança da deusa. E naquele dia, mais do que nunca, os olhos da deusa estariam sobre Aiyra.
Aiyra vestiu seu kimono branco com detalhes negros, ajeitando a faixa na cintura, enquanto Shai dobrava com cuidado o tecido usado para secá-la. As duas caminharam lado a lado pela trilha que levava à vila, seus passos leves acompanhados pelo farfalhar das folhas.
Ao chegarem, foram recebidas pelo cenário vivo de seu povo: crianças híbridas corriam rindo entre as cabanas, suas caudas balançando ao vento, enquanto os adultos conversavam em torno das fogueiras, preparando ervas, tecidos e armas. Sempre que Shai passava, inclinavam-se em respeito, tocando a testa como sinal de reverência à grande líder.
Aiyra, com a energia juvenil ainda pulsando no corpo, correu até a cabana do curandeiro Adom. Abriu a cortina de palha e entrou sorridente.
— Trouxe quatro deles! — anunciou, erguendo os coelhos recém-caçados.
Adom levantou o rosto. Seus longos cabelos brancos, presos em um rabo de cavalo, caíam sobre as costas. Os olhos violeta cintilaram sob a luz do fogo. Ele sorriu e se curvou levemente.
— Nossa… a caçada foi boa pelo visto.
Aiyra riu, orgulhosa:
— Foi agradável.
Adom levantou-se, fechando uma gaveta de madeira onde guardava ervas e frascos. Virou-se para ela, ajeitando a túnica escura que usava.
— Está preparada para a dança?
— Sim — respondeu Aiyra com confiança. — Minha mãe me preparou para isso.
Adom sorriu outra vez, a ponta de sua cauda branca balançando suavemente atrás dele.
— E como está sua orelha? — perguntou Aiyra, lembrando-se do ferimento recente.
Adom tocou delicadamente a ponta da orelha esquerda, onde ainda havia uma marca.
— Está melhor. A cicatrização dos nossos é rápida.
Nesse momento, Shai entrou na cabana. Adom curvou-se imediatamente, reverente.
— Grande líder… é uma honra.
Shai sorriu com gentileza.
— Olá, Adom. Como está hoje?
— Está tudo perfeito — respondeu o curandeiro, com um brilho tranquilo no olhar.
— A vila aguarda ansiosa pelo cântico desta noite.
Shai cruzou os braços e olhou para a filha, com um semblante que misturava orgulho e seriedade.
— Então, Aiyra… que a deusa esteja pronta para receber a sua voz.
A noite havia caído sobre a vila. A grande fogueira já ardia no centro, iluminando as máscaras de raposa usadas por todos os híbridos. Crianças e adultos aguardavam em silêncio respeitoso.
Dentro da cabana, Shai penteava os longos cabelos negros da filha, que cantarolava suavemente.
— Está pronta? Preparada? — perguntou Shai, a voz firme, mas carregada de orgulho.
Aiyra sorriu, seus olhos dourados brilhando à luz da chama.
— Sim, estou!
Shai sorriu em resposta. Nesse instante, os guerreiros leais Raoni e Koda entraram. Com as máscaras já cobrindo seus rostos, eles se curvaram diante da grande líder.
— Está tudo pronto, grande líder.
— Claro — respondeu Shai, assentindo. — Então vamos, Aiyra.
A jovem ajeitou o kimono, sua cauda balançando suavemente atrás de si, e seguiu a mãe. Ao saírem, a vila inteira já aguardava em expectativa.
Shai conduziu a filha até diante da fogueira. O povo fez silêncio. O coração de Aiyra batia acelerado, mas ela respirou fundo. Então ergueu a voz:
“Lumé sharu,
Aylen nari,
Veyla miryen,
Oriah kitsu.”
(Lua dos espíritos,
Amor ao meu povo,
Harmonia na floresta,
Esperança da raposa.)
Sua voz suave ecoou, encantadora, como se fosse um sussurro vindo da própria floresta.
“Riyah tayru,
Serin ashie,
Naiya suvah,
Sharu lioren.”
(Mãe protetora,
Serenidade das águas,
Alegria do sol,
Espíritos que guardam a vida.)
Ela começou a dançar. Os fios de seus cabelos negros, o tecido do kimono e a cauda balançavam em perfeita harmonia com o ritmo. Atrás dela, outros membros da tribo juntaram-se à dança, enquanto guerreiros batiam tambores e instrumentos ecoavam sob a lua cheia.
