Depois da conversa com Alice, eu não conseguia parar de pensar no reflexo que havia visto chorar no vidro da sala. Aquilo não era normal. Era como se o mundo ao meu redor tivesse começado a se dividir em duas camadas: a que todos viam e a que só eu podia enxergar.
Passei a evitar os espelhos mais do que nunca, mas os vidros — vitrines, janelas, até a tela preta do celular — tornaram-se armadilhas. Sempre que menos esperava, lá estava: uma sombra, um movimento fora de sincronia, algo que me lembrava de que eu não estava sozinho dentro de mim.
Naquela sexta-feira, o cansaço me fez decidir voltar da escola andando. David tinha ficado no treino e Alice saiu rápido, provavelmente para não cruzar com Felipe. A rua que levava à estação estava quase vazia, iluminada pelas luzes amareladas dos postes.
Foi então que o vi.
Um homem parado diante de uma vitrine de roupas. Usava um casaco escuro, capuz cobrindo parte do rosto. O estranho não olhava para os manequins, mas para o próprio reflexo. Ou melhor, para a ausência dele. Porque quando passei, percebi que no vidro só estava a rua atrás de nós. O espaço onde deveria estar a imagem dele era vazio.
Parei, incrédulo.
Ele virou a cabeça lentamente, como se já soubesse que eu o observava.
— Finalmente — disse, a voz rouca, quase um sussurro. — Encontrei você.
Meu corpo inteiro se arrepiou.
— Quem é você? — perguntei, recuando um passo.
Ele deu um leve sorriso, mas seus olhos continuaram sérios.
— Alguém como você.
Olhei de novo para a vitrine. O vidro mostrava minha roupa, minhas mãos tremendo... mas, como sempre, meu rosto não estava lá. E o dele também não.
— Você... também não aparece? — perguntei, quase sem ar.
Ele assentiu. — Desde o dia em que morri.
A frase me atingiu como um soco.
— Como assim, morreu?
O homem deu um passo em minha direção. — Há coisas que não te contaram, garoto. Coisas que não aparecem em exames médicos, nem em sessões de terapia. Você sabe do que eu estou falando.
Engoli em seco. Parte de mim queria correr, outra parte precisava ouvir.
— O acidente — murmurei.
— Sim. — Ele ergueu a mão, mostrando uma cicatriz no braço. — O seu reflexo foi arrancado de você. Assim como o meu foi arrancado de mim. Desde então, não somos inteiros.
Senti as pernas bambas. Lembrei do sorriso no vidro que Mio tinha descrito. Lembrei do reflexo que parecia viver sozinho, me observando.
— Mas... por quê? Quem fez isso?
O homem desviou o olhar, como se temesse a resposta.
— Não são todos que perdem o reflexo. Só aqueles marcados.
— Marcados?
Ele assentiu lentamente. — Há algo do outro lado do espelho. Algo que se alimenta de nós. E quando consegue nos tocar, arranca o que somos de verdade.
Olhei ao redor. A rua parecia mais escura de repente, como se o mundo tivesse se encolhido para caber naquele instante.
— O que você quer de mim? — perguntei.
Ele me encarou profundamente. — Quero que sobreviva.
Antes que eu pudesse perguntar mais, ele se afastou em direção à esquina. Tentei segui-lo, mas quando virei o quarteirão, não havia ninguém.
Fiquei ali, sozinho, o coração disparado, com a sensação de que havia atravessado uma fronteira invisível. Até então, pensei que minha condição fosse uma doença, um trauma. Mas agora... agora havia um nome, ou pelo menos uma pista: alguém do outro lado do espelho.
Naquela noite, contei a Mio. Ela ficou pálida.
— Então é verdade... — murmurou. — Não é só na nossa cabeça.
— Parece que não. — Passei as mãos pelo cabelo, nervoso. — Ele disse que somos “marcados”.
Mio ficou em silêncio por um momento, depois disse algo que me deixou ainda mais inquieto:
— Leo, e se não foi você que perdeu o reflexo? E se foi ele que perdeu você?
As palavras dela me acompanharam até o sono, que veio pesado e cheio de imagens distorcidas. Sonhei com a vitrine, com o homem de capuz, e com meu reflexo parado atrás do vidro, sorrindo como sempre. Mas dessa vez, quando ele abriu a boca, ouvi claramente:
“Logo não haverá diferença.”
Acordei suado, o coração acelerado. Pela primeira vez, tive certeza de uma coisa: o reflexo não era só um vazio. Ele tinha intenções. E talvez já estivesse mais perto do que eu imaginava.
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Atualizado até capítulo 39
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