As palavras da minha irmã continuaram ressoando dentro de mim: “No sonho... você não é você.”
Foi impossível ignorar. Depois do jantar, fiquei trancado no quarto, encarando o teto, tentando entender o que ela quis dizer. Eu já estava acostumado a me sentir deslocado, mas ouvir da própria Mio que ela também sonhava comigo de uma forma estranha mexeu comigo de um jeito diferente.
No dia seguinte, precisei reunir coragem. Esperei até que meus pais saíssem para o trabalho. Mio estava na sala, deitada no sofá com o celular na mão.
— Precisamos conversar — falei, sério.
Ela levantou os olhos, surpresa. — Sobre o quê?
— Sobre o que você disse ontem.
Mio se remexeu no sofá, visivelmente desconfortável. — Eu não devia ter falado nada.
— Agora já falou. — Cruzei os braços. — O que você viu, Mio?
Ela respirou fundo, largando o celular de lado.
— Tá bom... mas promete que não vai rir de mim?
Assenti, mesmo sem entender.
— Aquele dia do acidente — começou ela, olhando fixamente para as próprias mãos —, eu estava logo atrás de você, lembra? Quando o ônibus entrou na rua, você tentou frear, mas a bicicleta derrapou. Eu vi você cair. Mas, Leo... eu também vi outra coisa.
Meu coração disparou.
— Que coisa?
— O seu reflexo, Leo. No vidro do ônibus. — Ela falou rápido, como quem quer se livrar do peso. — No instante em que você caiu, o reflexo não caiu junto. Ele ficou de pé, olhando para mim. E eu juro que ele sorriu.
Engoli em seco, sem conseguir falar.
— Achei que tinha enlouquecido — continuou Mio. — Por isso nunca contei pra ninguém. Mas depois comecei a sonhar com aquilo, sempre igual: você caindo e o reflexo parado, como se fosse outra pessoa. E nos sonhos... às vezes é ele que levanta, não você.
Senti um frio percorrer a espinha. Não era só imaginação minha. Mio tinha visto algo também.
— Por que você nunca me contou? — perguntei, a voz falhando.
— Porque eu pensei que você já estava sofrendo demais. E porque achei que fosse coisa da minha cabeça. Mas ontem, quando você falou daquele jeito, não aguentei.
Fiquei em silêncio. As peças começavam a se juntar: a ausência no espelho, os sussurros, a sombra sem rosto, agora a lembrança de Mio. Tudo apontava para a mesma direção — não era apenas psicológico.
Naquela tarde, fui para a escola como se estivesse andando em um sonho. David falou sem parar sobre Alice, sobre como ela parecia mais distante e como talvez isso fosse bom para ele se aproximar. Eu apenas concordava, sem realmente escutar.
No intervalo, vi Alice sentada sozinha, mexendo no celular. Felipe passava perto, mas evitava qualquer contato. Pensei em ir falar com ela, mas me senti travado. Se nem eu sabia quem eu era, como poderia oferecer algum apoio?
— Você tá esquisito hoje — comentou David. — Mais do que o normal.
Dei de ombros. Não adiantava explicar.
Na volta para casa, passei novamente pela vitrine da loja. O reflexo estava lá, distorcido, mas dessa vez parecia mais nítido. E antes que eu me afastasse, a sombra moveu os lábios. Não ouvi som algum, mas pude ler claramente:
“Ele mentiu.”
Parei, paralisado. Quem tinha mentido? Mio? Meus pais? Ou eu mesmo?
Corri para casa. Encontrei Mio no quarto, ouvindo música. Entrei sem bater, assustando-a.
— Você tem certeza do que viu? — perguntei, quase sem ar.
— Claro que tenho — respondeu ela, tirando os fones. — Por quê?
— Porque eu acabei de ver... ele de novo. E ele disse que alguém mentiu.
Mio arregalou os olhos. — Ele falou com você?
Assenti, ainda tremendo.
Ela ficou em silêncio por um tempo, depois disse:
— Leo, e se... e se o acidente não foi só um acidente?
A ideia me atingiu como um soco. Sempre pensei que tudo não passava de azar, de descuido. Mas e se houvesse algo além? Algo que eu ainda não entendia?
Naquela noite, não consegui dormir. Fiquei encarando a escuridão do quarto, esperando que a sombra aparecesse de novo. Mas ela não veio. O que veio foi um pensamento terrível: e se meu reflexo tivesse se separado de mim naquele dia? E se ele estivesse vivendo por conta própria, observando, esperando o momento certo para tomar o que restava de mim?
A lembrança do sorriso no vidro não me deixou em paz.
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Atualizado até capítulo 39
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