Shai observava com os olhos marejados de orgulho. Sua filha, herdeira da raposa de seis caudas, estava radiante.
“Kitsu nari,
Veyla haru,
Aylen miryen,
Tayru lumé…”
(Raposa e povo,
Harmonia dos irmãos,
Amor da floresta,
Proteção da lua.)
O povo sorria, batia palmas, acompanhava o ritmo com alegria. Por um instante, parecia que nada poderia quebrar aquela noite sagrada.
Mas então Shai congelou, suas orelhas se ergueram. O cheiro pútrido dos humanos tomou o ar. Ela mal teve tempo de reagir quando o primeiro disparo ecoou.
As armas de fogo rugiram, rasgando o som dos tambores. O fogo inimigo caiu sobre cabanas, destruindo o ritual em segundos. Gritos preencheram a vila.
— CORRAM! PARA A FLORESTA! VAMOS, VAMOS! — gritou Aiyra, a voz embargada de desespero.
Koda surgiu ao lado dela, protegendo-a enquanto ajudava mulheres e crianças a fugir. Raoni rugia contra os invasores, sua espada cintilando. Bolas de fogo lançadas pelos inimigos explodiam, queimando cabanas e árvores ao redor.
No meio do caos, Aiyra avistou Adom tentando libertar um jovem preso sob os destroços.
— ADOM! — gritou, correndo até ele.
Com esforço, ajudou o curandeiro a levantar a madeira e salvar o rapaz.
— Vá! Saiam daqui! — ordenou ela.
Adom a encarou com o olhar firme e preocupado.
— E você?
— Vou atrás da Riyah! — respondeu sem hesitar.
— AIYRA, NÃO! VOLTE! — gritou o curandeiro, mas a jovem já corria, desaparecendo entre fumaça e chamas.
Shai se movia como um furacão no campo de batalha. Seus olhos ardiam em fúria, suas garras afiadas dilaceravam cada soldado que ousava se aproximar. Não era à toa que era chamada de Grande Mãe — a líder do clã, a guardiã de seu povo.
De longe, em uma elevação, o imperador Akirito observava. Seus olhos azuis, frios como o gelo, estreitaram-se diante da cena.
— Senhor… é ela. A líder do clã — sussurrou um de seus servos. — É extremamente perigosa…
Um sorriso cruel surgiu nos lábios do imperador.
— Me dê um rifle. Adoro caçar raposas.
O servo acenou rapidamente, trazendo-lhe a arma. Akirito a pegou com calma, como se fosse um jogo. Seus dedos firmes seguraram o gatilho, e ele mirou.
No campo, Shai invocava a Lança das Almas. A arma mística brilhava em sua mão, cortando o ar quando arremessada contra os inimigos, sempre retornando a ela em um giro flamejante. Os guerreiros híbridos disparavam flechas, derrubando muitos soldados, mas os rifles dos humanos rasgavam o ar com trovões mortais.
Enquanto isso, Aiyra corria pela vila em chamas. Koda estava ao seu lado, ajudando os sobreviventes. No caminho, a jovem avistou corpos dos seus espalhados pelo chão — irmãos, vizinhos, amigos. O peito dela ardeu em ódio e dor.
Um guerreiro híbrido ferido caiu diante dela, um tiro cravado na perna.
— Koda! Leve-o, depressa! — ordenou Aiyra.
Koda não hesitou, carregando o homem em direção aos outros sobreviventes.
Aiyra continuou sozinha, os olhos ardendo em lágrimas e fúria. No caminho, um humano apareceu. Ela correu e saltou sobre ele, suas garras atravessando o pescoço do inimigo. O sangue quente respingou em seu rosto. Sem pensar, ela arrancou dele um arco e flecha e começou a disparar contra outros soldados, matando sem piedade.
No alto, o imperador mantinha a mira em Shai.
— Senhor, precisamos recuar. Ela está acabando com nossos homens! — implorou o servo.
Akirito ignorou. Seus olhos azuis estavam fixos na figura majestosa da líder que lutava. Então, calmamente, ele mirou nas costas dela… e puxou o gatilho.
O estampido ecoou pela floresta.
Aiyra parou, o arco abaixando de suas mãos. Lentamente, virou-se em direção ao som.
Shai estava de pé, ereta como sempre… mas então seu corpo vacilou. Por um instante, sorriu com orgulho, como se confirmasse a força da filha à distância. Em seguida, caiu de joelhos e tombou no chão, a lança escorregando de sua mão.
— Ótimo… a líder já foi. Vamos embora. Foi uma ótima caçada hoje. — disse o imperador, satisfeito.
Seus homens se curvaram, e os servos gritaram ordens de retirada. O exército começou a recuar, deixando para trás apenas destruição e fogo.
Aiyra gritou:
— RIYAH!
Largando o arco, correu em desespero, tropeçando entre cinzas e corpos. Caiu de joelhos ao lado da mãe, puxando-a para seu colo.
— Ahh, Riyah… não… não, Riyah! — sua voz se partia entre soluços, as lágrimas escorrendo por seu rosto.
O sangue deslizava da boca de Shai, mas ainda assim ela sorriu para a filha. Sua mão fraca tocou o rosto da jovem.
— Agora… você tem que proteger nosso povo… minha filha… — sussurrou, sua voz quase sumindo. — Os proteja como eu protegi…
Com esforço, Shai estendeu a mão, empunhando a Lança das Almas. Os dedos tremiam, mas ela conseguiu entregá-la à filha.
Aiyra a pegou com firmeza. Assim que seus dedos se fecharam na arma sagrada, a lança brilhou e se ligou ao seu corpo, queimando como fogo espiritual. Uma tatuagem surgiu em seu pulso, um símbolo ancestral.
Shai sorriu, seus olhos já turvos.
— Eu te amo… minha pequena raposa…
Sua mão escorregou e caiu no chão. Os olhos dourados perderam o brilho. Um vento frio soprou, trazendo consigo o cheiro de sangue e fumaça. A lança desapareceu de sua mão, selada em sua alma.
— Não! Não, Riyah! Ah, Sharu! — gritou Aiyra, chorando em agonia. (Sharu — espírito celestial.)
Mas não houve resposta.
Koda surgiu correndo, o olhar fixo na cena. Seu coração pesou ao ver a grande líder sem vida. Agora, diante dele, estava a nova guardiã do clã.
— Temos que ir, Aiyra. Agora. Eles podem voltar a qualquer momento! — disse com urgência.
A jovem olhou uma última vez para a mãe. Tocou suavemente seus olhos, fechando-os. Inclinou-se e depositou um beijo em sua testa.
— Eu irei honrar sua vontade, Riyah… eu prometo. Por todo o nosso povo.
Então, erguendo-se, deixou o corpo da mãe no campo de batalha.
Ela e Koda correram até a borda da floresta. Antes de atravessar, Aiyra se virou uma última vez. Viu sua vila em ruínas, metade de seu povo morto… e o corpo de sua mãe caído entre as cinzas. Uma chama de ódio queimou em seu peito.
— Kraesh veyra. (A fúria corre como o vento.)
— Meyra naru. (Esperança é fogo.)
Koda assentiu em silêncio, tocando o ombro dela. Juntos, seguiram para a escuridão da floresta.
Aiyra não era mais apenas filha.
Era a nova líder do clã Kitsune.
E, em seus olhos, a promessa da raposa negra cintilava: o ódio pelos humanos.
Oi, oi meus queridos leitores! 💕 Como vocês estão? Cá estou eu de novo, transformando minhas ideias malucas em palavras e trazendo mais uma história pra vocês! ✨
Descobri que me dou super bem com o gênero fantasia — tentei escrever algo fora dele, gostei da experiência, mas confesso que não rolou aquela identificação, sabe? Hahaha 😅 Então voltei pro meu lugarzinho favorito: os mundos mágicos e cheios de mistério!
Assim como Herdeira da Luz, venho agora com mais uma história de fantasia (yeeyyy 🎉). Amo demais criar universos fantásticos e prometo caprichar nos detalhes dessa nova trama! Ah, e já vou avisando: o povo dessa história tem até sua própria língua 👀, mas fiquem tranquilos, coloquei tradução pra ninguém se perder. Ao longo dos capítulos vou explicando melhor pra vocês mergulharem de cabeça nesse mundo.
E antes que eu esqueça: se ainda não leram minhas outras histórias, corram lá! Tem Herdeira da Luz, Sombra em Detroit e agora também O Cativeiro da Raposa Negra! 🦊✨ Essa última é a novidade do momento — preparei tudo com muito carinho e até estudei bastante pra deixar a trama cheia de detalhes pra vocês aproveitarem ao máximo.
Então é isso, meus amores! Espero que curtam tanto quanto eu estou curtindo escrever. Um beijo enorme e até a próxima página 💗
O imperador Akirito regressava ao castelo, sorrindo com a satisfação de um caçador que havia tido sua presa. Seus passos ecoavam fortes pelo salão, o kimono marcado de cinzas e pólvora.
— Ah, foi maravilhoso… — disse, estalando os ombros como quem se renova. — Ver aqueles corpos tombarem, ouvir seus gritos… Mas eu não sabia que ainda existiam tantos. Vi alguns fugirem. — Ele arqueou os lábios em um sorriso frio. — Isso só torna as coisas mais interessantes. Adoro caçar.
Seu olhar endureceu por um instante, lembrando-se da jovem híbrida de olhos dourados que corria atrás de Shai. Uma visão que, contra sua vontade, o fascinara.
A voz doce e traiçoeira de Ruyna ecoou pelo salão:
— Meu amor já retornou? Como foi a caçada contra aqueles monstros?
O imperador voltou-se para ela. A concubina sorria, envolta em seda carmesim.
— Revigorante. — respondeu Akirito, com um brilho cruel no olhar. — Aquelas coisas não deveriam existir. Logo construiremos uma base naquela região.
Ruyna sorriu, satisfeita com o poder que o massacre representava.
— Sirvam-me saque. Quero beber esta noite. — ordenou o imperador, caminhando até seus aposentos.
Os servos se curvaram apressados. Akirito retirou parte do kimono e, diante do espelho, observou-se com um sorriso enviesado.
— Apesar de serem uma raça imunda… aquela híbrida era bela. — murmurou. — Muito bela…
E assim, em silêncio, começou a arquitetar um plano.
Enquanto isso, na escuridão da floresta, Aiyra guiava os sobreviventes. O vento frio levava consigo o cheiro de sangue, mas também o som da vida que ainda pulsava entre seu povo.
Shai havia deixado um local secreto preparado para emergências. Ao chegarem, Aiyra voltou-se para todos. Seus olhos estavam úmidos, mas sua voz ecoou firme:
— A partir de hoje, vocês são minha responsabilidade. Riyah lutou por nós, e eu farei o mesmo. Farei o que for preciso para que nosso povo fique seguro!
Os guerreiros se colocaram diante dela e, em uníssono, se curvaram:
— KORAH! (Obediência eterna.)
O povo seguiu o gesto, lágrimas escorrendo, mas com esperança em seus olhos.
Aiyra ergueu a lança espiritual, que agora lhe pertencia, e declarou:
— Oriah miryen. (A floresta guarda esperança.) — Viveremos aqui. Vamos nos estabilizar, reforçar nossas defesas. Não permitirei que eles nos toquem novamente!
Um coro de palmas e gritos de apoio ecoou. Mas logo o silêncio tomou conta quando Aiyra ergueu a mão.
— Agora, faremos o cântico pelos que se foram. Nossa tradição continuará.
Todos uniram as mãos. A chama de uma nova fogueira foi acesa, e Aiyra entoou a canção de despedida, sua voz quebrada pela dor.
“Sharu veyla,
Naiya toren,
Kitsu lioren,
Riyah serin…”
(Espírito celestial,
Sigam a luz,
A raposa eterna,
Guarda vocês.)
“Veyra lumé,
Ashie koren,
Mira suvah,
Oriah sharu…”
(A fúria apagou,
O sangue se foi,
Descansam na noite,
Na floresta do espírito.)
“Lumé, lumé…
Aylen torah…
Shai miryen…
Sharu, sharu…”
(Luz, luz…
Guie-os além…
Grande mãe, esperança…
Espírito, espírito…)
---
Dias haviam se passado desde o massacre. O silêncio da floresta ainda parecia carregado com o eco dos gritos e o cheiro de cinzas, mas ali, no coração verde, o povo Kitsune tentava sobreviver.
Aiyra liderava. Ia caçar sempre para trazer alimento, raramente descansando. Koda e Raoni nunca a deixavam sozinha, acompanhavam-na em todas as jornadas.
Naquela manhã, os três retornavam com caça. Aiyra carregava dois cervos pequenos, Raoni alguns coelhos, e Koda vigiava o perímetro, atento.
— Grande líder… — murmurou Koda, olhando de relance para Aiyra. — Deve reduzir suas transformações. Se insistir assim, pode não conseguir voltar à forma híbrida.
Aiyra desviou o olhar, sua voz firme, mas tingida de amargura:
— Caçar assim é mais fácil do que com arco e flecha. Além disso… o gosto do sangue me lembra porque devo continuar.
Koda a estudou em silêncio, percebendo o luto que ainda queimava dentro dela, como uma ferida aberta.
Raoni quebrou o peso da conversa, erguendo os coelhos que havia capturado.
— Isso deve ser suficiente para hoje.
Foi então que Aiyra ergueu a cabeça, as narinas dilatando. Seu olhar dourado brilhou como brasas.
— Humanos. — rosnou.
Koda imediatamente aguardou a ordem, sua mão já próxima das armas.
— Daqui não passarão. — disse Aiyra, sem hesitar. — Vamos acabar com eles.
Koda e Raoni acenaram, prontos.
As seis caudas negras surgiram atrás de Aiyra, sua transformação fluindo como um rio de sombras e poder. O corpo cresceu, tornando-se o da majestosa raposa de olhos flamejantes. Koda e Raoni também assumiram suas formas de combate, seguindo sua líder.
Silenciosa como a noite, Aiyra avançou pela mata até avistar os intrusos: oito cavaleiros do império, patrulhando.
Com um movimento sutil da cauda, deu o sinal.
O ataque foi brutal. Os guerreiros imperiais mal tiveram tempo de gritar. Presas, garras e dentes rasgaram o silêncio da floresta. Aiyra abatia cada inimigo sem piedade, mergulhando no sangue, o rosto manchado da violência de sua fúria.
Três cavaleiros conseguiram fugir, seus gritos ecoando enquanto os cavalos disparavam mata adentro.
O silêncio voltou, quebrado apenas pela respiração pesada dos três Kitsune. Koda retornou à forma híbrida, ofegante. Raoni e Aiyra o seguiram.
A jovem líder cuspia sangue humano no chão, o olhar frio.
— Até o gosto deles é ruim. — disse, cuspindo novamente, como se quisesse limpar a boca daquilo.
Koda aproximou-se, pegou seu próprio kimono e cobriu o corpo nu de Aiyra, desviando o olhar com respeito.
Ela não disse nada. Apenas caminhou, firme, na frente.
— Vamos.
E eles a seguiram, em silêncio, com o peso do sangue fresco ainda sobre si.
---
O portão do castelo se abriu bruscamente. Três cavaleiros entraram cambaleando, os olhos arregalados de terror. O sangue seco ainda manchava suas armaduras.
Ayumi, o general da guarda, os aguardava com olhar severo.
— O que houve? O que deu errado na patrulha? — sua voz ecoou como aço batido.
Um dos homens, quase sem fôlego, engasgou-se nas palavras:
— U-uma raposa, senhor… enorme… seis caudas… nos atacou. Só nós escapamos.
Ayumi franziu o cenho, os olhos se estreitando.
— Seis caudas? Mas… a líder não foi morta?
Outro cavaleiro se adiantou, trêmulo:
— Eu juro, senhor! Ela não estava sozinha… havia mais duas raposas negras lutando ao lado dela.
O silêncio pesou no ar. Então, Ayumi respirou fundo, como se compreendesse algo.
— Hm… então ela tinha uma filha.
O general fez um gesto brusco com a mão.
— Estão dispensados.
Os cavaleiros se curvaram apressados e saíram, como se desejassem apagar a lembrança do que haviam visto.
Ayumi, no entanto, girou nos calcanhares e caminhou firme pelos corredores até o grande salão imperial.
Lá dentro, o imperador estava reclinado em seu trono, a concubina Ruyna em seu colo, ambos rindo e trocando beijos. A cena parecia de puro deleite até Ayumi se ajoelhar diante dele.
— Perdoe a interrupção, meu senhor. Tenho notícias da patrulha enviada esta manhã.
O imperador afastou os lábios da concubina, olhando-o com um leve sorriso de tédio.
— Ah, sim… e o que houve?
Ayumi ergueu os olhos, sua voz firme:
— Foram aniquilados por uma raposa de seis caudas. Meu palpite é que se trata da filha de Shai. O clã Kitsune possui uma nova líder… e ela é forte.
Por um instante, o silêncio dominou a sala. Então, o imperador gargalhou, o som reverberando como trovão.
— Interessante… muito interessante.
Ele acariciou os cabelos de Ruyna, enquanto um brilho cruel surgia em seus olhos.
— Me tragam aquele inventor. Agora.
Ayumi baixou a cabeça em respeito.
— Claro, senhor.
E partiu, deixando para trás o eco da risada do imperador, que parecia já tecer planos sombrios.
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